Évora, a cidade invisível

Há 30 anos, o centro histórico de Évora foi classificado pela UNESCO como património da Humanidade. Não quisemos só ver pedras. Fomos à procura do património que está em quem a habita.

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"Encontrou a rua?” Não nos lembrávamos de lhe ter pedido indicações na véspera, mas o homem de bigode farfalhudo e avental preto, especado à porta do restaurante, assegura que sim. E remata: “Évora é como Roma: todos os caminhos vão dar à Praça do Giraldo.” Estamos precisamente a tentar ver a cidade romana, a que está e não está diante dos olhos.

O arqueólogo André Carneiro, professor na Universidade de Évora, conduz-nos por essa cidade oculta. “Vocês agora imaginem”, é um desafio que lança com frequência. É preciso “ver o não visto”. “Há uma série de camadas e nem tudo está incorporado na malha urbana actual. O esforço tem sido mais para a preservação do que existe do que para a descoberta de outras realidades que sabemos que estão aqui.” O que existe não é nada pouco, e foi suficiente para que há 30 anos a UNESCO tenha classificado todo o centro histórico de Évora como Património da Humanidade. Mas já lá iremos.

Entremos então na Ebora Liberalitas Iulia. Começamos por onde era inevitável começar: o Templo Romano, “o emblema máximo” que alimenta os guias turísticos tanto como o orgulho local. “É o elemento mais bem conservado da arquitectura romana [em Portugal], e está perfeitamente integrado nesta praça [Largo Conde Vila Flor], onde vemos vários séculos de história”: se imaginarmos um quadrado, de um lado está o Templo, à frente o Museu de Évora, um pouco abaixo a Sé; num dos lados a Biblioteca e o Convento dos Lóios, no outro o Palácio da Inquisição.

O monumento imponente, com as suas 14 colunas (eram 32) foi construído no início do século I d.C., mas aquilo que vemos é já uma reforma, efectuada menos de 100 anos depois, explica André Carneiro. O império romano passava por uma fase conturbada depois da morte de Nero, em 68; no ano seguinte dá-se início à dinastia dos Flávios. “A reconstituição da autoridade imperial tem um programa urbanístico — há uma reforma para embelezar as cidades, uma espécie de Programa Polis.” Aqui, neste templo, “substituiu-se o granito por mármore nos elementos decorativos... O mármore deu-lhe uma harmonia, uma imagem de autoridade e sofisticação”.

O mais provável é que o leitor pense que estamos a falar do Templo de Diana. E estamos. Ou melhor, estamos mas ele na verdade nunca foi um templo de culto à deusa da caça, como pretende indicar essa designação, “inventada” no século XVI, afirma o arqueólogo. A explicação para isso implica um salto (Évora obriga-nos a dar saltos constantes na história porque frequentemente a vemos entrecruzada no mesmo ponto geográfico). O rei D. João III passava aqui muito tempo e as elites locais começaram a fazer pressão para que a capital se transferisse para cá. “Um dos argumentos é que esta era uma cidade honorífica na época romana — não, era uma cidade modesta; Beja era bem mais importante... Neste ‘lobby’ de sensibilização do rei, um dos elementos são os monumentos romanos visíveis. A elite cria uma história com base num passado glorioso, para dizer que todas as figuras da história de Roma tinham passado por aqui”, incluindo a deusa Diana, “em termos figurativos, claro”.

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A reconstituição da autoridade imperial tem um programa urbanístico — há uma reforma para embelezar as cidades, uma espécie de Programa Polis António Carneiro

Seguindo viagem. Descemos uma rua, viramos à direita e não tarda estamos em frente ao arco de Santa Isabel. Um arco romano bem preservado que tem por cima, sobreposto, o arco da muralha medieval. Era a porta norte. Os blocos de granito de lado e as pedras do lajeado também são herança romana. “Aqui começava a cidade, para lá era o território rural.”

As escavações são difíceis de fazer numa cidade — a maior parte dos achados aparecem durante as obras urbanas — e ficam peças por estudar e resultados por divulgar, queixa-se André Carneiro. “Em qualquer buraco que se faça aparece um conjunto de testemunhos de várias épocas. Há múltiplas camadas aqui por baixo.”

Estamos agora no edifício da Câmara Municipal, um antigo palácio onde se encontra o que resta das termas. Uma espécie de sauna, com uma grande banheira circular com três degraus, rodeada por arcos, onde estavam as fornalhas para aquecer toda a área. “Era um espaço público e uma parte do itinerário de banhos quentes, tépidos, frios e com tratamentos de massagem. Era o grande lugar onde se conversava e faziam acordos, negócios, alianças.”

Não há vestígios visíveis da primeira muralha, construída no século I, mas há da que foi erguida no século IV, mais recuada, chamada ainda de Cerca Velha: “Não se sabe porquê, mas houve necessidade de encolher a cidade.” Se passarmos na Rua da Alcárcova de Cima podemos ver alguns testemunhos dela.

Não há como não reparar na Caixa de Água, construída em 1536 como se fosse um pequeno templo clássico — mais uma vez, “a recuperação da memória romana leva a fazer coisas intencionalmente falsas, um pastiche”. Mas “esse espírito do século XVI”, que tornou Évora a capital do Renascimento em Portugal, está ainda mais visível na Igreja de Nossa Senhora da Graça, com “uns homens barbudos sentados em cima dos pilares [no pórtico]: os titãs do imaginário mitológico clássico, que são guardiões desta igreja, que imita um templo grego ou romano... O imaginário pagão a conviver com as forças do clero”.

Este foi o “apogeu da cidade”. “Com D.Sebastião, Évora sai do mapa. Depois perde-se a soberania para os espanhóis e acaba tudo muito rapidamente.”

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Perceber quem somos

“A memória é das coisas que mais me interessam. Temos uma febre de guardar tudo e ainda não percebi se vale a pena — tem que haver equilíbrio entre o direito de guardar e o direito de esquecer”, diz António Bexiga. Não estávamos a falar de património edificado, pedras ou vestígios arqueológicos, mas de música. “Um povo sem memória não sobrevive. Ou sobrevive mas transforma-se noutra coisa. A música tradicional talvez sirva para nos pôr de pé, perceber quem somos.”

António Bexiga chega ao café Estrela D’Ouro com a sua viola campaniça na mão, vindo de um ensaio. É uma réplica de uma das mais antigas que se conhecem, “tem um som quase latão, rude”, como faz questão de mostrar. Nasceu em Évora, há 40 anos, mas a sua raiz está noutro lado, em Ferreira de Capelins, uma pequena aldeia junto ao Guadiana e junto à fronteira. Foi lá que passou a infância e início da adolescência. “Cresci no meio rural, diz-se que são os guardiões das tradições. Mas eu sou da raia, onde as coisas acontecem mais depressa.” Viu a série Verão Azul antes de toda a gente, e O Justiceiro era o El Coche Fantastico.

“Ninguém da minha geração cresceu com música tradicional. O maior contacto com a música popular era nos bailes da aldeia. Uma senhora vestida com mil saias a dançar o vira não era sexy.” A sua “praia” era o rock, e já em Évora, onde estudou piano na Academia dos Amadores de Música, tinha uma banda chamada Swamp. Era a época da MTV e dos videoclips. “Queríamos ser aquilo, não o rancho folclórico que representava o passado.”

Mas depois de andar “por muito sítio a pregar o associativismo” acabou por se encontrar com o tal passado. Encontrou-se com a viola campaniça, por exemplo. “Sinto que aquilo é meu. Faço um acorde e sinto que estou em casa.” A viola campaniça, com uma forma cintada, mais pequena, está muito ligada ao Alentejo. Para António Bexiga tem “um som de síntese”, de uma genética “muçulmana, judia, cristã e tudo o que não é nada disso”. “Senti que a minha história estava ali.”

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Um povo sem memória não sobrevive. Ou sobrevive mas transforma-se noutra coisa António Bexiga

Tocou com o grupo Uxu Kalhus, formou o Bicho do Mato (misturando rock com folk). Já andou o suficiente por aí para poder dizer: “Há sítio mais inspirador do que este, com tanta história para contar? Vivo no centro histórico e todos os dias descubro uma coisa nova, um detalhe, uma janela, uma torre que nunca tinha visto. E todos os dias encontro pessoas de todo o mundo. Há algum cosmopolitismo, à sua medida. Já toquei com pessoas do Cazaquistão, aqui, sem sair de casa.” Esse é, pois, o seu património da humanidade.

Depois da conversa com António Bexiga damos um salto ao Fórum Eugénio de Almeida, o antigo Palácio da Inquisição — Évora foi a primeira cidade do país a ter tribunal da Inquisição, em 1541, e estima-se que tenham sido ali julgadas 22 mil pessoas até à sua extinção, em 1821. No espaço onde antes eram celas e salas de julgamentos, há agora obras de arte para nos ajudar a reflectir sobre o mundo à nossa volta. Este ano, e não por acaso, a reflexão foi dedicada ao património: “Como é que a contemporaneidade pode pensar sobre o património?”, resume Filipa Oliveira, directora artística do Fórum.

A Fundação Eugénio de Almeida foi criada, há mais de 50 anos, para contribuir para o desenvolvimento regional nas áreas sociais, educativas, patrimoniais e espirituais. Porque por trás deste edificado histórico, “há uma pobreza muito grande e questões sociais complexas”, explica Filipa Oliveira. “Évora está dentro de muros, é uma cidade fechada. A cultura não tem um papel central na vida da cidade... A preservação do património tem uma importância muito maior do que a reflexão sobre ele.”

A propósito dos 30 anos da classificação, o Fórum organizou o ciclo de conferências Cidades Invisíveis —  nome inspirado na obra de Italo Calvino e a que fomos buscar o título desta reportagem. Dois antropólogos, Eglantina Monteiro e Pedro Prista, falam então de património. A primeira desafia a que se “patrimonialize tudo, o mundo inteiro, e depois logo se verá o que se exclui”. Já Pedro Prista centra o debate nas cidades, “onde há os recursos para a humanidade olhar para si mesma”. O património faz parte desses recursos, ao “estimular a nossa vontade de ser socialmente”.

Mas até um enorme templo romano se pode tornar invisível se não soubermos porquê e como precisamos dele. É preciso estimular o interesse e “evitar a noção ornamental, solene, altiva, como coisa visitada”, adianta Prista. Ou seja, precisamos de nos interrogar: que criatividade pode nascer a partir da curiosidade que o património nos suscita? Como fala connosco? Os recursos usados para a sua preservação geraram eborenses novos?

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A valorização foi feita de fora para dentro, criou orgulho aqui por haver um reconhecimento do exterior Ana Paula Amendoeira

Ana Paula Amendoeira, directora regional de Cultura do Alentejo, diz que a classificação “funciona como um espelho”. “A valorização foi feita de fora para dentro, criou orgulho aqui por haver um reconhecimento do exterior. E foi um contributo para a legitimação da conservação da cidade.” Na altura, nem se falava na consequência que agora parece evidente: o crescimento turístico.

“Ainda antes do 25 de Abril Évora era a chamada cidade-museu, já muito visitada.” Mas fora de muros havia uma outra cidade, cheia de casas clandestinas. E ao mesmo tempo que se candidatava Évora a património da UNESCO, pedia-se ao arquitecto Siza Vieira que construísse o bairro da Malagueira, para habitação social: “Foi a experiência mais fantástica de construção de uma cidade nova, provando que é possível construir habitação social com qualidade e bem pensada”, comenta Ana Paula Amendoeira. “Foi uma experiência fundadora”, que partiu de um processo participativo com a população.

Abílio Fernandes fala também na importância de criar condições de vida para as pessoas que viviam às portas da muralha — foi eleito presidente da câmara logo a seguir ao 25 de Abril, e passou os 25 anos seguintes à frente do município. “Não tinham água, não tinham luz, não tinham esgotos. Durante anos andámos a resolver os problemas de infra-estrutura básica para que as pessoas tivessem o mínimo de condições.”

Mas também se tornou claro que do lado de dentro havia um património para cuidar, e que incluía casas onde as rendas eram baixas e muitas vezes os senhorios tinham dificuldades em fazer obras. A autarquia aprovou então o primeiro plano director municipal do país, orgulha-se. “Definimos as prioridades e começámos a apoiar directamente as pessoas que viviam mal.” O passo seguinte foi apresentar a candidatura à UNESCO. “A classificação iria dar-nos o reconhecimento que tínhamos ali uma grande valia; e com essa valia poderíamos ir buscar fundos e apoios — o que nunca aconteceu, porque a classificação foi feita, mas não houve nenhum apoio financeiro.”

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A classificação iria dar-nos o reconhecimento que tínhamos ali uma grande valia; e com essa valia poderíamos ir buscar fundos e apoios — o que nunca aconteceu Abílio Fernandes

O centro histórico tem a sua população envelhecida, “pessoas que sempre cá viveram”, mas também uma classe média vinda de fora que escolheu comprar casa aqui: professores universitários, quadros superiores, afirma o vereador Eduardo Luciano, encarregado do Património. De qualquer forma, não é suficiente para conter o despovoamento. Na década de 1960 viviam dentro das muralhas 19 mil pessoas; actualmente são seis mil. Dos 4364 fogos, 1163 estão devolutos, indica a câmara, com base nos números recolhidos em 2011, quando foi feito o último levantamento. A população estudantil, duas mil pessoas, dá uma ajuda. “Faz a cidade mais viva, mais segura. Há gente em permanência na rua”, avalia o vereador.

Fora da muralha, é toda uma outra história. A zona residencial fica a norte, a oferta de emprego — com o parque industrial e as fábricas aeronáuticas — a sul. “Sempre houve duas cidades”, diz Eduardo Luciano. “As pessoas que moram a 100 metros das muralhas dizem ‘vou à cidade’ quando vão ao Giraldo.” Não tem dúvidas de que a classificação foi “um marco” e que o olhar sobre Évora mudou. “Não é um monumento, é um conjunto: prédios, edifícios, todas a trama da cidade velha... O que foi classificado foi também um modo de viver a cidade”.

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Na década de 1960 viviam dentro das muralhas 19 mil pessoas; actualmente são seis mil. Dos 4364 fogos, 1163 estão devolutos

Uma questão de escala

Uma cidade não é um organismo unicelular. Para irmos por um caminho deixamos uma infinidade de outros de fora. José Alberto Ferreira gosta de percorrer artérias pequenas, aquelas por onde não passam turistas, por onde não passa mesmo ninguém.

Encontramo-nos na Igreja de São Vicente, ao lado de uma rua onde agora os estudantes universitários assentam arraiais acompanhados de Coca-Cola e cervejas. De local de culto passou a depósito do Exército de Salvação Nacional, no início do século XX; nos anos 1960 foi devolvida à Câmara e com o 25 de Abril tornou-se um espaço cultural. É lá que está a Colecção B, uma associação cultural dirigida por José Alberto Ferreira, professor no Departamento de Artes Cénicas da Universidade de Évora. Programa exposições, promove debates, organiza ciclos de cinema (este mês foi dedicado a uma trilogia de Godfrey Reggio, numa “reflexão sobre as lógicas de desenvolvimento e choque”). Às vezes há teatro, outras concertos, para um público que é sobretudo feito de estudantes, professores, uma certa elite. Como o cenário era sempre o mesmo — o retábulo do século XVII — decidiu virar o palco para o outro lado, de costas para o altar.

Não são teológicas as suas inquietações (pelo menos as que partilhou connosco). “O nosso trabalho é a paisagem, as características poéticas do território”, que é sempre “o lugar da criação”. Daí ter organizado um festival chamado Escrita na Paisagem. Mais uma vez: havia teatro, havia música, havia dança... Até não haver dinheiro.

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Património é termos uma cidade com estas dimensões e podermos vivê-la nesta escala. As pessoas teimam em apostar numa escala maior José Alberto Ferreira

Começamos então a andar pela sua paisagem, a sua Évora. A dois passos dali há o Largo de Álvaro Velho, com dois imponentes jacarandás, que na Primavera ficam pintados de roxo. Do outro lado, a Pousada da Juventude. “Até ao ano passado era um largo vazio, com carros estacionados.” Agora tem esplanadas e está fechado ao trânsito. “Os largos pequenos são uma das qualidades da cidade que valia a pena limpar e requalificar.” Um dos exemplos disso é o Largo da Misericórdia, tão perto dali. Mais jacarandás ainda, “que dão uma bela sombra no Verão”. Em vez de ser zona pedonal, é zona de passagem automóvel, critica.

Mas não é só essa lacuna que o preocupa, longe disso. “Devia haver um programa de residências de escritores. É uma maneira de a cidade se descobrir através dos olhares dos outros, de se transformar.”

Nasceu em Coimbra, viveu no Porto, Évora só surgiu depois. E o seu “património” aqui são as “raízes rurais que a cidade teima em esquecer”. Por exemplo: todos os sábados de manhã juntam-se no mercado municipal vários produtores locais. Cada vez há menos, diz, “porque as pessoas mais facilmente vão ao hipermercado, não procuram essa produção”. “Património é termos uma cidade com estas dimensões e podermos vivê-la nesta escala. As pessoas teimam em apostar numa escala maior.” A cidade não tem um centro comercial, vários residentes se queixam, mas em contrapartida, “o que é que isso permite que a cidade seja?” Permite que “as ruas estejam cheias de lojinhas, que o carro fique do lado de fora e que se entre na muralha para fazer compras”, enumera. “Não viver essa escala é perder um património. A cidade precisa de um programa educativo que explique o valor da pedonalidade, do consumo local, da relação directa com o território, com o ambiente.”

Atravessamos a Rua da Alcárcova de Cima, estreita, “um caminho de fuga”. Passamos pela Fábrica dos Pastéis onde Inácia Junca recuperou uma receita antiga e faz uns pastéis de nata estaladiços. O café, que tem como boa parte da parede interior a muralha romana, “corre o risco de se tornar um hit e deixar esta rua impraticável”, prevê José Alberto Ferreira.

Gosta de percursos que “passam pelos sítios certos mas pelas vias pequeninas — cendeiros, como se diz no Alentejo para os caminhos estreitos do campo”. Não tarda estamos no Templo Romano. Voltamos a descer. Entramos na Rua de São Joãozinho — “a menos frequentada da cidade”, um pequeno beco que liga a zona da Sé ao Largo da Misericórdia e que, talvez por não ser lugar de passagem frequente, tem paredes grafitadas. “Nunca me cruzei aqui com ninguém”, afirma.

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A memória não é dispensável

Os turistas não tomaram ainda conta de Évora, mas estão em massa nas vias mais centrais. “Não podemos ser apenas os agentes do turismo, dos que têm interesses económicos. Isso é redutor”, lança Ana Paula Amendoeira. “Tem que haver educação patrimonial, cultural. A história do nosso território tem que ser ensinada e aprendida. Só valorizamos o que conhecemos e o que nos interpela. A história e a memória não são nunca dispensáveis.”

É um pouco por causa disso que todos os sábados de manhã, às 11h30, quem quiser pode entrar no número 8 da Rua da Corredora, onde mora a associação É Neste País, e ouvir uma história. E “todos os ouvidores podem ser contadores”, diz Gertrudes Pastor. No sábado passado foi uma mãe com o filho de oito anos. Há uma caixa onde cada um deixa o que quiser e que serve para convidar contadores de fora.

O cartaz com a programação mensal está à porta, e todos os meses ele alude a uma história tradicional (a deste mês é a galinha dos ovos de ouro). Na hora do conto há biscoitos feitos ali — “É como em casa da avó”, afirma a anfitriã. “Trabalhamos a nível da comunicação, da promoção da leitura e da tradição oral... Acrescenta-se ao património construído este património imaterial”, explica. Todos são envolvidos, desde as crianças, nas escolas, aos mais velhos, nos lares — “para dar a ouvir a ouvi-los a eles”, recuperando uma tradição oral que também está em risco de se perder.

Manuel Dias também faz parte da associação — ele e os seus bonecos. Os Robertos — o toureiro a cavalo, o fadista, o forcado, o touro, o diabo... — e todos os outros que de vez em quando desperta do sono. Marionetas, cabeças de madeira, luvas, lenços, tudo pode transformar-se em vida humana.

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Eles têm um fragmento de vida cada vez que mexo neles. Só assim resulta com o público. Sabemos que não estão vivos, mas há este jogo Manuel Dias

Na oficina, que fica no mesmo espaço da associação, há um palco com panos pretos, onde se fazem alguns ensaios. É também aqui que constrói as suas marionetas. Mostra uma que está em “esqueleto”, com o mecanismo para pegar e manipular bem à vista, sem roupa. É um objecto complexo e manipulá-lo é como tocar um instrumento.

Muitas vezes há música a acompanhar as suas actuações — ao vivo (António Bexiga é um dos músicos com quem trabalha) ou gravada. Não há textos, mas há uma narrativa, que gira muito à volta do bem e do mal, da vida e da morte. “A morte é uma coisa que marca os marionetistas. Temos uma relação difícil com os bonecos: quando morremos não sabemos o que lhes vai acontecer. Eles têm um fragmento de vida cada vez que mexo neles. Só assim resulta com o público. Sabemos que não estão vivos, mas há este jogo.”

Os Robertos são a sua ligação mais imediata à tradição — tem a palheta para fazer a voz metálica característica dos bonecos, e a cana de bambu rachada para tornar sonoras as pancadas que eles dão uns aos outros. Mas neste momento interessa-lhe também, se não mais ainda, o lado experimental. Em qualquer dos casos, é tudo uma grande brincadeira: “Nós não fazemos espectáculos, brincamos.”

Animais com artes

O sol voltou, depois de um dia inteiro de chuva miudinha. Ao final da manhã, a esplanada do café Arcada, na Praça do Giraldo, enche-se de gente. Velhotes lêem o jornal em bancos virados para o sol. O vendedor de castanhas vai agitando o assador. Passam crianças da creche em fila indiana, passam homens de pasta na mão, passam mulheres apressadas, jovens de mochila às costas. Aqui e ali há pequenos grupos de gente à conversa.

Deste largo parte a Rua 5 de Outubro, que começa com a livraria Nazareth (1897) com livros de cozinha e tricot na montra. Toda a rua é um mar de cortiça para os turistas. Há poucas excepções. Há a Gente da Minha Terra, uma loja de artesanato com produtos da região, e a livraria Fonte das Letras, que tem à porta uma máquina que vende poemas a troco de uma moeda de 50 cêntimos, como aquelas de onde antigamente saíam bolas de pastilha elástica. Calhou-nos Sentimento de um ocidental, de Cesário Verde. Geralmente, a montra passa alguma mensagem sobre o momento que se está a viver. Um dia depois de Donald Trump ter ganho as eleições presidenciais americanas, está toda vermelha, e entre os vários livros encontramos o Manifesto Surrealista de André Breton.

Foi também à volta de livros que começámos a conversa com o fotógrafo José Manuel Rodrigues. Marcou encontro na Biblioteca Pública, um edifício do século XIX com uma sala de leitura sossegada, forrada de antiguidades. “Foi aqui que li os meus primeiros livros proibidos [antes da revolução]. Tinha cá um amigo. Passei aqui muitas tardes.”

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Os eborenses têm a cidade como o centro do mundo. Somos uns animais com algumas artes, mas é tudo José Manuel Rodrigues

José Manuel Rodrigues era bem pequeno quando os pais se mudaram de Lisboa para uma quinta às portas de Évora. O pai, que não gostava que ele andasse pela biblioteca, queria que fosse trabalhar para a sua fábrica de vidros e espelhos; ele escolheu os espelhos, sim, mas de outro tipo. Aos 17 anos, partiu para Paris, depois para a Holanda.

Quando regressou definitivamente, em 1995, foi em Évora que se instalou. Fotografava a cidade de forma exaustiva, sistemática, quase como um documentalista obsessivo: igrejas, conventos, o património edificado, “dificilmente haverá sítio onde não tenha estado”. Mas não era pelo que lhe diziam as pedras. “Interessei-me sempre pela vivência das pessoas. O património existe desde que esteja ligado a pessoas e elas saibam tirar lições dele.” No seu caso, as ruínas, as fendas, as frestas, deram-lhe “asas para interpretar a parte histórica e ver a sua utilização através do tempo”. E se o fez com todo aquele método foi para o “obrigar a cumprir” a sua “missão de fotógrafo”. No processo, a memória emerge: “Um pequeno detalhe mostra-nos uma coisa muito grande.”

Também apontou a câmara para as pessoas “que tinham um conhecimento ancestral fantástico, tinham aprendido com mestres” e conservavam uma memória que se arriscava a perder-se. “Eram trabalhadores manuais, com um conhecimento muito profundo das coisas e comecei a fazer retratos: ferreiros, carpinteiros, marceneiros. A cidade estava cheia deles.” Agora, resta muito pouco disso.

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Saímos da biblioteca, passamos a Igreja do Espírito Santo, bem ao lado da Universidade (que em 1559 se tornou na segunda do país). José Manuel Rodrigues gosta particularmente da sacristia, com os seus frescos sobre a vida e morte de Santo Inácio de Loyola. Mas a igreja está de portas fechadas, por isso só nos resta descer a rua. Aponta em frente, bem para lá dos muros, para a Ladeira da Boa Morte: “Aqueles campos tiveram uma enorme influência em mim.” Todos os dias os atravessava para ir para a escola: cinco quilómetros a pé. “Fortaleceu muito o meu lado poético, o admirar as coisas.”

No caminho, passava pelo Matadouro, espreitava por uma fresta e via os animais a serem puxados com cordas, o sangue a escorrer no chão. Desde 1985, o espaço é outra coisa. Pedro Fazenda abre-nos a porta. Dezenas e dezenas de esculturas espalham-se pela antiga fábrica de morte, ocupam as traseiras onde cresce vegetação selvagem, invadem o edifício, agora sem telhado, onde antes os porcos eram abatidos. Há alguns vestígios da utilização anterior, mas as vidas das pedras falam agora mais alto. Quem quer chega e desenvolve o seu projecto. O importante é aproveitar o espaço para que haja “um jogo com a comunidade”.

Para José Manuel Rodrigues, Évora também são os cafés e os clubes. Como o de pesca, por onde se entra através de um logradouro de um palacete, com carros estacionados, para encontrar um pequeno bar, uma mesa de snooker e uma vitrine cheia de troféus. Locais “onde os turistas não entram”. Estamos a caminho da Casa de Vasco da Gama, com os seus frescos num claustro ao ar livre, do século XVI, com uma temática mitológica e naturalista, que inclui um dragão de sete cabeças, sereias, tigres e serpentes... Tudo isto impossível de fotografar: “Nunca se consegue a cor certa.” De qualquer forma, não era por isso que o fotógrafo aqui vinha com tanta assiduidade quando era jovem. “Isto era um paraíso, um refúgio na cidade, um sítio onde se conseguia estar isolado. O jardineiro era da Madeira e trouxe a ilha para aqui. Isto estava cheio de plantas. Claro que os frescos sofriam com isso.”

Imaginamo-lo aqui sozinho a imaginar partir. De um lado a terra, as raízes; do outro, as viagens e o salto para o desconhecido dos frescos infotografáveis. “Os eborenses têm a cidade como o centro do mundo”, observa José Manuel Rodrigues. E logo a seguir relativiza: “Somos uns animais com algumas artes, mas é tudo.”

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Espaços culturais

Fórum Eugénio de Almeida, Largo do Conde Vila Flor, Tel.: 266 748 350

É Neste País, Rua da Corredoura, 8, Tel.: 266 731 500

Colecção B, Tel.: 931 763 350, jaf@escritanapaisagem.net

Sociedade Harmonia Eborense (SHE), Praça do Giraldo, 72

Onde comer

Café Alentejo, Rua do Raimundo, 5, Tel.: 266 706 296

Botequim Da Mouraria, R. da Mouraria 16, Tel.: 266 746 775

O Combinado, R. de Machede 95, Tel.: 266 700 627

Onde dormir

Opções não faltam e o posto do Turismo de Évora pode dar uma ajuda. Fica na Praça do Giraldo, 73; tel. 266777071.