Ninguém sabe quantas pessoas morrem em casa em Portugal. Mas são cada vez menos

Só um quarto das pessoas vítimas de doença morre em casa ou em lares e casas de repouso. A maior parte - e foram 65 mil em 2015 - termina os seus dias nos hospitais.

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É uma espécie de efeito secundário do progresso: a maior parte dos portugueses morre nos hospitais. Um final que contraria o desejo da maioria — que gostaria de passar os últimos momentos da vida na própria casa ou em unidades de cuidados paliativos. A morte nos hospitais, que alguns especialistas dizem estar envolta numa conspiração de silêncio, vai ser objecto de debate em dois congressos que hoje arrancam no Porto e em Lisboa.

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É uma espécie de efeito secundário do progresso: a maior parte dos portugueses morre nos hospitais. Um final que contraria o desejo da maioria — que gostaria de passar os últimos momentos da vida na própria casa ou em unidades de cuidados paliativos. A morte nos hospitais, que alguns especialistas dizem estar envolta numa conspiração de silêncio, vai ser objecto de debate em dois congressos que hoje arrancam no Porto e em Lisboa.

“Actualmente, as pessoas vêm aos hospitais em dois momentos da vida: para curar-se e para morrer”, enfatiza João Correia, organizador do congresso de medicina interna que vai juntar no Porto 2500 participantes. Os médicos vão discorrer sobre muitas doenças e tratamentos extremamente sofisticados. Mas pelo meio há uma mesa-redonda para abordar “os limites do sofrimento humano e o papel da equipa de saúde”. É um sinal da mudança em curso, acredita João Correia, para quem a “qualidade da morte” nos hospitais ainda deixa a desejar.

Em Lisboa, o Instituto São João de Deus organiza um encontro de dois dias para falar de cuidados paliativos (alívio do sofrimento que resulta de doença grave, incurável e progressiva), um ramo da medicina que ainda é negligenciado. Com a criação da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos em 2016, estão a ser dados “grandes passos, mas vai ser necessário tempo”, admite a presidente, a médica Edna Gonçalves, que dá o exemplo do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra — tem centenas de camas e apenas um médico nesta área.

Mas para se saber o que se passa com os moribundos nas unidades de saúde, quais os cuidados que lhes são prestados e de que forma podem ser acompanhados pelo famílias, é necessário conhecer a realidade — e esse trabalho ainda está por fazer em Portugal. Era preciso que os hospitais nos abrissem as portas, nos fornecessem dados, defende Manuel Capelas, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. E era fulcral também que houvesse “vontade política” — porque acredita que os resultados desta avaliação vão implicar “mexer com muitas práticas”.

Aumentar

Esmiuçadas as estatísticas, percebe-se que bastaram poucas décadas para a situação se inverter em Portugal: se em 1970 quatro quintos das vítimas de doença morriam em casa, hoje cerca de dois terços terminam os seus dias nos hospitais. Em 2015, últimos dados disponíveis, foram mais de 65 mil as pessoas que pereceram vítimas de doença nos hospitais e pouco mais de um quarto morreram em casa (porque há ainda muita gente que morre noutros locais, como na rua ou em ambulâncias).

Em Portugal, porém, nem sequer é possível saber com rigor qual é a percentagem de pessoas que efectivamente morre em casa porque os dados misturam os óbitos no domicílio com os ocorridos em lares de idosos e casas de repouso. Um problema que deveria ser corrigido, defende Bárbara Gomes, investigadora e docente na Faculdade de Medicina de Coimbra que há 13 anos estuda estas questões.

A transferência da morte para o hospital não é um exclusivo português. No mundo dito rico, “a maior parte das pessoas morre no hospital ou num lar de idosos, depois de tratamentos agressivos e muitas vezes desnecessários”. Muitos “morrem sozinhos, confusos e, alguns, com dores”, sintetizava a revista The Economist num trabalho de fundo sobre a morte, no final de Abril.

Apesar de os cuidados em fim de vida estarem a melhorar, ainda há muito a fazer. Em  Portugal, dois problemas “cruzam-se e contribuem para uma situação explosiva”, lamenta Manuel Capelas, que está a terminar uma avaliação nacional que prova isto mesmo: além da baixa capacidade de resposta dos serviços, os profissionais de saúde não referenciam os doentes em fim de vida em tempo útil, por vezes apenas o fazem quando estes “entram na fase de morte iminente”.

Países inverteram tendência

O desfasamento entre o que as pessoas querem no fim da vida e o que acabam por vivenciar ficou patente no inquérito conduzido pela The Economist com a Kaiser Family Foundation. Amostras representativas de quatro países com demografias e tradições religiosas diversas (EUA, Brasil, Itália e Japão) revelaram tendências comuns. A maior parte das pessoas dizia querer morrer em casa, mas poucas acreditavam que será isso que vai acontecer. E ainda menos recordavam ter sido nestas circunstâncias — em casa —, que os seus familiares e amigos morreram.

E em Portugal? No estudo sobre Preferências e Locais de Morte em Regiões de Portugal em 2010, divulgado em 2013, Bárbara Gomes percebeu que, se pudessem escolher, e numa situação de doença avançada,  51% dos inquiridos preferiam morrer na sua casa, 1% na casa de familiares e amigos e 36% numa unidade de cuidados paliativos. Apenas 8,2% diziam então que preferiam morrer num hospital.

Num país que é um dos mais envelhecidos do mundo, será difícil inverter a tendência de longo prazo para a hospitalização da morte, acredita. Noutro estudo publicado em 2015, antevia mesmo que, se as tendências actuais não se alterarem, as mortes nas unidades de saúde continuarão a crescer — para um total de 74,6%.
Como contrariar esta tendência? Há países que conseguiram reverter a situação, como os EUA, o Canadá e o Reino Unido, diz.

Manuel Capelas considera, porém, que inverter esta tendência vai ser complicado. Seria necessário dar “um grande apoio aos cuidadores, um grande suporte a nível domiciliário, não basta criar um estatuto do cuidador informal” — que está em estudo há meses —, explica.

Para Bárbara Gomes, as equipas de cuidados no domicílio (ou comunitárias) podem fazer a diferença. Segundo a mais recente actualização de dados, há apenas 26. Esta é “uma grande lacuna”, assume Edna Gonçalves, que reconhece que a meta traçada para 2018 — ter uma equipa comunitária destas por cada agrupamento de centro de saúde — dificilmente será concretizada. “Não é só uma questão de dinheiro, mas também de falta de profissionais com formação”, acentua.