Tribunal de Faro ordena “desocupação e demolição” das casas de veraneio na ria Formosa

O camaleão, um bicho que convive mal com o crescimento urbanístico na orla costeira, continua a ser o principal recurso judicial para manter suspensas as demolições, interrompidas à chegada do Verão. O certo é que as casas a derrubar são cada vez menos.

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Melanie Map's

As casas clandestinas das ilhas-barreira, na ria Formosa, só se mantêm ainda de pé por causa do camaleão — uma espécie rara que muda de cor conforme o ambiente que o rodeia mas que não se dá bem com a pressão urbanística. Já os 15 proprietários de habitações de veraneio que usaram a figura do usucapião para tentar travar as demolições viram os seus argumento não ter acolhimento por parte do Tribunal Judicial de Faro. O acórdão, favorável à Sociedade Polis Litoral da Ria Formosa (SPLRF), ordena que seja feita a “desocupação e demolição das obras feitas”.

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As casas clandestinas das ilhas-barreira, na ria Formosa, só se mantêm ainda de pé por causa do camaleão — uma espécie rara que muda de cor conforme o ambiente que o rodeia mas que não se dá bem com a pressão urbanística. Já os 15 proprietários de habitações de veraneio que usaram a figura do usucapião para tentar travar as demolições viram os seus argumento não ter acolhimento por parte do Tribunal Judicial de Faro. O acórdão, favorável à Sociedade Polis Litoral da Ria Formosa (SPLRF), ordena que seja feita a “desocupação e demolição das obras feitas”.

Aos proprietários que reclamaram títulos de posse de propriedade, em área do Domínio Público Marítimo, alegando direitos históricos de ocupação no areal, foi dito categoricamente: “Nenhum direito lhes assiste”, mesmo que tenham investido muitos milhares de euros em casas — que chegam a ter 200 metros quadrados de área —, construídas perante a inércia das autoridades.

Com a entrada do Verão, a Sociedade Polis suspendeu o processo em curso da tomada de posse administrativa das casas, a derrubar, por causa do impacto público da movimentação das máquinas. A sentença mais recente, proferida pelo Tribunal de Faro, incidiu sobre 15 proprietários que reclamaram o usucapião (posse, pelo uso) do terreno onde construíram as segundas habitações. “Não estão reunidos os requisitos de que depende a aquisição por meio de usucapião”, lê-se no acórdão.

O que se passou na costa algarvia não difere muito do que sucedeu noutras zonas do país, nos anos subsequentes ao 25 de Abril de 1974: proliferaram as construções clandestinas, algumas em áreas sensíveis. Os proprietários rejeitam ser considerado “clandestinos” uma vez que as construções foram erguidas à vista das autoridades e, em certas circunstâncias, com a sua autorização. A juíza Maria Luís Araújo e Gama teve em consideração o “sentimento de liberdade e revolta contra o sistema político de cariz ditatorial vivido até então” mas considerou provado que os protagonistas das construções clandestinas tinham consciência que “os terrenos por si ocupados tinham dono, não sendo suficiente a inércia ou autorização das autoridades que se encontravam no local para simplesmente operar uma transferência de propriedade”.

Além disso, estão em causa zonas frágeis como é o caso das ilhas-barreira da ria Formosa que, como o próprio nome indica, “exercem o efeito barreira contra os processos de galgamento oceânico e de erosão provocada pelas ondas e pelo vento”. A tese científica, vertida para o processo, engloba as ilhas da Barreta, Armona, Tavira e Cabanas, bem como seis barras de maré.

O camaleão como escudo

Além do usucapião, o principal argumento destes proprietários é um bicho. O camaleão-comum (Chamaeleo chamaeleon) é uma espécie que, em Portugal, só existe no Algarve, com particular incidência na ria Formosa. Por ser um animal raro que corre risco de extinção, encontra-se protegido pela legislação comunitária. Os quintais das casas das ilhas-barreira, alegaram os proprietários, constituem o “habitat” para estes répteis. A câmara de Olhão, numa acção que interpôs contra a SPLRF para fazer suspender as demolições argumentou que o habitat do camaleão “localiza-se predominantemente nas árvores e arbustos existentes junto às edificações, plantadas para conferir frescura, sombra e alindamento do exterior dessas edificações”. Num primeiro momento teve êxito: parou o camartelo. Porém, falta conhecer o desfecho dos vários processos em curso.

Porém, a maior ameaça a esta espécie, dizem os cartazes expostos no Parque Natural da Ria Formosa (PNRF), é a “incessante pressão urbanística e turística existente em toda a faixa costeira algarvia”. No Centro de Interpretação do parque, durante este mês, pode ser visitada uma exposição de 15 aguarelas de Manuela Santos — uma arquitecta paisagista que deu cor e expressão artística aos movimentos deste animal. “O camaleão não é uma osga, não vive em casas — é uma espécie arborícola”, sublinha a pintora, acrescentando que outra das ameaças à sobrevivência da espécie são os atropelamentos.

Quem está agora no centro do fogo cruzado entre os interesses dos poderes locais e o cumprimento do Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) é o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes. Ao admitir, em Setembro do ano passado, que iria analisar “caso a caso” a lista das 369 casas de férias dos Hangares e do Farol — assinaladas pela SPLRF como estando situadas em zona de risco — deu alento a quem ocupou o espaço do Domínio Público Marítimo. E o certo é que, a partir desse momento, a lista do número das casas a derrubar ficou reduzida a 57, e criaram-se expectativas de que irá encolher ainda mais.

Além disso, os autarcas não cessaram as reivindicações para que seja revisto o POOC, procurando que este instrumento se ajuste à evolução dos tempos. Os Planos Directores Municipais (PDM), em fase de revisão, passarão a reunir os principais instrumentos da política de ordenamento, alegam.

O território onde se situam estas ilhas-barreira, do ponto de vista administrativo, está sob a dependência do município de Faro, presidido pelo social-democrata Rogério Bacalhau. Porém, quem assumiu, em declarações e manifestações públicas, a defesa e manutenção das casas clandestinas, no Farol e Hangares, foi o presidente da câmara de Olhão, António Pina, PS, que, entretanto, passou a administrador da Sociedade Polis, indicado pelos autarcas que fazem parte da estrutura accionista da empresa de capitais públicos.

Praia dos Tomates: perdeu a fruta, vai ganhar habitações     

A praia dos tomates, em Albufeira, é um daqueles sítios de tertúlia, em tempo estival, onde algumas figuras públicas “ministeriáveis” passam férias. O ponto de encontro habitual é o “Quebra-Côco” — um apoio de praia a cerca de dez metros de distância da arriba. Mas, este ano, pode ser o último Verão de convívio naquele espaço. O Tribunal de Portimão considerou que o terreno, sobre o qual a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) emitiu licenças de ocupação para uso balnear, pertencem ao Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado — Funditur, representado pela Sociedade Gestora de Investimento Imobiliário, S.A. O acórdão diz que o prédio encontra-se excluído do Domínio Público Marítimo “em virtude de já se encontrar na esfera de particulares pelo menos desde 31 de dezembro de 1853”.

A sentença, proferida em 27 de Outubro de 2016, transitou em julgado uma vez que o Ministério Público, em representação dos interesses do Estado, não apresentou recurso. Pedro Santana Lopes, António Guterres, João de Deus Pinheiro e, mais recentemente, Augusto Santos Silva, são algumas das figuras públicas que frequentam a praia dos Tomates. O nome terá surgido pelo facto de, em redor da praia, se fazerem plantações de tomateiros. A fruta desapareceu e o que existe agora são dois terrenos com cerca dez hectares já com propostas urbanísticas.

Os concessionários do “Quebra-Côco” pagam taxas às entidades que representam o Domínio Público Marítimo há 32 anos mas o direito de ocupação do espaço caduca em Dezembro porque afinal o dono era outro. De Vila Real de Stº António a Odeceixe encontram-se cerca de duas centenas e meia de infra-estruturas de apoio aos banhistas. O custo médio da construção destas estruturas provisórias anda entre os 200 e os 300 mil euros mas há casos em que chega ao milhão — caso do apoio de praia do Ancão (Quinta do Lago). A taxa cobrada pela APA, pela ocupação do espaço, é de 10 euros/m2, o que corresponde a rendas na ordem dos 500 euros/mês.

Este não é caso único de terrenos encostados à praia na posse de particulares. Na praia da Vilamoura (Rocha Baixinha nascente), o apoio de praia construído sobre as dunas pertence à Lusort No Alvor (nascente) há mais um caso, do grupo Pestana, e na praia da Falésia, Albufeira, o apoio de praia também se encontra em terreno privado.

Também a praia dos Pescadores, em Armação de Pêra, foi comprada pelo grupo hoteleira Vila Vita, há quatro anos, por 200 mil euros. O Estado teve oportunidade de exercer o direito de preferência mas não o fez. No areal, com 37.979 m2, encontram-se 55 unidades de apoio à comunidade piscatória e ainda um antigo campo de futebol, actualmente a servir de parque de estacionamento informal. A câmara de Silves anunciou um plano para requalificar o espaço, mas deparou-se com o facto de a praia ter um dono, que não deu o consentimento. Por isso, ao contrário do que chegou a ser anunciado, o projecto que seria submetido a candidatura aos fundos comunitários, não passou da intenção.

Entretanto, o grupo turístico fez ao município um pedido para construir um novo apoio de praia, o “Praia Dourada”, e a autarquia não pôde chumbar e licenciou. A praia pertencia à família Santana Leite desde 1913.