Falsos amigos

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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Cá estão as afamadas voltas da vida e as mal-afamadas reviravoltas (a que os franceses chamam “volte-face”) a pregar-nos a partida de nos fazer falar de amigos falsos logo a seguir a uma homenagem, em forma tentada, a esses bálsamos espirituais que são os verdadeiros. Mas é urgente apontar o dedo a umas inconveniências linguísticas que vão crescendo, sustentando-se do nosso descaso colectivo e de uma fome insaturável de novidades que vão conduzindo a adoptar-se alegremente o que é dos outros, descartando-se o que é nosso.

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Cá estão as afamadas voltas da vida e as mal-afamadas reviravoltas (a que os franceses chamam “volte-face”) a pregar-nos a partida de nos fazer falar de amigos falsos logo a seguir a uma homenagem, em forma tentada, a esses bálsamos espirituais que são os verdadeiros. Mas é urgente apontar o dedo a umas inconveniências linguísticas que vão crescendo, sustentando-se do nosso descaso colectivo e de uma fome insaturável de novidades que vão conduzindo a adoptar-se alegremente o que é dos outros, descartando-se o que é nosso.

Em tempo de acesso fácil a material de informação, formação e entretenimento em inglês e de exposição cada vez maior à oralidade dessa língua, seja via séries de televisão, filmes, canções, jogos de computador, interacção com aplicações informáticas, há um “efeito de emigrante” que se está a disseminar, uma incapacidade de traduzir o que se ouve ou lê porque se está afastado do seu universo linguístico. Isto, por si só, já seria bastante extraordinário, considerando que falamos de indivíduos que não saíram da sua terra de origem, mas fica ainda mais extraordinário quando os mesmos indivíduos tiram a conclusão irrecorrível de que o que não sabem traduzir no momento, na passada, não é traduzível.

Entendamo-nos: dá muito trabalho ser tradutor; dá muito trabalho ser revisor. Não é coisa que se consiga fazer porque nos apetece ou porque, sentando-nos numa pedra de um jardim “zen”, absorvemos telepaticamente, em coisa de meia hora, a formação que o profissional vai adquirindo diligentemente ao longo de anos de consultas e de actualizações de ficheiros da memória, quando sucessivamente confrontado com problemas cuja solução não está pronta a tirar de uma prateleira ou de um dicionário electrónico. Não, não; é preciso ter conhecimentos, muitos conhecimentos (refiro-me a competências que resultam do estudo e da experiência, não a pessoas das nossas relações que têm o poder de nos dar trabalhos para os quais não somos qualificados). E tanto da língua de partida como da de chegada.

Aqui ficaria bem uma imagem em animação sem fim (um “gif”) de uma porca a torcer o rabo, para nos lembrar de uma dificuldade importante ou intransponível: como traduzir palavras que encontramos todos os dias em inglês para um português que não conhecemos? É claro que já ouvimos falar em dicionários, mas mesmo quem os consulta sem se cansar, como vai reter na memória essas equivalências se não lê suficientemente em português para ficar, pelo menos, tão familiarizado com palavras portuguesas como está com as suas correspondentes em inglês? E se passarmos às expressões idiomáticas, a conjuntos de palavras que são próprios de culturas, povos, países, regiões, como será?...

A tradução de textos e a sua respectiva revisão (controlo de qualidade) têm de ser levados mais a sério do que alguma vez o foram, se o foram. Com um telemóvel (um móvel que se controla a distância?...) na mão, cidadãos há que se transfiguram, talvez electrizados pela inteligência artificial do computador que uns técnicos conseguiram meter lá dentro (técnicos que estudaram um pouco mais de Engenharia, Física e Matemática do que é possível através de vídeos do YouTube). De repente, temos um cidadão-jornalista que filmou, na vertical, o incêndio do contentor de lixo, a inundação da rua e, embalado pelo sucesso, resolve escrever um blogue sobre política internacional e finanças públicas (há pessoas assim). Entusiasmando-se, pode muito bem passar a dar aconselhamento jurídico, divulgar receitas de bifes de cebolada “caramelizada”, lições de contabilidade, canalização em PVC, otorrinolaringologia, testes de resistência de lajes betonadas, comentários de opções tácticas futebolísticas e sentenças judiciais, sem qualquer pejo em demonstrar multissaberes adquiridos numa manta de retalhos de textos em inglês que encontrou na Internet e que verteu para uma espécie de português. É o português dos tais “falsos amigos”, ou seja, a correspondência automática entre as palavras mais parecidas de ambas as línguas, por ignorância. E é assim que a barraca se monta, até se atingir a real barracada, que atinge blogues, legendas, romances, ensaios, teses, discursos parlamentares.

São tantas estas ocorrências, que vai dar para fazer render o peixe, à moda das telenovelas, de modo a encher muitas crónicas, a não ser que os meus editores me peçam mais dinheiro para me deixarem escrever estes textos de fino recorte literário, a que já ouvi, nos corredores, chamar “marmelada”, o que é sempre doce.

Comecemos pelo verbo “to anticipate”. Não queria chocar ao afirmar que não quer dizer antecipar, mas antever, prever, esperar, aguardar e que, consequentemente, “anticipation” também não é “antecipação”, mas expectativa, antevisão, conforme o contexto. Acresce que o próprio verbo antecipar, em português, anda pelas ruas da amargura. Quando se diz que “Jorge Jesus vai fazer a antecipação do jogo Sporting-Belenenses” está a dizer-se, de facto, que Jorge Jesus tem poder para mudar a data do jogo para antes da que estava anunciada, quando o que se queria dizer era que o treinador vai fazer a antevisão do jogo. Antecipar é fazer antes do tempo; antever é ver antes do tempo.

Outro engano muito repisado é o de chamar “audiência” (do inglês “audience”) ao público que assiste a uma representação, conferência, concerto, filme ou programa de televisão. Chame-se assistência, plateia, auditório, mas não “audiência”, que é uma sessão em tribunal ou um encontro concedido pelo Presidente da República. As famosas “audiências” dos programas radiofónicos ou televisivos mais não são do que uma falha na tradução de “audiences”, ou seja, taxa de assistência, percentagem de ouvintes ou telespectadores.

Quanto aos famosos “rankings”, são tabelas. Tabelas classificativas, se se quiser.

Termino, por enquanto, com uma citação de um livro da minha infância, “Histórias de João Mindinho”, de Gondin da Fonseca (Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1945):

“— Tornarás cá, João Mindinho?

— Tornarei, tornarei!”

Correio premente

De Berenice Amador, freguesia de Pitões das Júnias, concelho de Montalegre: “Aproveito a oportunidade para me dirigir ao público do seu fórum da palavra para lhes pedir que, caso tenham alguns livritos esquecidos por casa, que os enviem por correio ou os entreguem quando vierem passear ao Gerês, pois a junta de freguesia está a tentar criar uma biblioteca para os seus fregueses. Obrigados.”

Faz muito bem. Eu também já tenho aqui alguns livros de lado que não me fazem falta, como o “Instrumentos de Regulamentação de Trabalho – 1978”, da Federação Nacional dos Sindicatos da Construção Civil e Madeiras, ou o “Mágicas de Salão”, do Prof. Nakaran, e mais uns poucos que estou a juntar numa caixa para futura expedição ao Gerês. Vamos mobilizar esta gente e fazer uma biblioteca.

De Artur Varatojo, lugar de Poças de Gonde, freguesia de Válega, concelho de Ovar: “Por que não aproveitar esse espaço para organizar um clube, um concurso de escrita e análise de problemas policiários que envolvesse um conjunto alargado de leitores, com encontros anuais de convívio, almoços e jantares, cantares à desgarrada? É só uma ideia…”

Encaminho o leitor e outros distraídos para as edições de domingo do PÚBLICO (em papel), em que o meu colega Luís Pessoa tem, há algum tempo, uma rubrica que corresponde na perfeição à sua descrição e anseios. No último domingo publicou-se o Policiário n.º 1328. Associe-se e desfrute!

De Maria do Rosário Fateixa, freguesia de São Clemente, concelho de Loulé: “Não quer o sr. organizar um concurso de quadras em honra do nosso poeta António Aleixo? Seria uma boa homenagem a alguém que não merece tanto esquecimento...”

Sou grande admirador de António Aleixo, cuja obra conheço de um exemplar que possuo de “Este Livro que Vos Deixo”. Gostaria de o homenagear, mas não posso organizar tal certame. Se conseguisse organizar os meus papéis, os meus livros e as minhas ideias, já me daria por muito satisfeito, o que quer dizer, na prática, que já poderia abordar a insatisfação seguinte de uma longa lista minha, inexoravelmente desorganizada. Replico: por que não chama a Senhora a si essa responsabilidade agradável, talvez com o concurso de recursos municipais? Prometo colaborar com uma meteórica participação como membro do júri de tal concurso (o das quadras), caso seja erigido.