Vinte anos após criação do Parque Arqueológico, o Côa precisa de um novo impulso

A arte paleolítica dispõe de um parque ao ar livre único no mundo e de um museu notável. Em 2015 recebeu mais de 40 mil visitantes. Mas o estrangulamento financeiro da Fundação Côa Parque, gerida por uma administração provisória, tem contribuído para dar da instituição uma imagem de abandono.

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Dez horas da manhã da passada terça-feira, véspera do 20.º aniversário do Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC), criado a 10 de Agosto de 1996. Já se faz sentir o calor, que mais tarde rondará os 40 graus, quando o Museu do Côa começa a receber os primeiros visitantes do dia, entre os quais um professor de História austríaco, Martin Sohler, e a respectiva mulher, que esperam a partida para uma visita pré-marcada ao núcleo de gravuras da Canada do Inferno. Ouviram falar da arte rupestre do Côa num documentário transmitido pela televisão e quiseram vê-las in loco. Arnaldo Moreira, um português de Valongo há muito emigrado em França, é outro dos oito passageiros com lugar marcado no jipe, conduzido por um dos mais veteranos guias do Parque, António Manuel Jerónimo, que há 20 anos era um dos activistas estudantis que gritava As gravuras não sabem nadar, yo! na escola secundária de Foz Côa. Moreira até talvez passasse sem ver as cabras e os auroques que os homens do Paleolítico riscaram há 20 mil anos nas paredes de xisto, mas acabou por ceder à insistência da sua mulher francesa: “Ela é que gosta destas coisas”. Josette confirma: “há cinco anos que queria vir a Portugal ver as gravuras”.

Nesses minutos que antecederam a saída da primeira visita da manhã à Canada do Inferno, o telefone da recepção não parava de tocar: eram candidatos que, quase invariavelmente, já não tinham lugar nem nas visitas desse dia nem nas do dia seguinte, e que eram cortesmente reencaminhados para um dos vários operadores privados que têm  protocolo com a Fundação, que se responsabiliza pela formação e certificação dos respectivos guias.

Pela hora de almoço, o restaurante do museu – não haverá talvez outro no país com uma vista tão deslumbrante – está cheio. Muitos clientes são estrangeiros, mas até os fozcoenses, que inicialmente torceram o nariz a um estabelecimento gerido por um bragantino, começam a adoptar a casa, e até já fazem as suas bodas e baptizados no estabelecimento de João Fernandes. Mesmo reconhecendo que a procura do museu é muito sazonal e que no Inverno a clientela é bastante mais escassa, Fernandes não se queixa. E nota: “Se a barragem tivesse sido feita, havia aqui um engenheiro a abrir e fechar comportas, assim temos 40 mil visitantes por ano; sem o Museu, isto era só um interior envelhecido, não era mais nada”.

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Grupo de visitantes tira uma selfie junto ao restaurante do museu Paulo Pimenta

Jipes com 20 anos

Quem passa um dia no Museu do Côa percebe que a instituição está bastante mais viva do que se poderia depreender da sucessão de notícias negativas (e verdadeiras) de que vem sendo alvo nos últimos tempos, e que falam de dívidas à segurança social e ao fisco, de empréstimos contraídos para pagar salários ou mesmo de penhoras, como a que recentemente afectou a loja do Museu. Afinal, 2014 já foi um ano de recuperação, e em 2015 não se andou muito longe do recorde de 46.397 visitas registadas em 2011, o primeiro ano em que o Museu funcionou em pleno. Também as visitas guiadas às gravuras subiram ligeiramente no mesmo período, mas mesmo assim os cerca de 7.000 visitantes que delas usufruem por ano são sensivelmente um terço dos que o Parque recebia no final dos anos 90, quando ainda não havia museu.

Apesar de o Museu recorrer cada vez mais a guias privados – o último curso promovido pela Fundação com a Associação dos Amigos do Parque e Museu do Coa (ACOA) e a Setepés, habilitou mais 20 pessoas a conduzir os visitantes aos núcleos de arte rupestre –, quer o número de guias, quer o de veículos continua a ser escasso para satisfazer todos os pedidos na época alta. E os jipes de que o Museu dispõe são os mesmos oito que Manuel Maria Carrilho, então ministro da Cultura, conseguiu quando o Parque abriu, em 1996. Um mecânico hábil vai trocando peças de uns para outros, a tentar manter o maior número possível a andar, mas os carros levam vinte anos a fazer diariamente percursos particularmente exigentes e não há milagres.

Somando todos os visitantes dos últimos 20 anos, o director do Parque e do Museu, o arqueólogo António Martinho Baptista, estima que a arte rupestre possa ter trazido um milhão de visitantes ao Côa, ainda que apenas 600 mil estejam devidamente registados. São “números interessantes”, argumenta, para um museu com estas características e que “está no fim duma estrada, onde ninguém vai por acaso”.

Martinho Baptista não duvida de que o museu “se tornou um dos principais chamarizes desta região do Alto Douro” e é hoje um equipamento “incontornável”. O que não o impede de reconhecer que podia ter mais visitantes, e até adianta algumas ideias: “Podia ter-se criado um cais de acostagem e uma estrutura que permitisse trazer ao Museu uma parte dos cerca de 200 mil passageiros que andam nos barcos de cruzeiro”. Outra possibilidade que tem sido aventada, e que acha que “teria alguma lógica”, seria “criar em Foz Côa um pólo universitário voltado para o património, e até para o turismo”. E não acha natural que Lisboa ou o Porto ainda não tenham podido ver uma grande exposição da arte paleolítica do Côa.

E podiam criar-se, por exemplo, mais núcleos visitáveis, além da Canada do Inferno, da Penascosa e da Ribeira de Piscos. Muito perto do museu, existem rochas gravadas que seria possível ir visitar a pé. E José Ribeiro, o professor que incentivou a luta dos estudantes de Foz Côa contra a barragem, está mesmo convencido de que seria possível abrir “uns sete núcleos”. Mas, claro, isso implicaria mais guias, mais jipes – se possível em melhor estado –, mais guardas e outros investimentos difíceis de assegurar por uma instituição à qual os sucessivos cortes às fundações já terão retirado cerca de 45% da sua dotação inicial. 

Não menos importante é, para Martinho Baptista, a internacionalização do sítio. “Tem de estar no topo das prioridades da Fundação”, diz. E para lá do prestígio que a classificação como património mundial confere à arte do Côa, a própria história da luta pelas gravuras e da suspensão da barragem é um foco de interesse para arqueólogos estrangeiros.

Baleias coreanas

O Museu mostra neste momento uma fascinante exposição da arte rupestre da Repúbica da Coreia, centrada num painel localizado junto a Bangudae, perto da cidade industrial costeira de Ulsen, que contém gravuras de várias épocas, incluindo as mais antigas representações de baleias que se conhecem, datáveis do neolítico. Integralmente paga pelo Museu do Petróglifo de Bangudae, a exposição retribui a que o Museu do Côa organizou na Coreia, que abria, a pedido dos arqueólogos coreanos, com o processo que levou à suspensão da barragem. É que o painel de Bangudae está justamente ameaçado por uma mini-hídrica, construída antes da sua descoberta.

Outro país com arte rupestre que está muito interessado no Côa é a Austrália. O museu recebe anualmente cerca de dois mil australianos e neo-zelandeses, diz Martinho Baptista.

Outra prioridade que não pode ser descurada no Côa, defende, é a da investigação de campo, já que só ela permite ir alimentando o museu com novidades constantes. E nesse capítulo está especialmente entusiasmado com os resultados que vai obtendo, num acampamento paleolítico descoberto na Cardina, a equipa de arqueólogos coordenada por Thierry Aubry, que está interessada em apurar quando chegou ao Côa o homem anatomicamente moderno. “Na próxima escavação, em Setembro”, diz Martinho Baptista, “a expectativa é chegarmos aos 45 ou 50 mil anos, e aí poderemos ter restos de Neanderthal, o que seria uma descoberta espectacular”.

Lembrando que há mais de 1.200 rochas gravadas no Côa, das quais mais de metade são paleolíticas, e que “a maior parte ainda está por estudar”, o arqueólogo sublinha: “É por isso que a internacionalização do Côa tem de ser para breve, porque é preciso abrir isto à investigação”.

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Dalila Correia no núcleo de gravuras da Canada do Inferno Paulo Pimenta

Baptista vê com bons olhos o propósito do actual ministro da Cultura de revitalizar a fundação em vez de integrar o Museu e o Parque na tutela da Direcção-Geral do Património Cultural, como pretendia o seu antecessor, João Soares, argumentando que o actual modelo, desde que devidamente financiado e dirigido, permite “uma gestão mais maleável”. E diz acreditar que Luís Filipe Castro Mendes “vai estudar bem o problema, porque já perdemos alguns anos”.

Gustavo Duarte, presidente da Câmara de V. N. de Foz Côa e membro por inerência da administração provisória da Fundação – liderada pelo Director-Regional de Cultura do Norte, António Ponte – também está confiante de que este ministro irá “agarrar bem o problema” e diz que “está na hora de resolver isto de uma vez por todas”.

O que passa desde logo por “garantir um fundo de maneio estável, que evite que andemos sempre a contar os tostões para pagar salários”, mas também por uma articulação mais forte com o outro património mundial da região, o Alto Douro vinhateiro, e por uma “alteração da metodologia das visitas aos núcleos, que podem receber muito mais pessoas”, garante. “Não faz sentido a pessoa telefonar e não haver vaga, ou chegar lá e dizerem-lhe que só para a semana, não pode ser”.

Só falta decisão política

Para a presidente da ACOA e ex-directora do Parque e do Museu, Alexandra Cerveira Lima, “prioritário será envolver de novo as entidades públicas e privadas, as comunidades locais, numa estratégia comum que ajude a construir o desenvolvimento regional ancorado neste património mundial”. O objectivo não lhe parece idealista e acha mesmo  que “existem todas as peças para compor o puzzle, falta tão-só a decisão política.” E a associação a que preside tem sublinhado que “é mais difícil, mais penoso e mais caro para a Fundação não dar esse salto e não encabeçar decididamente uma estratégia para o território”.

Daí que a ACOA venha publicamente insistido na gravidade do fim do PROVERE do Coa, já que se trata de um programa de valorização económica que assenta numa estratégia colectiva, pública e privada. “Claro que facilitar o acesso aos fundos comunitários, numa área tão periférica como o Vale do Coa, é muito importante”, reconhece Cerveira Lima, “mas se tiver de elencar uma prioridade, diria que o valor principal destes programas é ditarem o desenho comum de uma estratégia assente num ‘recurso único e inimitável’, que no Coa é sem dúvida a arte rupestre.”

Esse impulso e participação colectiva, que dê azo a um novo entusiasmo, como ocorreu em 1996, é o que, sustenta, “se espera há alguns anos”.

José Ribeiro, que pertenceu à administração anterior, também não concordava com a solução de João Soares: “ia ficar tudo outra vez divorciado dos grandes objectivos de desenvolvimento da região”.

Mas não exclui uma “separação de águas”, com o Ministério da Cultura a tutelar directamente a investigação arqueológica e a Fundação encarregada da “exploração do turismo cultural”, em articulação com as autarquias locais.

Já o guia e dirigente sindical José Pedro Branquinho diz “respeitar a decisão” do ministro, mas não simpatiza com ela: “Fui sempre contra a Fundação e continuo a ser”, diz, lembrando que este modelo “já quando nos foi apresentado, diziam que era solução para tudo”.  Parece-lhe ainda assim positivo que Castro Mendes se tenha comprometido a saldar as dívidas da Fundação.

Branquinho está no Parque desde 1996 e lamenta que em 20 anos não se tenha renovado a frota de jipes – “os carros passam na inspecção, mas é preciso ver que transportamos crianças” – e acha que “a manutenção dos sítios e dos acessos” também deixa a desejar.

Crítico da falta de promoção do Museu – “não há nenhuma” –, acha ainda que a Fundação devia contratar mais guias, já que “muitos foram saindo, descontentes com a situação”, e “as pessoas não gostam muito de ser mandadas para os privados”.

Proprietário do café Havanesa e descobridor de gravuras – “aventurei-me por todas as linhas de água que não eram o rio Côa e encontrei centenas delas” –, José Constâncio é um pouco menos diplomático do que Branquinho a expressar as suas reservas ao modelo da fundação: “Não acredito em fundações, que são sempre uma palhaçada, um jogo de interesses e compadrios; acredito é em dois ou três indivíduos que sintam esta terra e se dediquem a isto a sério”.

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