As memórias da cidade saem à rua

A iniciativa que se realiza pelo terceiro ano consecutivo para assinalar a classificação da Universidade de Coimbra como património da UNESCO percorre a cidade, ocupando-a em vários pontos com propostas artísticas distintas entre este sábado e 4 de Julho. O tema desta edição é a memória.

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J. Delacroix tem uma enorme fraqueza por viaturas, carros. É uma fraqueza humana, diz. Ele trabalha em Paris e só acedeu vir a Coimbra, “a esta cidade de pequena dimensão”, pelas longas ligações de amizade e fraternidade que o unem à família da vice-reitora para Cultura da Universidade de Coimbra, Clara Almeida Santos.

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J. Delacroix tem uma enorme fraqueza por viaturas, carros. É uma fraqueza humana, diz. Ele trabalha em Paris e só acedeu vir a Coimbra, “a esta cidade de pequena dimensão”, pelas longas ligações de amizade e fraternidade que o unem à família da vice-reitora para Cultura da Universidade de Coimbra, Clara Almeida Santos.

É esta a figura que vai abrir o programa do Sons da Cidade, a iniciativa que pelo terceiro ano consecutivo assinala a classificação da UC como património da humanidade pela UNESCO e combina várias actividades artísticas distribuídas por diferentes espaços da cidade entre este sábado e o dia 4 do mês seguinte. 

Como não é criminalizável estoirar o orçamento do Sons da Cidade, Delacroix gastou-o todo numa exposição de carros clássicos. Portanto, o primeiro evento da programação consiste num desfile que começa no largo da Portagem e atravessa a Baixa até à Praça 8 de Maio, para que Delacroix possa saudar a cidade ao volante de um MG descapotável. Atrás dele segue uma banda filarmónica e atrás da banda um Ferrari Testarossa.

O grande objectivo estético da exposição de carros clássicos era conseguir juntar na Praça 8 de Maio viaturas com um valor comercial superior ao orçamento anual do Convento de S. Francisco durante um ano. O que foi conseguido, garante.

A este ponto poderá ser importante referir que J. Delacroix é uma personagem criada e interpretada por Ricardo Kalash no âmbito da performance que arranca neste sábado às 11h com a programação da iniciativa, este ano subordinada ao tema da memória.

Para além disso, o personagem é ainda o curador do Museu Temporário de Memórias, na rua Velha, na Baixa da cidade. Neste museu que olha para a história daquela zona, contam-se vários momentos dos seus estabelecimentos comerciais. Entre o chão de cimento desgastado e o tecto de envelhecidas traves de madeira pode-se encontrar um antigo aparelho fotográfico criado a partir de peças variadas, uma velha caixa registadora, chapas para impressão tipográfica de pautas musicais; nas paredes e nas mesas estão expostos objectos de lojas que mantêm as portas abertas – algumas delas centenárias – e que remetem para um determinado período. “Descobriu-se, nos confins da Casa Salgueiros [uma chapelaria e camisaria], uma fotografia de 1910 das milícias armadas republicanas que saíam dessa casa”, exemplifica Ricardo Kalash.

Os objectos foram escolhidos pelos artistas de várias lojas e, a partir deles e das histórias que os seus donos contam, é criada uma linha narrativa para apresentar ao público em visitas guiadas. Todas as histórias contadas são verdade, diz Kalash, “a ficção é só o personagem”.

O próprio espaço, que se encontrava devoluto antes da intervenção da equipa de artistas, era um armazém da Companhia de Tecidos de Coimbra e ajuda a traçar o retrato da Baixa. Nos registos de contabilidade da companhia foi encontrada uma nota despesa do Café Santa Cruz. Com a data de 25 de Abril de 1974, a lista de compras era composta por quatro garrafões de vinho e duas garrafas de aguardente. “Para quê? Não sabemos”, diz com um ligeiro sorriso.

A performance de Delacroix é o primeiro de onde programa que se estende por mais de uma semana e por vários espaços da cidade, da Alta à Baixa, mas o grosso dos eventos acontece neste sábado.

Celebrar o património

José Miguel Pereira, da direcção artística da iniciativa, explica ao PÚBLICO que o Sons da Cidade nasceu em 2014 da necessidade de, através das práticas artísticas, “reflectir e criar momentos de encontro entre a universidade e a cidade”. Este ano, esse envolvimento é “muito mais vasto”, refere, ao incluir a comunidade de comerciantes da Baixa e a comunidade estudantil. Ao nível da programação, o responsável sublinha que há várias propostas artísticas criadas especificamente para esta ocasião.

No primeiro ano, o Sons da Cidade surgiu como “uma celebração que teve como mote o arquivo sonoro do centro histórico de Coimbra”, com a ideia de estabelecer “um percurso sonoro por edifícios que faziam parte da inscrição na UNESCO”. Desde então evoluiu e isso reflecte-se tanto ao nível da participação do público como ao nível do orçamento.

Se o número de pessoas na primeira edição andou entre 800 e 1000, na segunda edição esta quantidade “deve ter duplicado”. Do ano passado para esta edição o orçamento sofreu um reforço “na ordem dos 60%” para valores que rondam os 20 mil euros.

A programação conta com concertos, teatro, exposições, debate, performances, visitas guiadas, entre outras propostas. O financiamento da iniciativa é atribuído na totalidade pela associação RUAS, entidade criada no âmbito da candidatura da UC à UNESCO e na qual universidade e câmara municipal assumem o papel mais relevante. 

Também na Baixa, não muito longe do Museu Temporário de Memórias, foi construída uma estrutura efémera que entra nesta cartografia dos sons. O colectivo Há Baixa, composto por estudantes de arquitectura e design e multimédia da UC que querem revitalizar o Largo do Romal, montou um palco naquele espaço. A estrutura de madeira serve como base a várias iniciativas, mas depois sobrevive ao Sons da Cidade um par de semanas para apoiar as intervenções nos espaços que vão acontecer até meados de Julho.

Carlos Fraga e Francisco Paixão, do colectivo, referem essa dupla funcionalidade do palco: um espaço com programa cultural mas também de suporte ao projecto Há Baixa. Os estudantes explicam também que o facto de ser construído em peças modulares possibilita que a estrutura assuma outra forma, podendo ser adaptado a outros espaços. A ideia é que possa ser reactivado em mais espaços para além do Largo do Romal, que posse ser itinerante.

O que resta da memória

A um dia da estreia, o ensaio. Os oito actores sentados noutros tantos cadeirões já passaram a barreira dos 80 e têm a particularidade de serem todos utentes do Centro de Dia 25 de Abril do Ateneu de Coimbra. O encenador, Ricardo Vaz Trindade, pede genica.

O Ponta da Língua é construído à volta da vida destas pessoas e das pequenas memórias que guardam. Ricardo Vaz Trindade lembra que a ideia de base tinha a ver com a memória “e com a ideia daquilo que sabemos de cor”. Ou seja, trabalhar com as recordações destas pessoas “que já têm muitos anos de vida e que, embora as memórias deles lhes falhem por causa da idade avançada, há muitas coisas que ainda estão gravadas”.

O sr. Dinis, por exemplo, entre os vários ofícios ao longo da vida, foi talhante e ainda sabe de cor os cortes da carne de vaca, ilustra Vaz Trindade. Tudo isso é utilizado na peça. “Não havia qualquer ideia de dramaturgia nem de texto, foi tudo construído a partir daquilo que eles nos tinham para nos oferecer”.

Quanto aos cadeirões, assumem eles próprios um papel na criação, para além de meros elementos cenográficos. Estão no palco do Teatro de Bolso, no edifício da Associação Académica de Coimbra, onde decorre a peça, mas foram trazidos do centro de dia e cada um tem o seu, onde mais ninguém se senta. A almofada já ganhou a forma do seu corpo e poderá haver chatices se alguém não se sentar num que não o seu.

Um mais pouco mais abaixo do Ateneu, encalhado entre a Alta e a Baixa está o Teatro Sousa Bastos. Ou o que resta dele. Edifício em ruína há décadas, serve nesta edição do Sons da Cidade como cenário à proposta artística de Antoine Pimentel e Carlota Lagido, a M. de, numa performance com a participação do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra.

O espaço que abriu as portas no século XIX acolheu um variado leque de espectáculos. Numa fase em que se acentuava o declínio da sala ensaiaram lá bandas e chegou a projectar filmes pornográficos e westerns. Mas não é essa a história que os criadores da M de. querem contar. Vai ser “meia hora de um momento que é uma alusão, um exercício, uma interpretação, não é uma coisa taxativa, a narração do que foi a história. Não nos interessava ir por aí”, diz Antoine Pimentel, ao explicar o produto final do processo criativo que permite várias leituras. A inspiração pode ser documental, mas o resultado não é.

Numa performance que combina teatro, dança, vídeo e sonoplastia, Carlota Lagido diz que o teatro (como edifício) em si “é um aspecto subjectivo e metafórico”, podendo representar “muitos teatros em Portugal que estão assim”. Neste aspecto, o Sousa Bastos que serve de pano de fundo à criação é também um espaço simbólico, que permite um “exercício sobre o teatro como disciplina e não como espaço físico”.

Antoine Pimental realça a componente estratificada da peça, que “tem muito a ver com essa ideia de camadas e sobreposições de ideias, de fantasmas, de palavras, de estados” que se relaciona com as várias ocupações do Sousa Bastos (que foi uma igreja e um teatro com outro nome), seu apogeu e decadência.