Ema, Conceição e Camilla: três vidas à janela

Em Lisboa, é muito comum encontrar pessoas debruçadas na janela. Esta é a história de algumas delas.

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Ao andar pelos bairros mais antigos do centro de Lisboa, a estudante Camilla Coss constatou rapidamente que a cidade é quase toda feita de luz, ladeiras e janelas, e que, nas janelas, é muito comum encontrar alguém a observar o movimento da rua e o passar vagaroso do tempo. Na Calçada dos Barbadinhos, em Santa Engrácia, ao lado de uma escola de fado desactivada, onde resiste um letreiro a anunciar aulas que há muito não são dadas, todos os dias de manhã, quem passa poderá encontrar Ema Dias à janela da casa onde nasceu e foi criada.

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Ao andar pelos bairros mais antigos do centro de Lisboa, a estudante Camilla Coss constatou rapidamente que a cidade é quase toda feita de luz, ladeiras e janelas, e que, nas janelas, é muito comum encontrar alguém a observar o movimento da rua e o passar vagaroso do tempo. Na Calçada dos Barbadinhos, em Santa Engrácia, ao lado de uma escola de fado desactivada, onde resiste um letreiro a anunciar aulas que há muito não são dadas, todos os dias de manhã, quem passa poderá encontrar Ema Dias à janela da casa onde nasceu e foi criada.

“Naquele tempo, não havia estas coisas de hospital: Nasci mesmo aqui, nesta casa”, conta com os cotovelos apoiados no parapeito. Não diz quantos anos tem, mas devolve uma pergunta: “Nasci em 1930, quantos anos tenho?” Depois de uma certa idade, já não vale a pena fazer contas. De qualquer forma, em Outubro, a D. Ema fará 87 anos. E está tudo bem? “Ora, tem que estar. Se não estivesse, qual era o remédio?”

Ali, da sua janela, Ema já viu muitas coisas. Viu a Quinta dos Cravos, sua vizinha, dar lugar a diversos prédios de poucos andares; ouviu uma revolução inteira anunciar-se pela rádio e testemunhou um encolhimento progressivo do mundo, na medida em que a lojinha da esquina passou a vender caril e chips de telemóvel para ligações internacionais. Agora, Ema já não vê muita coisa, e garante que só fica ali para apanhar ar de vez em quando - “a vida não se faz à janela”.

Faz-se com muito trabalho. Pelo menos era isso que a D. Conceição, vizinha de Ema Dias, pensava quando chegou a Lisboa com 25 anos para “ganhar a vida”, como se a existência não fosse uma condição pré-estabelecida, mas algo que se conquista, às vezes mais, às vezes menos, mas nunca sem esforço. Conceição veio, trabalhou, conquistou a vida e um marido, com quem viveu mais de 50 anos no rés-do-chão que ainda hoje habita e onde, todos os dias, passa umas boas horas à janela para “ver o mar e ver quem passa”.

Ema Dias não teve tanta sorte no amor, ou pelo menos é isso que dá a entender. “Sou solteira”, responde. A pergunta não era essa - queríamos saber se tinha filhos. Com o olhar fixo no horizonte tranquilo do bairro, Ema parece ainda viver naquela época em que ser solteira e mesmo assim ser mãe não era uma possibilidade; e começa a falar da irmã, também solteira, que segundo relatos da vizinhança morreu ali mesmo, naquela casa, há alguns anos. Foi Conceição que socorreu as duas. “Fui eu a dar com a irmã dela morta”, conta, com o olhar baixo de quem se dá conta da própria solidão. “Sou eu quem cuido dela agora”.

Conceição vive sozinha, mas tem uma filha de 53 anos que mora a 300 quilómetros de Lisboa. Não tem netos: gostaria muito de os ter, mas a filha enviuvou cedo e, agora, sem crianças que lhe encham a casa, sem a balbúrdia que as crianças que enchem as casas fazem, Conceição passa a maior parte do tempo entre os trabalhos de croché, as horas à janela e algumas leituras. Desde pequena que tem muito apreço pelos livros.

Quando era pequena, sonhava ser professora. “Sempre gostei muito de ler e de matemática. Faço contas de cabeça melhor do que você”, garante, com um sorriso raro e matreiro. Apesar do sonho, os pais de Conceição nunca tiveram condições de sustentar os estudos da filha. O primeiro par de sapatos só lhe chegou aos pés aos nove anos, quando foi fazer o exame da quarta classe e logo a vontade de ser professora cedeu a necessidades mais imediatas. Nada que a envergonhe: “A gente com a quarta classe naquele tempo valia mais do que vocês hoje. Ah. bons tempos, filha, bons tempos”.

Ilustrações à janela

Bons tempos são os que Camilla Coss tem vivido nos últimos seis meses em Lisboa. Com 22 anos, a estudante brasileira chegou à cidade para fazer um intercâmbio e a experiência tem sido tão boa que ela decidiu estender o período por mais um semestre. No Brasil, além de estudar publicidade, Camila trabalhava muito e, apesar de sempre ter gostado de desenhar e escrever, sentia-se bloqueada e pouco criativa.
Quando chegou a Portugal, a jovem percebeu logo que havia algo peculiar no cenário urbano de Lisboa: as janelas e os seus habitantes. Rapidamente, começou a passar para o papel aquilo que fotografava com os olhos e assim surgiram as Janelas Lisboetas, uma série de ilustrações em tinta da china que eternizam pessoas que, assim como Ema e Conceição, fazem questão de passar alguns minutos à janela todos os dias.

“Essas janelas dizem muito sobre o que é viver aqui, porque a maioria das pessoas que eu vejo são idosos, muitas vezes sozinhos, mas quando estão à janela, estão na rua, que é um lugar público”, relata Camilla. A questão da invisibilidade dos idosos e da solidão que frequentemente acompanha este período da vida sempre sensibilizou a estudante. As Janelas Lisboetas foram também uma forma de dar visibilidade a essas pessoas ou, nas palavras da artista, “são tantas as janelas a olhar, que deu vontade de que fossem vistas também”.

Mas as janelas de Camilla não retratam apenas pessoas idosas. Crianças, jovens a fumar, um rapaz de óculos e uma mulher com os seus gatos são algumas das personagens ilustradas. Em comum, têm - elas e todas as outras pessoas à janela em Lisboa - os corpos amparados no parapeito e a transitoriedade, essa certeza tão difícil de encarar.

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Camilla tem as suas ilustrações favoritas, mas não sabe dizer exactamente porquê. “Acho que é uma questão de identificação, em algumas o desenho me agrada mais e em outras eu me vejo um pouco ali”, explica. A verdade é que a janela é um ponto de encontro entre quem observa e quem é observado e, nesse encontro, há sempre mais semelhanças do que diferenças. Nas histórias de Ema, Conceição e de tantos outras personagens, vê-se um pouco dos detalhes que tecem a existência de qualquer pessoa: as mudanças no bairro, a urgência em “ganhar a vida”, a solidão dos amores não realizados e dos sonhos que ficaram suspensos, o tempo que insiste em passar, ou não.

Ao terminar o passeio pelos bairros do centro, constata-se também que, assim como o vento fresco que bate nas janelas de Lisboa, a vida é mesmo um sopro. Alguns têm mais tempo, outros menos, mas por mais estáticos que pareçam com seus cotovelos apoiados no parapeito, são todos vida em movimento, existência em transição. “Daqui a pouquinho já se vai para a cama, e pronto”, diz Conceição antes de se despedir e fechar a janela.

Texto editado por Hugo Daniel Sousa