Em defesa da Baixa

A especialização no turismo é má para um urbanismo vivo e multifuncional, como sempre foi: torna-se uma ilha, corpo estranho à cidade.

Nestes últimos anos na Baixa os hotéis passaram de três para 21, as lojas de artesanato português de 24 para 17, as de souvenirs importados da Ásia, pretensamente representativos de Lisboa, passaram de nove para 90. Fecharam, por despejo ou por aumento de renda não comportável, 117 estabelecimentos, mais de 20% dos comércios existentes. Desde o início deste ano, chovem as denúncias de contratos por parte dos senhorios: Tabacaria Martins, Paris em Lisboa, só entre os conhecidos. Os emblemáticos restaurantes Palmeira, Central da Baixa, Fernando, Pessoa, o Bar Pirata encerraram não por falta de clientes, viáveis que eram, em normal funcionamento.

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Nestes últimos anos na Baixa os hotéis passaram de três para 21, as lojas de artesanato português de 24 para 17, as de souvenirs importados da Ásia, pretensamente representativos de Lisboa, passaram de nove para 90. Fecharam, por despejo ou por aumento de renda não comportável, 117 estabelecimentos, mais de 20% dos comércios existentes. Desde o início deste ano, chovem as denúncias de contratos por parte dos senhorios: Tabacaria Martins, Paris em Lisboa, só entre os conhecidos. Os emblemáticos restaurantes Palmeira, Central da Baixa, Fernando, Pessoa, o Bar Pirata encerraram não por falta de clientes, viáveis que eram, em normal funcionamento.

Esta especialização na hotelaria e no turismo está a esvaziar a Baixa de moradores e a expulsar o comércio local. Justificam-se para viabilizarem obras de restauro e reabilitação. Mas a maior parte das atividades recém-instaladas são-no em prédios não reabilitados: das grandes renovações, 16 foram para hotéis; 44 prédios foram para habitação, comércio, alojamento local; 11 para residências de luxo. Este último segmento virá a ser a próxima vaga de construção. Só por observação exterior, 22% dos prédios da Baixa precisam de obras, 31% aparentam aceitável estado de conservação e 46% não precisam ou já foram reabilitados. Prédios já despejados continuam expectantes e sem obras. Uma paisagem algo contraditória: prédios degradados, prédios pouco ou não renovados e prédios totalmente remodelados para residências ou hotéis. Denota-se a sistemática demolição do interior, só ficando a fachada.

 A estrutura pombalina desaparece e, com ela, azulejos, escadarias, gaiola anti-sísmica, telhados, sobrados — e um modo construtivo único! É isto reabilitar? O interior com as características do pombalino — azulejos, escadarias, gaiola anti-sísmica, telhados, sobrados — é de preservar. A manutenção da Ginjinha Eduardino ou da Ourivesaria Aliança em prédios renovados, conservando paredes graças a uma cofragem, são exemplo a seguir, pois “as paredes também falam”. E percebe-se agora porque não se prosseguiu com a classificação da Baixa e Chiado a Património da UNESCO em 2004: havia que preservar o edificado pombalino! Surgem fantasistas lojas, pastiches para turista ver! É construção anti-sísmica? Assiste-se a uma retoma da construção e do imobiliário, agora virados para o mercado externo.

A Baixa e todo o país tornaram-se um paraíso fiscal! A lei do arrendamento é o primeiro instrumento, mas não o único, dessa invasão de capitais e gentes. Por outro lado, desde 2014 que a classificação das Lojas com História se arrasta, com critérios de classificação pouco claros e vagos. Como justificar que a Paris em Lisboa, Manuscrito Histórico, Livraria Bertrand, Joalharia do Carmo, Ourivesaria Aliança, Ginjinha Rubi não figurem entre as primeiras classificadas? Será esta classificação garantia efetiva de proteção contra despejo ou remodelação?

Paralelamente à invasão de turistas, ocorre a abertura por indostânicos de lojas de recuerdos, o que associado às autorizações de imigração irregulares deixa supor um complexo processo de interesses. Mas a maior invasão é sem dúvida o da atribuição de vistos a quem “investe” em residências de luxo e a compra de quarteirões, prédios inteiros, por fundos e capitais estrangeiros, com isenções e benefícios fiscais. Surgem fantasistas lojas, pastiches para turista ver! Maisdo que gentifricação, substituição de moradores antigos de rendas baixas por novos residentes mais abonados, é uma substituição por públicos forasteiros, uns de curta permanência deambulando pelas ruas, outros em seus novos apartamentos.

Outro fenómeno: a substituição de antigas atividades, prósperas e dinâmicas, por novos negócios. Exemplo: a não renovação de arrendamento à Paris em Lisboa para dar lugar a mais uma Padaria Portuguesa é o exemplo de como novos negócios querem expulsar os já existentes, isto quando bem perto existe uma outra loja da mesma cadeia! Para quê trocar um estabelecimento de primorosa decoração, bela fachada, por uma padaria igual a tantas outras e sem valor estético? Percebe-se uma movimentação da câmara e do Parlamento em ano de eleições, para a classificação e proteção de Lojas com História, que tarda. A própria autarquia pouco tem feito através dos licenciamentos de novas construções, como em outras épocas o município levou a cabo e com sucesso.

A sobrecarga dos transportes públicos agrava-se: mal chegam para a procura local, quanto mais para os de fora! Elétricos cheios, quando outros passam, mais caros ou para circuitos turísticos. Não deverá a Carris comprar novas carruagens para o serviço público e afetar as antigas para serviço turístico?

Concluindo — a Baixa vive um abalo, não sísmico, mas global. Ao invés da Cidade do Panamá, onde os capitais se escondem em escritórios, aqui alojam-se em prédios renovados onde só a fachada pombalina subsiste para turista ver! A especialização no turismo é má para um urbanismo vivo e multifuncional, como sempre foi: torna-se uma ilha, corpo estranho à cidade. Reabilita o que estava em ruínas? Mas para quem e como? Para a construção civil e a especulação imobiliária retomarem os seus ganhos. Para tal impõe-se a revisão da lei do arrendamento. Os “pequenos” capitais mundiais também vieram, ocupando vãos de escada, pequenas lojas, num inverso caminho marítimo para a Índia, por indostânicos portadores não de especiarias, mas de recuerdos low cost, que ainda mais adulteram a imagem da cidade! Entram milhões? Mas quantos destes vão para os empregados na construção, hotelaria e restauração? Quanto para a melhoria de transportes? Quanto para a construção anti-sísmica? Quanto para a criação de museus, reabilitação do património, comércio, indústria, artes e ofícios? E para nova habitação “a preços locais”? E quantos desses milhões voltam a sair sem deixar rasto nem ganho?

Sociólogo