Foz Côa, os dias de um Portugal confiante

O país que travou a barragem perdeu-se na descrença no futuro e na crise.

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PAULO PIMENTA

Há 20 anos, Portugal foi capaz de abandonar a construção de uma barragem para salvar uma herança arqueológica gravada nas rochas do vale do Côa há mais de 20 mil anos. Poucas vezes na história recente do país se assistiu a um debate tão intenso e apaixonado como nesse tempo. Vinte anos depois é impossível não olhar para trás e constatar que esse país deixou de existir. Pereceu algures entre a erosão da sua crença na democracia e a necessidade de sobreviver à sua mais grave crise económica e financeira em muitas décadas.

Hoje é mais fácil perceber e enquadrar o que se passou em Foz Côa. Dez anos de cavaquismo e de políticas de betão tinham deixado no país um rasto de cansaço e de inconformismo. A EDP, na época uma empresa pública, nunca foi capaz de justificar com argumentos válidos a importância de Foz Côa. A barragem não fornecia água para as pessoas nem para a agricultura – era apenas um tanque de reserva. Pelo contrário, as gravuras eram o testemunho reconhecido de uma expressão artística mundialmente rara e arqueologicamente desconhecida. O confronto simplista entre o cimento e a arte, entre o dinheiro e a cultura, arrastaram milhares de jovens a Foz Côa, seduziram esse eterno romântico e revolucionário que é Mário Soares e ditaram o fim da barragem.

O que ficou desse debate duro, onde foi impossível ser neutro, é uma lição de cidadania. E o testemunho de um tempo em que os portugueses acreditavam ser donos de um destino e tinham confiança no futuro. Essa energia começou a desaparecer quando a barragem do Sabor se ergueu e, ainda mais, quando José Sócrates impõe à EDP e à ENDESA a concessão de barragens pelo país fora. Quando se soube desse enorme crime que é a barragem de Foz Tua (uma inutilidade que vai inundar um dos mais belos vales do país), os portugueses tinham já outras prioridades nas suas vidas.

Ganhou o país com a opção de Foz Côa? A pergunta, hoje como então, suscita diferentes respostas. Certo é que a pequena cidade e o Douro Superior não ganharam o que podiam e mereciam ganhar. Fez-se um museu (magnífico por sinal), mas entregou-se a sua gestão a uma fundação que luta para sobreviver. E, pior ainda, permitiu-se que o lobby dos arqueólogos se assenhoreasse do parque e impedisse o seu usufruto por um número maior de pessoas. Apesar de tudo, o caso de Foz Côa merece ser invocado. Quanto mais não seja para recordar que um país com futuro não pode dispensar a equação da cultura, mesmo quanto tem de resistir ao aperto das contas públicas.

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