Estalei os dedos e sou blogger

Os alimentos mudaram de tal forma os nomes que às tantas não sei se falam de cremes ou de ingredientes. Fico sempre na dúvida se um crumble é para a pele ou é para matar a fome. Ainda ontem quase passei a farinha de linhaça quando estava para me barbear

Foto
Björn Söderqvist/Flickr

Era para escrever sobre o Salvador Sobral, mas hoje foi aquele dia em que só o meu gato não o fez porque nem sequer tenho gato. Ele é bom, a música é maravilhosa; mas o sufoco de opiniões foi ao limite, porque de repente toda a gente percebeu que era obrigatório escrever sobre o Salvador.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Era para escrever sobre o Salvador Sobral, mas hoje foi aquele dia em que só o meu gato não o fez porque nem sequer tenho gato. Ele é bom, a música é maravilhosa; mas o sufoco de opiniões foi ao limite, porque de repente toda a gente percebeu que era obrigatório escrever sobre o Salvador.

Foi por isso que fui à cozinha, demolhei um pouco de quinoa para dentro de um recipiente, ficou lá toda a noite para evitar um travo amargoso e depois disso ainda fiz uma mousse de chocolate de abacate e geleia de arroz para adoçar. Para tudo, utilizei sempre óleo de coco e manteiga ghee porque é "mara".

Senti-me rapidamente o maior porque é assim que hoje somos os "maiores", é a comer bonito, com ingredientes que tenham pinta quando soletrados e o paladar se sinta na melhor hashtag possível. Se tirarmos uma fotografia de cima para baixo e envolvermos o prato, com papas de aveia, frutos secos, no canto mais cool da mesa, é logo ali que o nosso cortisol começa a diminuir.

Os alimentos mudaram de tal forma os nomes que às tantas não sei se falam de cremes ou de ingredientes. Fico sempre na dúvida se um crumble é para a pele ou é para matar a fome. Ainda ontem quase passei a farinha de linhaça quando estava para me barbear.

Pessoa dizia: "Quem raciocina com intensidade e violência tem que expressar com descongestionamento" e é sempre aqui que eles pensam também que Fernando Pessoa era Nutricionista.

O radicalismo latente a este tipo de modas é naturalmente saudável, mas quando levado ao extremo, deixa de o ser. E é por isso que comer sempre massa de courgette com bróculos, sementes de canhâmo e caju não preenche o vazio de outro tipo de comidas que nos acrescentam outras proteínas; mas que depois vai-se a ver e têm um nome muito pouco top e podem ser tudo mas não são "mara”. O excesso, seja ele qual for, nunca é bom.

Depois disto vem o ginásio e até seria uma boa opção, se não fosse: Crossfit-treino funcional–hiit-zumba-corpo do caraças para ser a maior do Verão. E isto é apenas sinónimo de competitividade. "Importa lá se faz bem à saúde, desde que a Carlota se passe quando me vir daqui a três semanas. Hei-de ficar assim muito antes da bandeira azul"; e nunca antes trocadilho com baleia fez tanto sentido, em qualquer dos casos.

E os blogues? Caramba se nos perfilarmos para uma fotografia a olhar para o chão como se tivéssemos perdido cinco euros e os quiséssemos muito apanhar já somos bloggers; é isso e engravidarem todas ao mesmo tempo. Se repararmos há um boom de gravidezes de três em três anos e nem se explica isto, nunca se percebe se na altura saiu um produto “mara” que mistura fraldas e um creme anti olheiras num pack único e irrepetível ou é outra coisa.

De qualquer forma isto pode ser mais ou menos assim:

Acordam e acordam sempre mais gordinhas; portanto são logo 17 Insta Stories a explicar como se processa o pequeno-almoço que foi uma granola de frutos secos e sementes, mas tudo com açúcar stevia. Escrevi “açúcar”, desculpem. Ficam de repente muito cheias e não se come nada até ao almoço, depois são 48 Insta Stories com o abacate porque atenção: “Abacate é vida”.

O almoço é uma tapioca ou uma crepioca porque não têm glúten; ao brunch perde-se um pouco a cabeça e pode comer-se uma panqueca de aveia mas sempre feitas com trigo serraceno porque é top. Nunca falar em amendoim durante todo este processo porque “é do mal” e depois comer aquilo tudo num prato lavanda, se não for lavanda nem sabe igual.

Duas horas depois vem o primeiro crime, que são dois rebuçados de spirulina e a consciência nunca mais será igual, mesmo que já passem dois meses desde que se comeu aquela tablete com 90% de cacau.

Ao jantar e 379 Insta Stories depois vem então o skyr porque tem imensa proteína e é como comer argamassa às “colheradas”. No meio disso nunca nos podemos esquecer de espelta em tudo porque é a melhor espécie da família gramínea próxima do trigo, é imprescindível.

“Proteína, comer, saúde, mara, top, é vida”; não é uma frase, são palavras aleatórias quanto à importância, mas fazem parte do ritual que terá que ser levado ao detalhe ou deita-se tudo a perder. E isto tudo ainda se compreendia, mas deu-se então o aparecimento do jejum intermitente, que nem vou escrever sobre ele, porque já todos percebemos como funciona através dos Insta Stories.

Hoje em dia isso é imperativo: os Insta Stories substituem mesmo o Google. Para que é que se vai pesquisar acerca da dieta do paleolítico se está tudo ali, em vídeos rotativos de 15 em 15 segundos?

Mas o mundo volta a girar, desde que se centre no abacate; levantamos os olhos do chão e atiramos o casaco para trás das costas para a outra foto, bebemos um sumo detox, nunca podemos fazer menos de 30 Insta Stories e ao fim do dia vamos escrever sobre isto tudo no blogue porque temos um acordo para mais 30 pacotes de fraldas que não podemos perder e nunca se sabe se o nosso cão pode ser o escolhido para o próximo anúncio daquela marca que não sabemos bem o nome mas que tem as letras em fúscia.