O fogo ainda lhes arde no peito, mas acreditam no renascimento

Em Pedrógão, cartazes à entrada e no centro da vila agradecem ao país a ajuda, mas dirigem-se, acima de tudo à população: “As pessoas sabem que não estão abandonadas”, diz o presidente da câmara.

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O autocarro saiu de Coimbra pouco depois das 18h30 tendo como destino Pedrogão Grande, no domingo último. Assim que entra no IC8 o cenário muda radicalmente e será assim por 18 quilómetros consecutivos. O verde das árvores deu lugar a tons de castanho e negro, que começam a ser pintados por um laranja dourado provocado pelo Sol que já começou a baixar.

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O autocarro saiu de Coimbra pouco depois das 18h30 tendo como destino Pedrogão Grande, no domingo último. Assim que entra no IC8 o cenário muda radicalmente e será assim por 18 quilómetros consecutivos. O verde das árvores deu lugar a tons de castanho e negro, que começam a ser pintados por um laranja dourado provocado pelo Sol que já começou a baixar.

As poucas conversas entre alguns dos poucos mais de 30 passageiros cessaram num segundo. O olhar perde-se na desolação sem fim à vista à medida que o autocarro avança pelo pelo Pinhal Interior Norte. Por mais que as imagens de televisão e as muitas fotos tivessem mostrado quase tudo, o que ficou dos incêndios que começaram a 17 de Junho, e se prolongaram por mais de uma semana, ainda choca. Até Pedrogão Grande, são quilómetros ininterruptos de árvores queimadas, a maioria eucaliptos e pinheiros e, de vez em quando, uma casa isolada, inteira, sem explicação para tal.

À chegada à vila do concelho mais afectado pelas chamas de há dois meses, duas enormes colunas de fumo elevam-se no ar, nas serras a norte da cidade de Coimbra. É por lá que andam agora os incêndios, trazendo até Pedrogão um tecto de fumo que esconde o Sol.

Pouco antes da entrada da vila um enorme cartaz da autarquia prende a atenção: “Obrigado Povo Português. Vamos Renascer.”

“Renascer, reconstruir, recuperar, plantar. Apoiar quem precisa e não deixar Pedrogão cair no esquecimento. Estes são os objectivos que nos movem”, assegura Valdemar Alves, presidente da Câmara de Pedrogão.

Numa conversa com o PÚBLICO após uma manhã de segunda-feira a receber os munícipes, o autarca diz sentir ainda “estar a viver um pesadelo em que quer acordar e não consegue”. “Não podemos esmorecer. A reconstrução já recomeçou mas ainda há muito para fazer. As pessoas não podem ficar à sua sorte, ainda precisam de muita ajuda. Este ano não há férias. Trabalhamos, presidência, vereadores e amigos, 12, 14, 16 horas por dia. Tem de ser. Parece impossível, mas não é. As pessoas precisam de nós.”

O objectivo dos cartazes que colocou logo no final de Junho à entrada e no centro da vila agradecem ao país “a ajuda extraordinária que deram às vítimas”, mas falam, diz Valdemar Alves, “acima de tudo para a população de Pedrogão.” “As pessoas sabem que não estão abandonadas. Vamos renascer. Os pedroguenses acreditam nisso e lutam por isso. Vamos renascer”, repete.

Segunda-feira é dia de mercado semanal em Pedrogão. Pouco passava das 9h e são já muitos os que por ali andam. Locais e turistas misturam-se por entre as bancas de produtos hortícolas, de enchidos e queijos, doces e carnes.

Prazeres da Conceição, 83 anos, nascida em Escalos Fundeiros, uma das aldeias atingidas pelo fogo, tem banca no mercado municipal. Já não se lembra quando começou, “era uma miúda”, a vender nos mercados da região o que a terra dá. Hoje tem pouco para oferecer.

“Ardeu quase tudo. Perdi muitas árvores de fruto, as batatas...foi muito pouco o que escapou ao fogo. Uma tristeza. Felizmente ali [em Escalos Fundeiros] não morreu ninguém, mas ficou quase tudo queimadinho.”

A lembrança do que sucedeu há dois meses traz-lhe as lágrimas aos olhos. “Já vi muitos fogos, mas nenhum como aquele”, recorda. Recusa, porém, desistir: “Enquanto Deus me deixar vou continuar a tratar da terra. O fogo já foi apagado nas árvores, mas há ainda um fogo que arde no nosso peito, só que não nos podemos deixar ir abaixo.”

No final da missa das 10h, numa igreja matriz com bastante gente, o padre Júlio Santos pede mais uma vez que os fiéis rezem pelas vítimas dos fogos e lembra que naquela segunda-feira, às 19h, haverá mais uma vigília pelos 64 mortos vítimas dos incêndios no Pinhal Interior Norte.

O sacerdote, nascido em Pedrogão há 56 anos e há 12 a guiar a paróquia, concorda com a feirante Prazeres da Conceição: “Há um fogo que ainda arde no peito e na memória das pessoas. Há ainda muita revolta, muita dor. Mas também muita esperança na recuperação. As pessoas estão dispostas a lutar desde que tenham apoios materiais e psicológicos.”

O padre diz continuar a percorrer “quase todos os dias” os locais onde há pessoas afectadas pelo fogo.” Dá “consolo, motivação” e ajuda no que pode, nomeadamente em acções de solidariedade. “O que eu digo a todos, mas especialmente às autoridades, é o seguinte: cada pessoa é uma pessoa com os seus problemas. Não se olhe para as pessoas como números ou estatísticas.”   

Uma casa térrea a poucos metros da igreja, e que até aos incêndios de Junho era o salão paroquial, está agora transformada em armazém da Cáritas. Ali continua a chegar todo o tipo de ajudas. Roupas, móveis, alimentos, produtos de higiene e alimentação para animais que os voluntários da associação humanitária catalogam, armazenam e distribuem conforme as necessidades de quem necessita de ajuda. Até fardos de feno ali estão depositados. “É tudo anotado e registado. O que entra, o que sai, a quem foi entregue. O bispo de Coimbra e o presidente da Cáritas assim o pediram e assim é feito. Está tudo anotado, seja dinheiro ou um par de sapatos, seja uma oferta anónima ou não. Até o que não interessa e vai para reciclagem é registado. Tudo com a maior transparência, porque só assim as pessoas têm confiança nas instituições”, diz o padre Júlio Santos.

Na porta da casa-armazém foi colada uma oferta especial: um desenho de uma menina ali deixado no dia 21 de Julho. Mostra uma casa arder, um céu vermelho e duas crianças a chorar. Em letras gordas, coloridas a amarelo, escreveu a palavra “fogo”, mais abaixo, a vermelho “arder casa”, e a azul “casa velha adoroa” [adoro-a].

João Marques, nascido há 23 anos em Pedrogão, comove-se quando olha para o desenho feito pela menina, que frequenta a escola primária local. Diz que transmite “muita tristeza”. “Houve e há ainda tanto sofrimento e este desenho é um bocado o espelho da tristeza e da revolta que as pessoas ainda têm. Às vezes até nem sabemos o que dizer a quem tanto sofre.”

João estuda engenharia biomédica em Coimbra. Esteve em época de exames em Junho e Julho, mas assim que entrou de férias, em Agosto, ofereceu-se como voluntário na igreja do padre Júlio “para ajudar no que fosse preciso”. Trocou as férias “pela ajuda”. É ele que recebe as doações que continuam a chegar ao armazém e apoia os voluntários da Cáritas que vêm de Coimbra distribuir a ajuda, agora já não com uma frequência diária como aconteceu nos dois primeiros meses.

“Senti que tinha obrigação de ajudar, mas o maior mérito é dos que vêm de Coimbra fazer a distribuição e catalogar tudo isto”, afirma.

O jovem estudante também acredita que “a vontade e a força das pessoas vão vencer a tragédia” e “permitir o renascimento.” “Há também uma grande fé em Deus que dá ainda mais força às pessoas. Viram-se para Deus até quando há revolta por as leis que não são cumpridas ou injustiças que são cometidas”, acredita.

Na passada semana o padre Júlio Santos foi alvo de polémica, ao vir a público criticar a intervenção do Governo no apoio às populações e na reconstrução do que foi destruído pelo fogo, considerando que “há demasiada burocracia para uma situação excepcional como esta”.

"Não tenho visto nada de palpável, nem sequer foram retiradas as placas de sinalização que ficaram queimadas. Esse seria o primeiro sinal de que já andam a fazer alguma coisa", disse o sacerdote, adiantando que têm sido feitas muitas reuniões, mas "não resolvem o problema das pessoas”.

Fontes do Ministério do Planeamento e Infra-estruturas vieram de imediato contrariar o que disse o padre, assegurando que a recuperação está em curso e foram mobilizados 104 milhões de euros para a reconstrução de casas, reparação de infra-estruturas, recuperação de empresas e apoio à agricultura e floresta.

Júlio Santos mantém o que disse. “Há demasiada burocracia.” E recorre a uma imagem para acentuar a reclamação: “Uma pessoa está a morrer à sede, mas para pedir um copo de água tem de preencher uma série de papelada antes.”

Diz agora que as suas palavras tiveram pelo menos “uma vantagem”, “algumas placas de sinalização já foram colocadas”, mas em muitos casos, ao lado das velhas que não foram retiradas. “Às vezes, são pequenas coisas, pequenos sinais, que fazem as pessoas acreditar que algo vai ser feito para as ajudar”, acrescenta.

A burocracia para obter ajuda por parte dos que foram afectados pelos incêndios tem sido uma das principais queixas da população e empresários. Isso mesmo foi dito, na passada sexta-feira, na cara do primeiro-ministro por alguns locais, quando António Costa visitou a região para se inteirar do andamento das obras em curso.

O presidente da Câmara de Pedrogão diz que têm de “existir regras”, que os pedidos de ajuda “têm de ser documentados” até “para não haver injustiças”. Valdemar Alves admite, porém, que em alguns casos “é pedida demasiada papelada”.

Nesta matéria admite ter conseguido “duas vitórias”, que dois editais com data do dia 14 deste mês dão conta, e que agilizam os processos aos agricultores com prejuízos mais baixos e aos empresários. Quatro projectos foram aprovados para estes casos.

“As vitórias foram conseguidas porque reclamei publicamente e porque falei directamente com o primeiro-ministro. Por vontade de outros membros do Governo nada tinha sido feito”, reivindica o autarca.

Mas a grande vitória que procura, é “fazer renascer Pedrogão” e “dar às pessoas condições para que também elas possam renascer”. “É uma guerra que tem de ser levada até ao fim por todos. Em Pedrogão e no país.”

Há, porém, uma guerra em que diz não entrar: a da política e a da troca de acusações entre partidos de estarem a usar a tragédia como arma política. “Nisso não me meto. Eles que se entendam sejam de que partido for”, diz o autarca eleito pelas listas do PS, nas quais vai concorrer novamente nas autárquicas de Outubro deste ano.

 

Memoriais às vítimas

 

Duas placas de mármore assinalam a visita de dois presidentes da República na parede frontal da Câmara Municipal de Pedrogão Grande. A de Jorge Sampaio, em 21 de Março de 2000, e Cavaco Silva, em 23 de Setembro de 2010. O actual Presidente, que já visitou a autarquia diversas vezes desde os incêndios que começaram a 17 de Junho, ainda não tem placa. Não tem, mas vai ter. E “vai ser especial”, segundo garante o presidente da Câmara, Valdemar Alves.

A placa não só assinalará as visitas feita pelo presidente como terá escrito um agradecimento “pelas ajudas ao concelho” após a tragédia dos incêndios. Também o primeiro-ministro António Costa terá direito a um agradecimento pelas visitas e as ajudas.

Marcelo e Costa voltam hoje a Pedrogão, onde realizarão a habitual reunião das quintas-feiras, assinalando assim os dois meses do início dos incêndios no Pinhal Interior Norte.

Valdemar Alves revelou ainda ao PÚBLICO que a autarquia vai erguer três memoriais às 64 vítimas mortais dos fogos, uma em cada freguesia do concelho (Pedrogão,  Graça e Vila Facaia).