João Tabarra pensa as imagens com as imagens

4.56.29 é mais do que um regresso ao cinema. Nas galerias da Solar Arte Cinemática, em Vila do Conde, a partir de um trailer de um filme de Godard, o artista português convida-nos a pensar as possibilidades da imagem como representação e coisa material.

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Imagens, sons, escuridão, luz. Desde os finais dos anos 90 que a obra de João Tabarra se faz na teia destes elementos, quando filma, quando coloca as imagens em movimento, reaproximando-se do cinema e da sua história. E eles aí estão em Vila do Conde nas galerias da Solar Arte Cinemática, em sete vídeos, sete revelações no espaço. Para os encontrar, o espectador terá que aceitar o repto: ver, ler, ouvir. E se possível, imaginar a presença muda de um outro autor e artista: Jean-Luc Godard. É num pequeno filme do cineasta suíço, do trailer de Número Deux (1975), que se descobre a origem desta exposição. Tabarra foi desafiado e desafiou-se a apropriar-se desse material, numa reinterpretação dos gestos e das figuras projectadas, publicitando uma outra leitura, a sua.

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Imagens, sons, escuridão, luz. Desde os finais dos anos 90 que a obra de João Tabarra se faz na teia destes elementos, quando filma, quando coloca as imagens em movimento, reaproximando-se do cinema e da sua história. E eles aí estão em Vila do Conde nas galerias da Solar Arte Cinemática, em sete vídeos, sete revelações no espaço. Para os encontrar, o espectador terá que aceitar o repto: ver, ler, ouvir. E se possível, imaginar a presença muda de um outro autor e artista: Jean-Luc Godard. É num pequeno filme do cineasta suíço, do trailer de Número Deux (1975), que se descobre a origem desta exposição. Tabarra foi desafiado e desafiou-se a apropriar-se desse material, numa reinterpretação dos gestos e das figuras projectadas, publicitando uma outra leitura, a sua.

O projecto começou não no isolamento do artista, mas no contexto de um diálogo, iniciado em 2012 com Nicole Brenez, programadora e historiadora francesa de cinema. “[A Nicole] tinha encontrado o trailer, que se julgava perdido e, depois de falar com o Godard, decidiu confiar-me a tarefa de trabalhar com as suas imagens. Insistia que eu tinha a sensibilidade para o fazer”, revela o artista. Conhecedor da filmografia do cineasta (incluindo a politizada, do Grupo Dziga Vertov), Tabarra aceitou a proposta. E depois de receber o negativo do filme, dedicou-se, durante ano e meio, ao estudo da banda sonora, dos sons, dos fotogramas, incluindo aqueles a que o espectador não tem acesso. Gesto temerário, atendendo à raridade e ao peso simbólico das imagens: “Representam um tesouro da história do cinema e da história das imagens materiais”, considera Nicole Brenez. “Cheguei a propor ao Jean-Luc Godard que as abordasse, mas ele já só trabalha com o digital. Então, pensei de imediato no João [Tabarra]. Sabia que compreenderia as possibilidades fantásticas desta criação e confirmei essa ideia quando vi a instalação final que ele nos deixou a partir das bobinas”.

O íntimo para abordar a política

4.45.20, é este o nome da exposição (aludindo à duração de cada vídeo), pode começar assim que se entra na Solar. Do lado direito, vê-se ao fundo, no escuro, uma criança que escreve num quadro de ardósia a frase “avant d’ être née, j´étais morte (antes de ter nascido, eu estava morta)”; é uma imagem que se duplica, que se multiplica, que se amplia até ocupar toda a tela, para logo desaparecer. Negro e branco, aparecimento e desaparecimento alternam, sem que o espectador se possa aproximar. “É o único filme que coloquei numa sala fechada”, explica Tabarra. “Considerei que poderia funcionar numa sala que, na realidade, é uma montra. Procurei evocar a experiencia do cinema e do vídeo”. Refira-se que para ver melhor, as pessoas têm de colocar os corpos sobre o vidro: só então as suas sombras revelam a criança e a frase.

Concebidos a partir de imagens da autoria de outro artista, os filmes de Tabarra espelham uma inquietação que têm vindo a pautar o seu percurso. Não desiste de pensar a imagem enquanto superfície e matéria, como veículo de propaganda e espectáculo, contra uma pergunta repetida e legítima: de que modo pode ainda a imagem responder às questões mais prementes e dramática do nosso tempo? não resolve este dilema, mas recorrendo às categorias que Nicole sintetizou num artigo dedicado ao filme de Godard, leva o espectador a confrontar-se com o som da fita, com a manipulação associada à câmara, com a impermanência dos gestos dos actores, com a materialidade do cinema, com a sua inocência e as suas mentiras. Do trailer, selecionou passagens e cenas, acrescentando-lhes loops, cortes, interrupções, sobrepondo umas imagens às outras ou imobilizando actividades e gestos (vemos uma idosa que descasca batatas, uma família que vê televisão, um mulher que se masturba). Convém recordar que a segunda parte de Número Deux documenta o quotidiano de uma família da classe média-francesa, observando e discutindo a sua vida económica e sexual. Ora Tabarra, sem prescindir da dimensão política, salienta outros sentidos, outras palavras: “O seu trabalho fotográfico e fílmico tem vindo a privilegiar o íntimo, de um ponto de vista irredutivelmente singular, para abordar a política”, diz a historiadora. “Não fiquei, por isso surpreendida, ao ver que ele tinha elegido, com as possibilidades oferecidas pelos fotogramas, pelos sons e os intervalos da banda sonora, os motivos relacionados com a família e a infância”. Tal decisão surge na sequência de Discrépance, instalação apresentada em 2014, em que o artista consagrava aos pais uma homenagem silenciosa, conciliando a crítica das imagens com os sentimentos. Nos sete filmes da exposição, pressente-se o mesmo cuidado, a mesma sensibilidade. Erect a barrier agains conventional images conclui-se com a imagem fixa de crianças que olham para alguém que se encontra fora de campo; noutro vídeo, vemos, a sombra protetora, mediativa de um velho (podia ser Nicholas Ray, podia ser um pai, um avô), debruçada sobre a família (ou serão apenas as crianças?) que assiste a um jogo de futebol na televisão.

Ficar ou fugir

Não se vislumbra, contudo, qualquer condescendência ou a autoridade de uma direcção unívoca em termos de interpretação. O seu olhar permanece intransigente, complexo, não deixando ao espectador outra alternativa que não ver e pensar. Na sala, onde se encontra o vídeo symbolize the way in wich ideology darkens the world, escutam-se pássaros e crianças, experiência que parece contrariar a solidão da mulher que se masturba; mas essa afigura-se, na opinião de Tabarra, talvez uma leitura precipitada: “Tentei trazer o espectador para um espaço de privacidade, de intimidade, de protecção que acabo por revelar como difícil ou mesmo impossível. A composição sonora vai-se tornando cada vez mais agressiva. É como se os pássaros aumentassem de número e as crianças que gritam, já não as ouvimos a falar, choram apenas”. Os sons familiares tornam-se irreconhecíveis, em vez de um refúgio, a instalação torna-se um espaço inóspito, quase infernal.  Ficamos ou fugimos?

A simplicidade das imagens de João Tabarra é enganadora. As crianças que aparecem em dois filmes não remetem para qualquer inocência, mas confrontam-nos com a complexidade e riqueza da realidade, porventura algo que cinema ainda sabe conservar e mostrar. É nesse sentido que Nicole Brenez identifica um parentesco. “Julgo que esta exposição, embora assegurando a sua especificidade, pode ser filiada na tradição experimental daquilo que chamo um estudo visual. Uma forma de observar as imagens com os meios da própria imagem e na qual se incluem não apenas Godard, mas também Ken Jacobs, Ange Leccia, Birgit & Wilhelm Hein, Harun Farocki, Peter Tscherkassky, Tacita Dean, Dominique Gonzalez-Foerster, Thom Andersen, Jean-Gabriel Périot”.

Colocar Tabarra sob qualquer campo ou categoria exige cautela. As suas investigações da imagem, a relação que constrói e cultiva entre a realidade e a técnica, o seu incessante questionamento, como artista, das condições políticas da vida, o seu amor céptico pelo cinema, colocam-no num território que, não sendo fechado, não pode ser definido com certezas. Uma coisa permanece evidente: ele continua a cultivar o cinema como uma arte daquilo que aparece, ajudando-nos a combater a violência de abstracção. A sua obra, como o melhor cinema, opõe-se à simplificação radical das figuras, ao reconhecimento imediato, por meio dos clichés, ao excesso de arquétipos, ao mesmo tempo que, sublinha Nicole Brenez, “aponta à complexidade infinita dos fenómenos sem os resolver ou alcançar”.