Na era Trump, “é arrepiante quão relevante se torna o fim da temporada” de Segurança Nacional

Em entrevista ao PÚBLICO, Howard Gordon, um dos autores de 24 e de Homeland, fala sobre como a "segurança da ficção" televisiva pode servir para processarmos a actualidade. Bush, Obama e o medo em duas séries.

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Howard Gordon foi produtor executivo de uma série que queria que fosse em parte uma espécie de espelho de feira popular, em que vemos os nossos princípios vergar à medida das circunstâncias e o nosso preconceito no preconceito dos outros. 24 criou um herói do vale-tudo para a era Bush e, um Patriot Act e duas guerras depois, os autores sentiram o peso dessa sua responsabilidade. Gordon voltaria aos temas do terrorismo e dos direitos humanos com Segurança Nacional, cuja 6.ª temporada passa às quartas na Fox – agora com uma mulher como Presidente eleita dos EUA e que abre guerra à CIA.

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Howard Gordon foi produtor executivo de uma série que queria que fosse em parte uma espécie de espelho de feira popular, em que vemos os nossos princípios vergar à medida das circunstâncias e o nosso preconceito no preconceito dos outros. 24 criou um herói do vale-tudo para a era Bush e, um Patriot Act e duas guerras depois, os autores sentiram o peso dessa sua responsabilidade. Gordon voltaria aos temas do terrorismo e dos direitos humanos com Segurança Nacional, cuja 6.ª temporada passa às quartas na Fox – agora com uma mulher como Presidente eleita dos EUA e que abre guerra à CIA.

Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência - é uma imprudência, admite Gordon em entrevista telefónica ao PÚBLICO a partir de Madrid. O produtor e guionista está a falar com a imprensa porque também 24 vai regressar – dia 6, a série em que cada episódio era uma hora das 24 retratadas por temporada surgirá refundada como spin off, chamado Legacy como nos filmes de acção, e com um novo herói afro-americano no centro.

As duas séries são a antítese do escapismo e da ficção televisiva que acompanharam três presidentes dos EUA. Estão entre as mais discutidas dos últimos anos e das que mais ecoam na actualidade internacional. Parte catarse a preto e branco, parte política de medo e tentativa de matizar com muitos tons de cinzento uma realidade pós-Torres Gémeas, só existem porque Howard Gordon e Alex Gansa, showrunner de Segurança Nacional, continuavam a questionar-se sobre o mundo – com “perguntas que só podiam ser feitas dez anos depois do 11 de Setembro”, garante Gordon.

São um formato original que se desdobrou em franchise (24) num canal aberto, a Fox, e uma adaptação de uma série israelita (Prisioners of War para Homeland) que encontrou na TV por subscrição da América o seu pasto ideal para alguns prémios e debate. Gansa e Gordon conheceram-se nas primeiras (e melhores) temporadas de Ficheiros Secretos, uma série que também regressou à actualidade há um ano, sem muito sucesso. 24: Legacy não é como Mulder e Scully a falar do Uber, destrinça Howard Gordon, mas será mais um exemplar de títulos conhecidos a tentar mais uma volta no carrossel da televisão da década.

Segurança Nacional captou o zeitgeist do medo do terrorismo e dos limites aos direitos civis – algo que já se fazia em 24. O terrorismo e os direitos civis ainda são o grande tema social americano?
A história continua a evoluir – invadimos dois países e a guerra teve um efeito dominó negativo em tantas coisas que se degradaram, como o nosso direito à privacidade... O que é espantoso é que, à medida que continuamos a avançar, a história se torna mais interessante. A degradação dos media, os problemas raciais na América, cyber hacking e Psyops [acrónimo para psychological operations, operações de manipulação da opinião pública] pelo Governo russo. Coisas que poderiam estar na nossa intriga agora tornaram-se reais. Por isso, não vejo que estejamos perto do fim da história. Estou espantado por estar ainda a contar estas histórias e em parte isso é porque olhamos para o jornal e metade da tinta é gasta nestes mesmos assuntos, todos os dias.

Por falar em realidade, na nova temporada de Segurança Nacional, a Presidente eleita é uma mulher. Estavam a tentar prever o resultado das eleições? Ou a tentar acrescentar diversidade à série?
Não foi tão simples quanto a [questão da] diversidade, nem estávamos cientes de que estávamos a contar com Hillary Clinton como Presidente eleita. A personagem é tão claramente não-Hillary Clinton – eu apoiei Hillary Clinton e ela era uma insider. Esta Presidente eleita, Elizabeth Keane, é uma iconoclasta e de certa forma é mais próxima de Trump na forma como abre guerra com algumas instituições. Nunca foi suposto ser Hillary Clinton, embora tenha de dizer que foi um pouco imprudente da nossa parte, e da parte de Alex [Gansa] em particular, porque nunca se sabe como a realidade vai mudar o significado e a ressonância da história que nos comprometemos a contar meses antes de ir para o ar. Neste caso, e como dizia ao Alex noutro dia, é arrepiante quão relevante se torna o fim da temporada.

Portanto, no actual clima Trump, a série tem camadas extra de significado? Em que aspectos? No que toca às liberdades cívicas?
Acho que sim. Quanto a tudo o que falámos – quão longe podem ir as coisas quando a civilidade entre as instituições está tão degradada, quando fermenta uma guerra civil entre as instituições, entre a imprensa e a presidência, entre as agências de informação e a presidência, com o Congresso... Não é algo único da história americana ou dos acontecimentos da actualidade, é algo que vemos vezes sem conta ao longo da história. Estou a ler A Ascensão e Queda do Terceiro Reich [de William L. Shirer] e é fascinante.

Fazer as duas séries, com temas tão sensíveis, na era Bush, na presidência Obama e agora no tempo de Trump, tinha de lhes ir dando tons diferentes?
24 foi criada antes do 11 de Setembro e era uma série sobre contraterrorismo. De repente, Jack Bauer (Kiefer Sutherland) e a nossa série, de uma forma trágica, foram beneficiários de tempos muito assustadores e traumáticos. Ele tornou-se, desde muito cedo, um herói de acção que tanto combatia a burocracia incompetente e corrupta como os terroristas – inicialmente, isso era muito catártico para o público. Mas a série tornou-se cada vez mais sombria para os críticos e para o público, à medida que a nossa resposta como país ao 11 de Setembro assumiu um tom mais negro – a invasão do Iraque e do Afeganistão, Guantánamo, [a tortura de prisioneiros no Iraque em] Abu Ghraib, e Jack tornou-se um foco de críticas à islamofobia. Mais perto do fim de 24 foi um grande desafio para avançar sem crucificar o Jack como um islamófobo e um torturador americano.

Segurança Nacional foi uma evolução dessa história, e Carrie Mathison (Claire Danes) é uma evolução dessa personagem. Agora, 24: Legacy e Segurança Nacional são séries muito diferentes. 24 está constrito de uma forma que não lhe permite as mesmas nuances e profundeza que Segurança Nacional, porque está limitada pelo tempo real. Encontrámos outros lugares para tornar 24: Legacy palpável e relevante com um herói afro-americano que é um soldado das guerras que já descrevi, um herói americano traumatizado pela guerra a quem pediram para travar e também pelo seu lugar na sociedade com um passado desafiante.

Tendo em conta o grau de reflexão e de autocrítica no trabalho nestas séries, o que pensa do peso que têm a televisão e as séries na última década na representação dos temas que abordam e na forma como contribuem para o debate social?
Quando são bem feitas e com um certo grau de consciência, as séries de televisão podem ajudar a pensar. Estamos a processar estes temas através dos títulos dos jornais, e o drama permite-nos processá-las de forma diferente. Temos a segurança da ficção, que é um pouco distante da realidade, mas também suficientemente próxima para por vezes [as digerirmos] como uma catarse ou meditarmos sobre elas. O nosso objectivo nunca foi sermos polémicos ou propagandísticos, sempre foi sermos reflexivos. Não se trata sequer de se ser equilibrado, mas humano. Mesmo um terrorista não acorda de manhã e pensa “sou um terrorista”. Como é que se apresentam como humanos pessoas que para nós, de forma redutora, são monstros?

Sobre 24: Legacy, tem dito que é a série certa para o momento certo – em termos televisivos e numa altura em que somos inundados por reboots e remakes, porque é que 24 tem a oportunidade de voltar agora?
Sempre nos questionámos, na sala dos argumentistas, se 24 é Jack Bauer ou [o seu dispositivo de que cada episódio passa em] tempo real. Felizmente nunca tivemos de responder a essa pergunta, até Jack Bauer ter chegado ao fim do seu caminho em 24: Live another day [minissérie de 2014]. Sempre fui um grande fã do tempo real como formato e isto não é um reboot, não é como Ficheiros Secretos. Isto é mesmo pegar num formato que penso que é duradouro e excitante e pôr lá novas personagens que esperamos que atraiam o público que gostava de 24, mas também todo um novo público que nunca viu o original. Espero que esta série incite um novo público a ir ver a série original. Temos a vantagem de um franchise familiar e a oportunidade de criar um novo.