Donativos dos fiéis ao Patriarcado desviados dos fins para que são pedidos

Bispo do Mindelo já manifestou a sua tristeza porque o nome da sua diocese foi usado pelo Patriarcado de Lisboa para apelar à generosidade dos fiéis na Quaresma de 2011.

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A Diocese do Mindelo, Cabo Verde, não viu uma moeda de cêntimo dos 245.719 euros com que os católicos da Diocese de Lisboa contribuíram para a chamada Renúncia Quaresmal de 2011, um peditório anual que o então cardeal patriarca, José Policarpo, anunciara ter como destino “outras igrejas mais pobres”, em especial a do Mindelo. O destino dos donativos da Renúncia Quaresmal constitui um dos segredos das Finanças do Patriarcado de Lisboa, cujos responsáveis se recusaram a fornecer ao PÚBLICO quaisquer esclarecimentos sobre o assunto.

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A Diocese do Mindelo, Cabo Verde, não viu uma moeda de cêntimo dos 245.719 euros com que os católicos da Diocese de Lisboa contribuíram para a chamada Renúncia Quaresmal de 2011, um peditório anual que o então cardeal patriarca, José Policarpo, anunciara ter como destino “outras igrejas mais pobres”, em especial a do Mindelo. O destino dos donativos da Renúncia Quaresmal constitui um dos segredos das Finanças do Patriarcado de Lisboa, cujos responsáveis se recusaram a fornecer ao PÚBLICO quaisquer esclarecimentos sobre o assunto.

Realizada anualmente em todas as igrejas do país durante a Quaresma (o período de 40 dias que antecede a Páscoa), a recolha dos fundos que os fiéis entregam aos párocos, habitualmente dentro de um envelope, no domingo anterior à Páscoa, tem sempre uma finalidade previamente anunciada pelo bispo local.

Embora essa finalidade seja muitas vezes apresentada de uma forma genérica pelos bispos, elencando vários destinatários, e recorrendo a fórmulas como “designadamente”, a divulgação da iniciativa pelas paróquias e pelos meios de comunicação da igreja define em geral qual o principal beneficiário da operação. No ano seguinte, o apelo à partilha quaresmal renova-se, mas os fiéis nunca sabem o que foi feito, em concreto, com os donativos reunidos no ano anterior. Prestação de contas é algo que ainda não está nos hábitos de muitas das estruturas oficiais da Igreja Católica portuguesa, apesar das tomadas de posição dos papas Bento XVI e Francisco em favor da transparência para com os fiéis e a sociedade.

No caso da Diocese de Lisboa, a mensagem quaresmal escrita em 2011 pelo falecido cardeal José Policarpo era especialmente vaga em relação ao destino a dar aos donativos que aí pedia aos fiéis. “A nossa diocese continuará fiel à já longa tradição da Renúncia Quaresmal. Que destinaremos, mais uma vez, à ajuda da Igreja de Lisboa a outras igrejas mais pobres e a necessidades particularmente gritantes no seio da nossa Igreja diocesana”, escrevia o cardeal, concretizando: “No momento em que um sacerdote de Lisboa, o padre Ildo Augusto dos Santos Fortes, foi nomeado bispo da Diocese do Mindelo, em Cabo Verde, as necessidades dessa Igreja terão um lugar privilegiado no nosso coração e na nossa generosidade.”

O jornal Voz da Verdade, órgão oficial da diocese, escreveu então, citando a comunicação do cardeal: “A Renúncia Quaresmal de 2011 vai reverter em favor da diocese do Mindelo.”

E a agência noticiosa da igreja, a Ecclesia, anunciou, na mesma altura, que “o Patriarcado de Lisboa vai encaminhar para a Diocese do Mindelo, em Cabo Verde, os donativos das comunidades católicas que vai recolher durante o tempo litúrgico da Quaresma, por decisão de D. José Policarpo”. 

Passada a Páscoa desse ano, porém, nunca mais se falou do assunto, nem sequer foi divulgado o montante angariado. Nalguns meios da Igreja, todavia, em voz baixa e em privado, algumas dúvidas surgiram. Do mesmo modo que surgiram a propósito dos donativos recolhidos noutros anos.

Para onde foi?

“Ninguém sabe quanto é que foi para a Diocese do Mindelo, nem sequer se foi alguma coisa. Num outro ano anunciaram que era tudo para uma associação de apoio a crianças, mas o dinheiro só apareceu muito depois e foi quase arrancado a ferros. Em 2015 disseram que era para a Comunidade Vida e Paz e para a Casa do Gaiato do Tojal, mas a Vida e Paz só recebeu 50 mil euros dos 250 mil recolhidos”, contou ao PÚBLICO, recusando ser identificado, um membro influente de uma paróquia de Lisboa.

Outros católicos preocupados com a pouca transparência da gestão financeira e patrimonial da Igreja, e que pediram igualmente para não ser identificados, apontam o veterano ecónomo do Patriarcado, o cónego Álvaro Bizarro, como o principal responsável por estas situações. Conhecido como o “ministro das Finanças” da instituição, Bizarro é definido como alguém que “faz o que quer com os bens da Igreja, sem prestar contas a ninguém, nem ao próprio patriarca”.

Álvaro Bizarro foi, aliás, um dos alvos de uma denúncia por alegada burla qualificada na Cáritas Diocesana de Lisboa, cujo fundamento está a ser investigado pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, conforme o PÚBLICO revelou em Março.

Patriarcado recusa esclarecer

Solicitada a esclarecer o destino dos fundos da Renúncia Quaresmal de 2011 e de outros anos, bem como o papel do cónego Bizarro no alegado desvio daquelas verbas para fins diferentes dos anunciados aos fiéis, a hierarquia da Igreja, através de um assessor de comunicação, Filipe Teixeira, limitou-se a informar, por escrito, no passado dia 30: “O patriarcado não está disponível para lhe prestar esclarecimentos sobre estes assuntos.”

No mesmo dia, contudo, o patriarcado publicou no seu site uma nota com o título “informação sobre as renúncias quaresmais”, na qual fornece alguns dados avulsos, por vezes incompreensíveis e contraditórios, que impedem uma análise clara por anos e destinos individualizados dos donativos recolhidos nas renúncias dos últimos seis anos.

Dos 245.719 euros reunidos em 2011, lê-se no texto, o patriarcado decidiu entregar um total de 50 mil euros à Diocese de Palai, na India, para ajuda à construção de um hospital, e usou 154.400 euros para “pagar a formação [em Portugal] de seminaristas de África (onde se incluem do Mindelo, Santiago e São Tomé e Príncipe) e da Índia, nos anos lectivos de 2010/2012”.

Dos mesmos 245.719 euros, acrescenta a nota, foi decidido “continuar a pagar a formação do clero autóctone desses países, como ‘ajuda às igrejas mais pobres’, tendo [o patriarcado] despendido em 2013/16 mais 605.600 euros”. Por último, a informação adianta que do mesmo total de 245.719 euros foram entregues à “Casa do Gaiato do Tojal, sem acordos com a Segurança Social, 80 mil euros”. 

Fazendo as contas, conclui-se, por via da confusa forma de apresentação das verbas, que, se assim fosse, o patriarcado faria o milagre de transformar o bolo de 245.719 euros recolhidos em apoios concedidos no valor de 890 mil euros.

Por outro lado, percebe-se que a Diocese do Mindelo, ao contrário do anunciado pelo Patriarca em 2011, não teve “um lugar privilegiado no coração e na generosidade” dos católicos de Lisboa: na nota agora difundida lê-se que parte do dinheiro foi usado na “‘ajuda da Igreja de Lisboa a outras igrejas mais pobres’, de entre as quais a diocese do Mindelo”. Directamente, todavia, não foi encaminhado para esta qualquer donativo, limitando-se o patriarcado a custear algumas das despesas dos três ou quatro seminaristas do Mindelo que frequentam os seus seminários, tal como fez com os mais numerosos seminaristas da diocese cabo-verdiana de Santiago, de São Tomé e Príncipe e da Índia, que também estudam nesses estabelecimentos.

Isso mesmo confirmou na semana passada o bispo Ildo Fortes, numa mensagem dirigida a um amigo — que chegou ao PÚBLICO através de terceiros e sem conhecimento do prelado —, onde diz que é uma pena terem-se servido dos pobres e do nome da sua diocese (sem nomear o Patriarcado de Lisboa) para apelar à generosidade e partilha privilegiada com o Mindelo, sem que lá tenha chegado o dinheiro. Em resposta ao PÚBLICO, no entanto, o secretariado da diocese recusou-se a prestar qualquer informação sobre a matéria. As repetidas tentativas então feitas para contactar directamente o bispo também não tiveram sucesso.

Números não batem certo

No respeitante à Renúncia Quaresmal de 2012 a nota do patriarcado diz que um “o montante de 286.251 euros” foi “destinado ao Fundo Diocesano Igreja Solidária” e que a sua gestão foi confiada à Cáritas Diocesana de Lisboa (CDL).

Sucede que o Relatório de Actividades da CDL relativo a 2012 dá conta do recebimento de 225.275 euros, entre Junho de 2011 e 15 de Janeiro de 2013, para o Fundo Diocesano Igreja Solidária e da entrega, em 2012, de 44.606 euros a 38 paróquias, através deste fundo, sem referir qualquer outro destino daquele total. No ano seguinte, os donativos atribuídos a partir do mesmo fundo somaram 39.537 euros. Em 2014 atingiram 49.012 euros.

Apesar dos valores despendidos nestes três anos com as paróquias não chegarem sequer a metade dos 286.251 euros angariados só com a Renúncia Quaresmal de 2012, importa notar que o financiamento daquele fundo diocesano foi assegurado, para lá dos donativos da Quaresma desse ano, com os lucros da recolha de roupa usada feita pela CDL e por dádivas de empresas. O PÚBLICO tentou esclarecer os mecanismos dos financiamentos no interior do patriarcado, mas não teve resposta.

Quanto a 2013, a nota do patriarcado diz que foram recolhidos 233.148 euros para “partilhar com igrejas irmãs (…) sem excluir situações de pobreza da própria família diocesana”. Uma vez mais, as contas apresentadas são incompreensíveis. Daquele valor, lê-se no texto, foram entregues 95 mil euros à Casa do Gaiato “para sustentação de cerca de 60 rapazes”, tendo ainda sido partilhados “com outras igrejas irmãs de Portugal, na formação dos seus alunos, entre 2010 e 2016, o montante de 646 mil euros”.

Já em 2014, a Renúncia Quaresmal proporcionou 285.950 euros para “apoiar a Ajuda de Berço”, sendo entregues, “por arredondamento, 300 mil euros” a essa associação. No ano seguinte, os 250.910 euros obtidos destinavam-se a “apoiar as instituições sociais diocesanas, designadamente as que acompanham os mais novos, como a Casa do Gaiato de Lisboa, ou pessoas sem-abrigo e fragilizadas, como a Comunidade Vida e Paz”. Deste modo, foram entregues 50 mil euros a esta última instituição, 10.910 foram para “resposta a necessidades emergentes”, 105 mil para o “Instituto de Beneficência Maria da Conceição Ferrão Pimentel”, conhecido pelo nome de Instituto da Sãozinha, e 85 mil para a “Casa do Gaiato do Tojal”.

Finalmente, em 2016, a Renúncia Quaresmal rendeu um total de 252.803 euros, que “será entregue a pessoas e instituições, no contexto da realização das obras de misericórdia, com o objectivo da valorização humana autónoma e livre dos beneficiários”.

Entre as entidades mais beneficiadas com os donativos quaresmais recolhidos pelo Patriarcado entre 2011 e 2015, no montante de um milhão e 274 mil euros, avultam assim a Casa do Gaiato de Lisboa, também chamada do Tojal, e o Instituto da Sãozinha, de Alenquer, que receberam 365 mil euros, ou seja 29%.

As duas instituições eram dirigidas havia vários anos, por decisão do cardeal José Policarpo, pelo padre Arsénio Isidoro, um sacerdote próximo do cónego Álvaro Bizarro e actualmente arguido num processo em que está indiciado pelo desvio de fundos daquelas instituições para a aquisição de bens de luxo, entre os quais um automóvel Porsche no valor de 150 mil euros.

Bispo do Mindelo diz que não recebeu nada

A gestão das Finanças do Patriarcado de Lisboa, assegurada há 25 anos pelo cónego Álvaro Bizarro, é indirectamente visada numa mensagem enviada pelo bispo do Mindelo, Ildo Fortes, a um amigo — após a publicação da nota do patriarcado sobre as renúncias quaresmais dos últimos seis anos — e que é do conhecimento de vários padres e leigos.

Dizendo-se triste com o que se passou, o prelado considera que se serviram dos pobres e do nome da sua diocese, em 2011, para apelar à generosidade e partilha privilegiada com o Mindelo, sem que lá tenha chegado o dinheiro.

Para além de afirmar que a diocese nada recebeu, Ildo Fortes — que não quis falar com PÚBLICO sobre o caso — explica naquela mensagem que o anterior patriarca de Lisboa prometeu ao seu antecessor, por escrito, que ofereceria a hospedagem a dois seminaristas do Mindelo por ano. As restantes despesas (propinas da Universidade Católica, saúde e tudo o que não é hospedagem e alimentação), são suportadas pela própria Diocese do Mindelo, afirma, sublinhando que, por isso mesmo, houve anos em que não mandou nenhum seminarista para Lisboa e que actualmente tem lá apenas quatro.

Tendo em conta que a hospedagem de um aluno nos seminários portugueses anda pelos três mil euros anuais, o bispo considera que o total gasto pelo Patriarcado de Lisboa com os seminaristas do Mindelo que frequentaram os seus seminários nos últimos anos representa uma quantia muito insignificante, quando comparada com os 245.719 euros da Renúncia Quaresmal de 2011.

De acordo com os dados disponíveis no sítio do patriarcado, o número de seminaristas de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e da Índia que frequentam actualmente os seus seminários é de 22 — número que não difere substancialmente do verificado nos anos anteriores. Quatro deles são provenientes do Mindelo, nove de Santiago (a outra diocese de Cabo Verde), três de São Tomé e Príncipe e seis da Índia.

Admitindo que cada um deles custa, no total, ao patriarcado quatro mil euros por ano (caso as respectivas dioceses não paguem nada, o que não sucederá com o Mindelo) a despesa anual fica-se pelos 88 mil euros, mas as contas do patriarcado não permitem confirmá-lo.

Em todo o caso, trata-se de um valor muito inferior ao total que o patriarcado afirma ter despendido: 154.400 euros para “pagar a formação de seminaristas de África e da Índia” entre 2010 e 2012; 605.600 euros “para continuar a pagar a formação do clero autóctone desses países” entre 2013 e 2016; e 646 mil euros para pagar a “formação dos alunos” de “outras igrejas irmãs de Portugal”, entre 2010 e 2016.

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