Um caminho para a felicidade

África está em destaque na programação deste ano e isso não se esgota em artistas africanos. Percurso por alguns momentos chave.

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FOTO: Malick Sidibé

Malick Sidibé - La Vie en Rose

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Malick Sidibé - La Vie en Rose

É impossível falar de fotografia em África sem referir o nome de Malick Sidibé. Testemunha e intérprete fundamental da vida do Mali após a independência, o fotógrafo tem um lugar central nos Encontros da Imagem não só pela sua importância histórica como pela dimensão da retrospectiva que é convocada para assinalar a sua obra.

La Vie en Rose, a exposição que o festival de Braga apresenta no Museu da Imagem, tem curadoria de Laura Incardona e Laura Serani, co-directora da bienal africana de fotografia Les Rencontres de Bamako, tendo sido apresentada originalmente em Itália na Collezione Maramotti, há seis anos. É agora reposta como forma de homenagem a Sidibé, que morreu em Abril deste ano.

Abre com uma contextualização histórica e social sobre o Mali nos anos 1960 e 1970, décadas em que a obra de Malick Sidibé assume particular relevância. E esse enquadramento é importante para sublinhar que anos são aqueles no país que se tornou independente em 1960. É nesse mesmo ano que o fotógrafo começa a trabalhar como freelancer, criando o seu próprio estúdio de fotografia dois anos depois, a partir do qual vai registar uma comunidade em mudança.

Nos três pisos do Museu da Imagem propõe-se um percurso por cerca de 50 fotografias tiradas naquelas duas décadas, com registos que vão das tardes de férias passadas nas margens do rio Níger às reacções a novidades que chegavam da Europa, da Índia e dos Estados Unidos – fossem no cinema ou na música. Um foco muito importante de La Vie en Rose são as festas e as noites de Bamakco, a capital do Mali, momento de celebração da nova vida que o país conhecia. A exposição fecha com os retratos que Sidibé realizou no seu Estúdio Malick, numa sala que é uma recriação desse local, situado no bairro popular de Bagadadji, na capital do Mali.

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FOTO: Viviane Sassen

Viviane Sassen - Lexicon

África tem um lugar notório no programa da edição deste ano do festival de fotografia de Braga, uma proposta que não se esgota na obra de autores africanos como Sidibé. Lexicon, de Viviane Sassen, prolonga essa relação com uma abordagem reveladora da estética contemporânea e muito estilizada da fotógrafa holandesa, que pela primeira vez terá uma exposição de trabalhos seus em Portugal.

Vinda do universo da moda – onde continua a trabalhar para algumas das principais marcas de luxo – Sassen mantém uma surpreendente continuidade com marcas desse campo no seu trabalho enquanto artista. Mesmo quando faz incursões por territórios mais longínquos que os países do centro em que mais habitualmente se move.

A exposição que pode ser vista na Casa dos Crivos reúne imagens feitas na África do Sul, Zâmbia, Quénia, Uganda, Tanzânia, Gana ou Senegal para duas das séries mais reconhecidas da artista holandesa e que deram origem aos livros Flamboya (2008) e Parasomnia (2011). São mais de 30 fotografias, impressas especificamente para esta apresentação no mesmo tamanho (30x42 cm) e que assim funcionam como uma espécie de “cartões de ajuda”, para que possamos compreender o seu discurso enquanto artista - o que justifica o título Lexicon.

Neste conjunto de imagens encontramos os retratos, sempre encenados, onde corpos em movimentos mais próximos dos territórios da performance ou da dança convivem com poses mais clássicas da moda; mas também podemos ver a fascinação de Sassen pela natureza e pelos objectos estranhos que encontra, que muitas vezes parecem um prolongamento ou um reflexo da própria presença humana.

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FOTO: Cristina de Middel

Cristina de Middel - Jan Mayen

Nunca sabemos bem quando Cristina de Middel nos está a contar uma história verdadeira. Foi assim com The Afronauts (2012), série sobre o programa espacial da Zâmbia, com o qual se apresentou ao público e à crítica e tem permanecido assim desde então. O trabalho da artista espanhola cresceu nessa relação dúbia entre o real e a ficção, fazendo dela uma estrela internacional da fotografia.

Essa investigação sobre a verdade prossegue e aprofunda-se em Jan Mayen, a série de 2014 que agora apresenta nos Encontros da Imagem – um festival a que regressa depois de no ano passado ter trazido This Is What Hatred Did. Nesta exposição conta uma história real, a de uma expedição de 1911 a Jan Mayen, uma ilha ao largo da Gronelândia, à qual os exploradores nunca terão chegado. As imagens que na altura apresentaram terão sido, afinal, dramatizadas na Islândia.

Cristina de Middel pegou no arquivo original dessa viagem e no guião do cinematógrafo que participou na expedição para encenar as suas próprias fotografias, na ilha de Skype, na Escócia. As imagens de 1911 e as de 2014 foram reunidas e misturadas, de forma que nunca sabemos ao certo aquilo que estamos a ver em cada momento. As fotografias a preto e branco são pintadas à mão ao modo dos inícios do século XX, acentuando essa dúvida permanente.

Jan Mayen está patente na Casa Esperança, numa montagem em que se cruzam vídeo, desenhos, fotografias em grande formato e impressões sobre cartão e em papel fotográfico, acentuando a ideia de resgate de um arquivo que marca todo o trabalho de Cristina de Middel.

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FOTO: Nuno Andrade

Nuno Andrade - Ginjal

Talvez nenhuma outra exposição dos Encontros da Imagem deste ano abra uma porta tão escancarada sobre o tema central do festival, a “Felicidade”, como Ginjal, de Nuno Andrade. A série de 11 imagens é um registo bastante cru de momentos de encontro e felicidade no Floresta do Ginjal, um restaurante no cais de Cacilhas, em Almada, que desde a década de 1940 foi local de almoços, casamentos e outras festas.

Era um local de encontro entre as duas margens do Tejo para uma geração mais velha do que a do próprio fotógrafo. Quarenta anos depois da sua inauguração, o Floresta do Ginjal encerrou portas. O que Andrade propõe aqui fazer é resgate dessas memórias num conjunto de retratos com uma estética algo austera – um flash disparado em cima das pessoas - a contrastar com a proximidade que se estabelece com cada uma delas e que nos leva a sentir perto do círculo íntimo dessas personagens. Estas são imagens de felicidade evidente, do tal “lugar ao sol” de que fala o título da edição deste ano do festival de fotografia de Braga.

Nuno Andrade não está propriamente a começar a carreira – tem 42 anos, estudou fotografia na “Maumaus” nos anos 1990  –, mas apresentou uma candidatura ao festival para os Prémios Descoberta, atribuídos pelos Encontros da Imagem e uma empresa de Braga. Foi um dos escolhidos e a organização do festival entendeu que o seu trabalho merecia um lugar na Casa Esperança, uma antiga vidraria no centro histórico da cidade transformada num dos espaços centrais das exposições para a edição deste ano, recebendo as obras de 22 criadores.

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FOTO: Georges Pacheco

Georges Pacheco - Et In Arcadia Ego

A exposição de Georges Pacheco é uma das que se apresentam em estreia nesta edição dos Encontros da Imagem. Et In Arcadia Ego marca também um momento de viragem na produção do fotógrafo. O fundo negro e neutro que distingue fortemente os seus trabalhos anteriores é agora abandonado, abrindo caminho para que a natureza e o espaço envolvente das pessoas que fotografa passem a ser parte integrante das imagens – e muitas das vezes um elemento fundamental das mesmas.

A mostra toma como título uma frase do poeta romano Virgílio que significa qualquer coisa como: “Eu (a morte) também estou em Arcádia”. Na obra clássica, Arcádia é uma terra de pastores situada na Grécia, onde a mitologia garante que se vive feliz no amor. O cenário destas imagens é, portanto, idílico e tinha de aparecer em plano de destaque. Aqui o que vemos brilhar é a relação equilibrada entre a natureza, os animais e os seres humanos.

Todavia, é o elemento humano que assume o lugar mais fascinante desta série. Durante dois anos, Pacheco fotografou a vida de um casal em França. A série é, desde logo, um registo de amor e felicidade daqueles homens e também da matilha de cães que sempre os acompanham. Mas as imagens assumem maior complexidade pelas múltiplas referências que convocam, da pintura de Guercino ou Poussin ao cinema de Tarkovsky. As roupas usadas pelo par e a sua aparência formal e clássica conferem-lhes um registo quase intemporal. Et In Arcadia Ego pode ser vista igualmente na Casa Esperança.