Chamadas anónimas: como contornar o incómodo?

Há mil vítimas, em média, por ano, que conseguem quebrar o sigilo de telefonemas anónimos, identificando números perturbadores da paz familiar ou da intimidade.

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O fim do anonimato destas chamadas dura, no máximo, 30 dias. Mas resolve grande parte dos casos. DR

Foram sete anos de tortura. Ana, 49 anos, sabia quem lhe ligava. Mas a esmagadora maioria das chamadas, às vezes mais de dez por dia, chegava de forma anónima. Quer para o telefone do trabalho, quer para o de casa, quer para o telemóvel. A maioria das vezes ninguém falava. O objectivo, acredita, era, além de a incomodar, controlar o que fazia. E se em casa e no portátil, Ana ainda tinha oportunidade de não atender, no do trabalho não gozava desse privilégio.

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Foram sete anos de tortura. Ana, 49 anos, sabia quem lhe ligava. Mas a esmagadora maioria das chamadas, às vezes mais de dez por dia, chegava de forma anónima. Quer para o telefone do trabalho, quer para o de casa, quer para o telemóvel. A maioria das vezes ninguém falava. O objectivo, acredita, era, além de a incomodar, controlar o que fazia. E se em casa e no portátil, Ana ainda tinha oportunidade de não atender, no do trabalho não gozava desse privilégio.

Tudo começara em 2003, com o degradar de uma relação amorosa, a que colocou um ponto final em Agosto de 2004. E assim foi continuando até 2011. “Nunca meti baixa, mas muitas vezes queria trabalhar e não conseguia”, admite ao PÚBLICO. Chegou a fazer duas queixas-crime e a ir à sua operadora móvel saber como podia ter a certeza de quem lhe ligava. “Disseram-me que não podiam fazer nada. Não havia forma de saber qual era o número que lhe ligava”, conta.

Ana foi mal informada. E, como provavelmente muitas outras pessoas, desconhecia que a Lei da Protecção de Dados Pessoais e Privacidade nas Telecomunicações, de 2004, permite a quebra temporária do sigilo das chamadas anónimas em casos em que essas ligações sejam “perturbadoras da paz familiar ou da intimidade da vida privada”. Um procedimento administrativo simples, permite que a operadora da vítima passe a identificar o interlocutor incómodo sempre que este volte a ligar.

Tudo começa com uma participação escrita da vítima à respectiva operadora. Esta, por sua vez, solicita um parecer à Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), que dá o ok que permite à operadora pôr fim à confidencialidade das chamadas. “Os clientes devem formular pedido por escrito devidamente fundamentado, indicando as datas e horas em que receberam essas chamadas anónimas e de que forma estas são perturbadoras da paz familiar ou da intimidade da vida privada”, explica a Vodafone, numa resposta enviada ao PÚBLICO.

Operadora Nos não pede identificação de números

Nos últimos três anos, apenas duas operadoras, a Meo e a Vodafone, enviaram pedidos de parecer para aquela comissão. Entre 2013 e 2015, entraram na CNPD uma média anual de 1052 pedidos de quebra de sigilo de chamadas anónimas. O ano passado foram solicitados 897 pedidos, bastante menos que os 1348 pareceres solicitados no ano anterior. Em 2013, contabilizaram-se 911 pareceres. “Os principais motivos alegados pelos clientes para solicitar este serviço são a recepção de inúmeras chamadas a qualquer hora do dia, as quais são desligadas de imediato após as mesmas serem atendidas; chamadas sem qualquer conteúdo; e chamadas com ameaças e insultos”, precisa a Vodafone. A Meo dá uma resposta similar.

O fim do anonimato dura, no máximo, 30 dias. Mas resolve grande parte dos casos. “Quando é levantado o sigilo quem faz a chamada passa a ouvir uma gravação a informar que a chamada vai ser identificada e a perguntar se quer continuar com a ligação, a maior parte das pessoas não prossegue com a chamada”, explica a porta-voz da CNPD, Clara Guerra. Há factos que indiciam isso mesmo. “Apenas podemos constatar que são poucos os que solicitam a activação deste serviço por mais do que uma vez”, afirma fonte oficial da Meo. “Durante este período o número chamador anónimo é informado que o número chamado irá visualizar o seu número, razão pela qual, efectivamente, o problema dos clientes fica resolvido durante este período”, refere a Vodafone.

A identificação do número que incomoda a vítima nem sempre resolve o problema. Nem substitui a apresentação de uma queixa-crime. Quem adquire um cartão pré-pago que comprou sem deixar rasto não ficará muito desconfortável com o levantamento do sigilo. Por outro lado, apesar de tecnicamente não ser difícil identificar números fixos e móveis, o mesmo não acontece com chamadas realizadas através da Internet. Mesmo assim é possível chegar lá, refere a Meo. “Por regra as chamadas efectuadas através da internet são identificadas como quaisquer outras. No entanto, e nas situações em que tal não seja possível, a Meo diligencia junto dos seus parceiros no sentido de conhecer a origem do número”, garante a operadora.

Sem falar da Nos nem de outras pequenas operadoras, a Meo sublinha “que é um dos poucos operadores no mercado que têm este procedimento implementado, dando assim cumprimento ao que legalmente se estabelece relativamente ao tratamento de dados pessoais e protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas”. Contactada pelo PÚBLICO, a Nos recusou-se a esclarecer porque nunca fez qualquer pedido de levantamento da confidencialidade de chamadas anónimas incomodativas. A assessora de imprensa, Irene Luís, informou que não pretendiam responder às perguntas do PÚBLICO.

Multas podem chegar aos 2,5 milhões

A fiscalização do respeito pelas regras da protecção dos dados e das suas excepções, onde se inclui a quebra do sigilo das chamadas anónimas, está nas mãos da Comissão Nacional da Protecção de Dados, que possui igualmente o poder de aplicar multas aos infractores. No caso específico das regras de levantamento da confidencialidade de uma chamada consideradas “perturbadoras da paz familiar ou da intimidade da vida privada” o respectivo incumprimento é punido com sanção pesada. As pessoas singulares que violem essas regras incorrem numa contra-ordenação que varia entre os 500 e os 20 mil euros, limites que sobem para 2500 e 2,5 milhões de euros no caso das empresas. Nestes casos a comissão ainda pode aplicar uma sanção pecuniária compulsória, ou seja, uma multa diária enquanto a entidade não adoptar um determinado comportamento, cujo montante diário pode variar entre os 500 e os 100 mil euros. A Lei da Protecção de Dados e Privacidade nas Telecomunicações data de 2004 e resulta da transposição de uma directiva comunitária que trata como um direito do consumidor a possibilidade deste omitir, através de um meio simples e gratuito, a identificação das chamadas que realiza.