Governo português contribui para o enterro da Venezuela

Portugal não tem razões legais ou morais para recusar reconhecer a Assembleia Constituinte da Venezuela.

Começo por fazer a minha declaração de interesses: não tomo o partido da ala fiel a Nicolás Maduro, nem o dos que a este se opõem. Não sou venezuelano, nem tenho interesses particulares na Venezuela. Embora não negue a preocupação com a forma como os acontecimentos no país se podem reflectir em Portugal, o meu interesse com o que se passa na Venezuela é exclusivamente académico.

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Começo por fazer a minha declaração de interesses: não tomo o partido da ala fiel a Nicolás Maduro, nem o dos que a este se opõem. Não sou venezuelano, nem tenho interesses particulares na Venezuela. Embora não negue a preocupação com a forma como os acontecimentos no país se podem reflectir em Portugal, o meu interesse com o que se passa na Venezuela é exclusivamente académico.

Analisei com interesse a tomada de posição do Governo português relativamente às eleições para a Assembleia Constituinte, na Venezuela, realizadas a 30 de Julho. Com a intensificação das pressões por parte de praticamente todos os quadrantes políticos nacionais, Augusto Santos Silva seguiu no sentido habitual de um Estado sem personalidade e autonomia, como é o caso de Portugal: recusar a oportunidade de fazer valer o bom senso e seguir a corrente da União Europeia.

Portugal não reconhece a Assembleia Constituinte da Venezuela e justificou-o com a necessidade de “regresso à normalidade constitucional, com pleno respeito dos poderes dos órgãos eleitos, pela separação de poderes”. Ora, a falácia nesta fundamentação começa no facto de o ministro dos Negócios Estrangeiros português desconhecer a Constituição da República Bolivariana da Venezuela, datada e referendada em 1999.

Se conhecesse, certamente saberia da existência de um tal Título IX com a epígrafe “Da Reforma Constitucional”, cujo Capítulo III, intitulado “Da Assembleia Constituinte”, dispõe, no artigo 348.º, que podem convocar eleições com vista à formação de uma Assembleia Nacional Constituinte, tanto dois terços do Parlamento, como dois terços dos Conselhos Municipais, 15% dos eleitores e, muito importante, o Presidente da República em Conselho de Ministros.

Paralelamente, dispõe o artigo 349.º que o Presidente da República não pode opor-se à nova Constituição e que “os poderes constituídos não podem de alguma forma impedir as decisões da Assembleia Nacional Constituinte”. Ou seja, a convocação de eleições para a Assembleia Constituinte cumpriu o disposto na Lei Fundamental. A presente Constituição venezuelana é o corolário do exercício da soberania pelo povo, reconhecimento este consagrado um pouco por toda a Constituição, em especial no artigo 347.º, que legitima a eleição de membros para uma Assembleia Constituinte.

Independentemente do resultado dos trabalhos da Assembleia Constituinte eleita — e eu acredito que o cenário mais provável passará por replicar na Venezuela algo semelhante ao que Fidel Castro promoveu em Cuba —, a oposição a Maduro conhece perfeitamente as disposições referidas, as quais, insisto, integram uma Constituição que está em vigor há 18 anos, após ter sido submetida a referendo. Se a oposição recusa participar no acto eleitoral convocado pelo Chefe de Estado, como forma de o descredibilizar, a responsabilidade é inteiramente de quem toma a decisão de não influenciar os trabalhos da futura Assembleia Constituinte. Mas que não se coloque em causa a legalidade da convocatória das eleições, porque estas cumprem estritamente o previsto na Constituição.

O MNE português não tem, assim, motivos para justificar a recusa de reconhecimento da Assembleia Constituinte, já que Nicolás Maduro exerceu poderes que lhe são constitucionalmente reconhecidos e é o Parlamento quem não está a respeitar os poderes do Presidente, enquanto, também ele, órgão eleito. Portanto, a “normalidade constitucional” está cumprida.

Desta falácia resulta, por parte de Portugal, uma violação do direito internacional, em particular, da Carta das Nações Unidas, nomeadamente o seu artigo 2.º, n.ºs 1 e 7, onde se reconhece o princípio da igualdade soberana entre todos os membros da ONU e, consequentemente, o princípio de não ingerência, que proíbe que qualquer Estado intervenha nos assuntos internos de outro Estado.

O Governo português, ao recusar reconhecer a Assembleia Constituinte da Venezuela que foi eleita no cumprimento da Lei Fundamental do país, está a cometer um acto de ingerência com o objectivo de pressionar o país a seguir um rumo diferente daquele que a própria Constituição admite como legal. À luz do direito internacional actual, Portugal só pode recusar reconhecer a Assembleia Constituinte venezuelana caso esta resulte de acção militar ilícita de uma organização que tenha tomado o controlo do país com o apoio de um Estado terceiro, tornando-se, assim, sua marionete, e caso a Assembleia Constituinte tivesse sido eleita em condições não democráticas — as eleições foram convocadas, a oposição é que se recusou a participar nelas. No final, poderemos ainda equacionar a sujeição da futura Constituição a referendo, como forma de reforçar a legitimidade da Assembleia Constituinte e do resultado do seu trabalho por via da soberania popular. Mas não é obrigatório que assim seja.

Em suma, Portugal não tem razões legais ou morais para recusar reconhecer a Assembleia Constituinte da Venezuela. Terá razões políticas, já que segue incondicionalmente a corrente maioritária da União Europeia. Mas estas razões já violam o direito internacional e até a própria Constituição portuguesa, cujo n.º 1 do artigo 7.º reitera o princípio da “não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados”.

Como nota final, poderíamos ainda reflectir sobre a legitimidade de eleições que poderão ter sido manipuladas, tanto no número de votantes como no sentido de voto. É uma via possível, que merece uma investigação mais profunda do que a especulação que tem sido feita. Mas importa perguntar por que motivo este acto eleitoral seria inválido e o referendo da oposição, realizado semanas antes, já seria inteiramente transparente e fiel aos princípios democráticos ao ponto de ser cegamente aceite na Europa e noutros países do bloco Ocidental mesmo apesar de não ter sido sujeito a qualquer controlo.

E, indo por esta via, poderemos mesmo questionar por que motivo reconhecem Portugal e a União Europeia uma reforma constitucional na Turquia onde, pelo menos, mais de 1,5 milhões de votos foram, de forma comprovada, acrescentados de forma fraudulenta. E por que motivo foram reconhecidas a vitória de George W. Bush, em 2000, após a fraude eleitoral cometida na Florida, e a de Hillary Clinton nas primárias do Partido Democrata, em 2016, quando são públicas as provas de fraude para prejudicar Bernie Sanders.

Ou seja, Portugal e a União Europeia tomam uma decisão estritamente política ao não reconhecerem a Assembleia Constituinte, decisão esta violadora do direito internacional e do próprio direito interno. Provavelmente, citando Julian Assange, preferiam um modelo constitucional semelhante ao da Arábia Saudita, Estado em que, pelo menos, cinco membros da União Europeia votaram recentemente para integrar a Comissão dos Direitos das Mulheres da ONU. Da realidade venezuelana, já dificilmente se esperaria um futuro positivo. Mas esta tomada de posição de Portugal e da União Europeia só agrava mais um cenário catastrófico, faltando apenas as habituais sanções para acabar de vez com as escassas esperanças de vida do povo venezuelano.