Portugal a lavar roupa no tanque

Ocuparam vários espaços, mas as marquises foram o lugar onde os tanques de cimento mais estacionaram. Vieram depois as máquinas de lavar e os tanques passaram a floreiras. Nesta série olhamos para aquilo que foi substituído, eliminado ou transformado em cada quarto, cozinha ou varanda.

Foto
Daniel Rocha

“Ofereço tanque de lavar roupa em cimento. Não quero nada por ele. A única condição é virem buscá-lo.” Alguém na Amadora mostra o seu tanque cinzento, algo desalentado, numa fotografia tirada num quintal. E só pede que, no fundo, lho tirem dali. Este é o teor de um anúncio num site de classificados que diz muito sobre o estado da arte dos tanques de betão: são grandes, monolíticos, pesados e já quase ninguém parece querê-los por perto. Tempos houve em que não era assim.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

“Ofereço tanque de lavar roupa em cimento. Não quero nada por ele. A única condição é virem buscá-lo.” Alguém na Amadora mostra o seu tanque cinzento, algo desalentado, numa fotografia tirada num quintal. E só pede que, no fundo, lho tirem dali. Este é o teor de um anúncio num site de classificados que diz muito sobre o estado da arte dos tanques de betão: são grandes, monolíticos, pesados e já quase ninguém parece querê-los por perto. Tempos houve em que não era assim.

Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago descreve a relação de Reis com a empregada do hotel onde está, Lídia. A dança entre os dois tem a lida doméstica a separá-los. “Lídia deu dois passos para a porta, irá ao quarto fazer a cama, irá à cozinha lavar a louça, irá ao tanque pôr a roupa em sabão, mas não foi para isto que veio, ainda que tudo isto venha a fazer, mais tarde”, escreve Saramago. A cena passa-se na segunda metade dos anos 1930 e já mostra a centralidade do tanque, essa peça não muito bela, nada agradável ao toque, mas quase omnipresente e útil para a lavagem de todo o tipo de roupa – e, às vezes, da ocasional criança vinda da praia ou de brincar na terra – na vida portuguesa.

Terá sido por esta altura que o tanque de cimento se começou a vulgarizar, estima o arquitecto Manuel Graça Dias, porque é depois da I Guerra Mundial que o uso do betão se torna mais comum. “Sendo uma peça pesada, é natural que também esteja associada às próprias edificações já em betão, a partir dos anos 1920, 30”, diz em conversa ao telefone com o PÚBLICO. A sua história está ligada aos processos de lavagem da roupa, seja no meio rural seja no contexto urbano. Seja na água fria, da ribeira, água fria que o sol aqueceu, seja na água limpa da torneira que o saneamento deu.

As lavadeiras levavam a roupa ao rio – em algumas aldeias, ainda o fazem – e ali a esfregavam nas mãos ou nas selhas de madeira, com uma tábua ondulada. Depois, os lavadouros públicos passaram a servir de ponto de encontro do trabalho (das mulheres) e enriqueciam a carga social do acto de esfregar uns lençóis. Além de permitirem esse exercício catártico que é lavar a roupa suja em público. Do recente projecto do Lavadouro Público da Afurada dos arquitectos Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez aos tanques comunitários em bairros populares como Alfama ou Madragoa (Lisboa), ainda hoje há tanques em uso.

Mas as casas queriam ter o tanque mais perto e nas décadas de 1940, 50 e 60 começam a aparecer nas plantas urbanas e rurais. Até à década de 1990, era comum encontrar prédios inteiros com um tanque por varanda e ver os cágados – os agitados animais de estimação que os pais deixavam as crianças dos anos 1980 ter – a medrar na bacia de um tanque de betão vazio nos quintais das cidades. Até havia versões miniatura, para as crianças brincarem e lavarem a roupa das bonecas. Começaram a desaparecer – a custo, dado o peso, como sente o proprietário da Amadora – não só por terem sido substituídos pelas máquinas de lavar, mas também pela diminuição do espaço disponível nas casas, explica Graça Dias.

No início do século passado, estavam nas vilas de Lisboa e nas ilhas do Porto, nas ruas, na frente das casas e muitas vezes apensas a elas. Depois, foram para as marquises das casas dos anos 1940, 50, 60. Tinham a utilidade da “rampa com uma textura modulada onde se podia esfregar qualquer coisa e um vaso”, diz Manuel Graça Dias, onde se pousava o indispensável sabão azul e branco. Valorizava-se “a sua estabilidade e permitiam lavar toda a roupa”, mas também o facto de aproximar de nós o contentor da água, que não fica lá no chão”. Ainda hoje, defende o arquitecto, “quem tem espaço” acumula a máquina de lavar e o tanque, útil para as peças mais delicadas ou sujidades imprevistas. Fora das grandes cidades, são ainda parte da paisagem

Foto

Uma casa no bairro de Alvalade, novinha e por estrear, “era alugada sem electrodomésticos” e à chegada das novas famílias “estava praticamente vazia apenas com lava-loiças em mármore e tanque de lavar a roupa”. É o que se lê em A casa dos meus avós no bairro de Alvalade - Considerações entre o projecto arquitectónico e a vida de uma família, que Diana Lopes Pereira redigiu para os Cadernos do Arquivo Municipal de Lisboa, em que se contam “histórias de casas e de quem lá viveu”.

A casa dos avós da mediadora cultural era na chamada célula 3 do Bairro de Alvalade, projecto de expansão da capital nos anos 1940 com apartamentos de renda económica para a classe média. O tanque que vinha com a casa era central no ritual da familiar. Recorda a autora: “Os trabalhos matinais incluíam lavar a roupa à mão no tanque. As segundas-feiras eram o dia da roupa branca: aquecia-se a água em barrelas (panela de 20 litros de água) e, uma vez fervida, vertia-se para o tanque; migava-se o sabão e esfregava-se a roupa. O meu padrinho, que cresceu também no bairro de Alvalade, recorda como era intenso o cheiro da roupa lavada quando se passava pelas traseiras dos prédios”.

As “traseiras”. Ou “lá fora”, como a certa altura diz Manuel Graça Dias. São dois localizadores essenciais para falar dos tanques. Embora nos bairros mais populares por vezes estejam à porta, e tal como noutros espaços urbanos ou rurais sejam agora também reconvertidos em alegres floreiras, o tanque é um objecto dos fundos. “A partir da segunda metade do século XX, a redução das áreas nas casas que são construídas de novo é uma realidade”, diz Graça Dias “Muitas vezes essas cozinhas terminam numa varanda fechada ou parcialmente fechada que serve de apoio de lavandaria”, lembra o arquitecto. A junção de cozinha e lavandaria é uma “economia de espaço”.

“As traseiras dos edifícios dessa época eram preenchidas por grandes varandas fechadas, que chamamos marquise”, prossegue, lembrando que a história da expressão “marquise” vem do tecido francês marquis e dos toldos dele feitos, que depois passariam a ser coberturas de ferro e vidro sobre as lojas – uma história que veio classificar as traseiras das casas dos anos 1940 em diante, bem menos pejorativa do que a da marquise vilificada, sinónimo da arquitectura do alumínio e patos-bravos dos anos 1980 e parte da lenda do ex-Presidente Cavaco Silva e seu apartamento com duas marquises em Lisboa.

Maria de Lurdes Luciano, moradora das casas da alta burguesia das décadas do meio do século passado, relata: era na marquise “que se tratava das roupas, que se lavava no tanque, engomava, onde se cosia a roupa se havia alguns pontos para dar”, diz, citada pela historiadora Sandra Marques Pereira em Cenários do quotidiano doméstico: modos de habitar, num dos capítulos da História da Vida Privada organizada por José Mattoso.

O tanque é um lugar simbólico

Quem engomava, lavava e cosia eram ou as criadas ou as donas de casa. O tanque foi também um objecto usado no ideal salazarista da casa portuguesa – as casas e apartamentos para as elites de Lisboa e Porto construídas nos anos 1940 e 50 recebem as famílias em apartamentos em que se dá “forma espacial a uma vida privada erguida sobre o valor da labuta doméstica gerida por essa incansável dona de casa e mãe de família”, escreve Sandra Marques Pereira. Já depois, a casa moderna das décadas seguintes reduz os espaços e acolhe maquinaria que automatiza o trabalho doméstico – a máquina de lavar, por exemplo, como a de uma publicidade da Indesit de 1969 que clama “livre/livre/liberta/liberta” e anuncia a “liberdade!” da mulher que salta, esvoaçante.

Desde o século XVIII que existem instrumentos dedicados a facilitar a lavagem da roupa com auxílio da mecânica – máquinas que faziam a torção, que usavam o vapor ou as que ainda precisavam da ajuda das mãos. Só nos anos 1930 é que as máquinas de lavar automatizadas surgem e é nos anos do pós-guerra que se começam a generalizar, primeiro nos EUA, depois no mundo. Em 1987, 44% dos lares em Portugal tinham máquina de lavar roupa, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística; há dois anos, 96,6% dos lares tinham máquina de lavar. Se o tanque substituiu em parte “as pias de despejo, de pedra, primeiro quadradas e depois escavadas em redondo, que as casas tinham no final do século XIX e que eram articuladas com o sistema de esgotos”, como lembra Manuel Graça Dias, a máquina de lavar roupa viria a fazer o mesmo, ocupando o seu espaço. Na casa dos avós de Diana Lopes Pereira, assinala-se a entrada em casa da máquina de lavar nos anos 1960.

Em Maio de 1974, a revista brasileira Manchete escreve sobre "as três Marias" (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa) as Novas Cartas Portuguesas (1972). Nota como as queixas das mulheres das Novas Cartas poderiam ser subscritas “por qualquer mulher de Lisboa ou das províncias”, “tão frequentemente vestidas de negro que não ousam andar nas ruas à noite sem protecção masculina e que às vezes passam a vida sem erguer os olhos das panelas e do tanque de roupa”, citam Ana Luísa Amaral e Marinela Freitas em Novas Cartas Portuguesas – Trinta Anos Depois.

O tanque é um lugar simbólico, que mesmo outros 30 anos depois se torna chocantemente concreto. Num caso de violência doméstica que foi notícia em todo o país, um homem de Mirandela deixou a mulher, nua, presa ao tanque da roupa de cimento com uma corrente de 13 quilos ao pescoço. O tanque estava cheio de água para aumentar ainda mais o seu peso e a mulher ficou presa a ele quase 24 horas. O crime ocorreu em 2005, ela fugiu soltando-se do tanque, mas não da corrente. Em 2006 chegou a sentença: oito anos de prisão para o homem de 50 anos.

Estes monólitos, por vezes adjectivados como “vintage”, povoam os sites de classificados e encontram-se a espaços nas grandes superfícies comerciais. Têm também uma nova cara. “O tanque de betão teve um sucedâneo plástico, mais ligeiro e que ainda continha o mesmo formato, uma memória do outro tanque”, indica Manuel Graça Dias. Outras versões, em fibra de vidro, mantêm também esse formato ou tentam adaptar-se à escassez do espaço em moldes mais esguios. Mas o espaço do tanque de cimento já não será recuperado.

Foto