Angola tem agora três lagartos-espinhosos

Nova espécie de lagarto permite ver em acção como surge uma espécie a partir de outra que já existe. E já constará de um novo atlas sobre os répteis e anfíbios em território angolano, em elaboração por cientistas portugueses e norte-americanos e que vai ser publicado este ano.

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Nas zonas desérticas da província do Namibe, no Sul de Angola, um grupo de cientistas partiu numa expedição no final de 2013, para dar início ao levantamento dos répteis e anfíbios no território angolano – que são bastante desconhecidos, uma vez que os últimos trabalhos deste género remontam ao século XIX e à primeira metade do século XX. A expedição – de cientistas de Portugal, Angola e dos Estados Unidos, que a certa altura paravam o carro e andavam a pé duas a três horas à procura dos animais, até debaixo das pedras – não podia ter corrido melhor.

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Nas zonas desérticas da província do Namibe, no Sul de Angola, um grupo de cientistas partiu numa expedição no final de 2013, para dar início ao levantamento dos répteis e anfíbios no território angolano – que são bastante desconhecidos, uma vez que os últimos trabalhos deste género remontam ao século XIX e à primeira metade do século XX. A expedição – de cientistas de Portugal, Angola e dos Estados Unidos, que a certa altura paravam o carro e andavam a pé duas a três horas à procura dos animais, até debaixo das pedras – não podia ter corrido melhor.

“As duas colegas angolanas que estavam connosco a levantar rochas viram numa fenda um animal a mexer-se. Uma delas ficou no local e a outra foi-nos chamar. E juntámo-nos todos à volta da fenda com pés-de-cabra e canas, para o tentar tirar de lá”, conta agora, volvidos cerca de dois anos da expedição, o biólogo português Luís Ceríaco, do Museu Nacional de História Natural e da Ciência de Lisboa (MNHNC) e do Museu de História Natural da Florida, nos Estados Unidos.

Os biólogos conseguiram tirar o animal debaixo das rochas. Era um lagarto: o primeiro exemplar, entre outros sete que ainda apanhariam durante a expedição, de uma espécie que veio a revelar-se nova para a ciência. “Quando percebemos em que tipo de rochas ele estava, encontrámos mais”, relata Luís Ceríaco.

Os estudos posteriores, a nível morfológico e genético, permitiram confirmar a novidade científica e esses resultados foram publicados, no início deste ano, na revista Zootaxa.

Cordylus namakuiyus é o nome científico da nova espécie – a terceira – de lagartos-espinhosos de Angola. Namakuiyus é a forma latinizada da palavra namakuiya, que significa “espinhoso” na língua hereró, falada por um dos povos bantos no Sul de Angola, na Namíbia e no Botswana. Para nome comum da nova espécie, a equipa escolheu lagarto-espinhoso-do-kaokoveld (o kaokoveld é um tipo de habitat desértico, que também existe na província do Namibe).

Junta-se assim aos lagartos-espinhosos Cordylus machadoi e Cordylus angolensis, este último descrito no final do século XIX, em 1895, com base num único exemplar apanhado no Norte da província de Huíla, numa zona de alta elevação, e que depois ardeu no famoso incêndio de 1978 na antiga Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, na Rua da Escola Politécnica (“ainda hoje não se sabe praticamente nada sobre o Cordylus angolensis e nunca mais foi apanhado nenhum exemplar”, diz Luís Ceríaco).

Darwin teria gostado

Partindo destes três lagartos-espinhosos angolanos, mas principalmente do Cordylus machadoi e do Cordylus namakuiyus, surgiu uma nova história para contar sobre evolução das espécies que muito deveria agradar a Charles Darwin, o “pai” da teoria da evolução através da selecção natural.

A expedição de Luís Ceríaco e dos colegas começou na província do Namibe porque já aí tinham sido apanhados, em 2009, dois exemplares de um lagarto-espinhoso por investigadores sul-africanos, que por sua vez partilharam essa informação com Edward Stanley, especialista nestes lagartos na Academia das Ciências da Califórnia. Por isso, Edward Stanley, que acabou por participar na expedição de 2013 à província do Namibe, tinha ficado com a ideia de que poderia haver um lagarto nesta região que merecia ser procurado. E havia.

Durante a expedição, os cientistas aperceberam-se logo de que tinham apanhado um lagarto diferente dos outros. Antes de mais, porque o “novo” Cordylus namakuiyus vivia num habitat distinto do já conhecido Cordylus machadoi, ou lagarto-espinhoso-de-machado. A província do Namibe, a casa do Cordylus namakuiyus, é uma região de baixa altitude, que vai desde o nível do mar até aos 1000 metros, e é desértica e semidesértica. Já o Cordylus machadoi encontra-se na zona da Serra da Leba, na província de Huíla (cujas altitudes vão dos 1000 aos 2000 metros), e que separa esta província da do Namibe. “Estamos a falar de um animal de uma zona baixa e outro de uma zona alta e esta separação é feita pela Serra da Leba”, resume Luís Ceríaco.

Qual é então a importância da descoberta desta espécie? “Ela é um exemplo para os manuais sobre a separação geográfica das espécies e de como é que as espécies naquela região divergiram e se especiaram [originaram outras]”, começa por responder o biólogo. “A Cordylus namakuiyus divergiu da espécie mais próxima – a Cordylus machadoi, que existe numa zona de escarpas elevadas e mais húmida e rochosa. A nova espécie está a poucos quilómetros de distância, numa zona de baixa altitude, semidesértica e com condições climáticas diferentes”, acrescenta Luís Ceríaco. “Esta espécie revela ainda que o nosso conhecimento sobre a biodiversidade de Angola está aquém da realidade, com todas as implicações que isso tem para proteger as espécies e o habitat.”

Tanto o Cordylus namakuiyus como o Cordylus machadoi têm sete a dez centímetros de comprimento (do focinho até ao início da cauda), ambos vivem em zonas de rochas com fendas e a sua cor é castanho-alaranjada. Mas foi a adaptação ao ambiente específico em que cada um vive que os tornou um pouco distintos, daí que sejam considerados espécies diferentes.

Por isso, embora também seja castanho-alaranjada, a nova espécie é um pouco mais clara (parecida com as cores da paisagem semidesértica onde vive) do que o Cordylus machadoi (mais parecido com as cores de uma paisagem mais rochosa).

Mas a principal diferença entre as duas espécies é a distribuição pelo corpo de escamas espinhosas (ou osteodermos), que exames de tomografia axial computorizada (TAC) realizados nos Estados Unidos aos lagartos permitiram tornar evidente. O Cordylus namakuiyus tem estas escamas especiais, mais fortes e espinhosas, por todo o lado, tanto na parte de cima do corpo como na zona ventral. Já o Cordylus machadoi só tem espinhos na parte superior do corpo.

“Estas diferenças fazem sentido em termos de adaptação dos animais ao habitat”, explica Luís Ceríaco. “A espécie nova vive numa zona em que os afloramentos rochosos são mais espaçados. Entre um afloramento e outro há uma grande zona aberta semidesértica, por isso um animal que passe de um lado para o outro tem de fazer um grande trajecto e fica mais exposto a possíveis predadores. Isto implica que tenha uma armadura mais completa, para estar mais protegido dos predadores”, acrescenta o biólogo.

“E permite-nos ver o processo de especiação em acção. Se o animal tivesse outras características, a selecção natural iria prejudicá-lo. Só os animais com mais protecção foram sobrevivendo e acumulando estas características, até se tornarem uma espécie diferente da outra, com características morfológicas diferentes”, prossegue o investigador. “Como o Cordylus machadoi está numa zona em que os afloramentos rochosos são mais comuns, para passar de uma rocha para outra tem de fazer um percurso mais reduzido e há vegetação que o esconde.”

O Cordylus namakuiyus ter-se-á separado do Cordylus machadoi há pouco tempo, segundo as análises de ADN. “Vimos que são espécies irmãs, ou seja, vêm da mesma linhagem evolutiva e separaram-se recentemente – nos últimos milhares de anos.”

Além dos dez exemplares apanhados há pouco tempo (oito na expedição de 2013 e dois pelos cientistas sul-africanos em 2009), conhecem-se outros 50 espécimes, atribuídos agora à nova espécie, que estão no Museu Americano de História Natural (foram recolhidos numa expedição a Angola em 1925, financiada por Arthur S. Vernay, que fez fortuna como antiquário). A imagem que se segue é uma ilustração científica de um exemplar de Cordylus (por Alma W. Froderstrom) resultante dessa expedição de 1925 e que se encontra no Museu Americano de História Natural.

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Um dos animais apanhados em 2013 tinha ainda na barriga dois fetos, que já estariam perto do nascimento. Ainda não tinham as escamas espinhosas desenvolvidas, o que é normal, uma vez que estes animais não põem ovos e dão directamente à luz. Como também apanharam animais juvenis, os cientistas sabem que as escamas espinhosas se formam pouco tempo depois do nascimento.

Ao fim de 120 anos, um atlas

Tudo isto começou com a tese de mestrado de Mariana Marques, do MNHNC, dedicada aos répteis e anfíbios de Angola. Tendo como co-orientador Luís Ceríaco e como orientador principal Aaron Bauer, da Universidade de Villanova (nos EUA), a tese de mestrado viria a ser o mote inicial para o projecto em curso. Na compilação da informação bibliográfica sobre os répteis e anfíbios daquele país, os investigadores constataram que esse conhecimento era muito limitado. “Há zonas de Angola do tamanho do Texas para as quais não há um único registo de um anfíbio ou um réptil”, frisa Luís Ceríaco.

Por isso, o MNHNC e a Universidade de Villanova juntaram-se à Universidade da Florida e ao Instituto Nacional da Biodiversidade e Áreas de Conservação (INBAC) angolano e avançaram para o levantamento da herpetofauna de Angola, “que é das mais desconhecidas no contexto africano”, sublinha o investigador português. A expedição de há dois anos à província do Namibe foi a primeira do projecto. “Os trabalhos [anteriores], de portugueses e estrangeiros, remontam ao século XIX e à primeira metade do século XX. A guerra civil após a independência fez com que os estudos da biodiversidade parassem. Não se conseguia ir ao campo.”

Em 2015, já houve mais duas expedições, uma ao Parque Nacional da Cangandala (na província de Malanje, criado em 1970 para proteger a palanca-negra-gigante) e outra às províncias do Kwanza Sul e de Benguela. O projecto vai prolongar-se por mais três anos, estando previstas mais seis expedições e um financiamento total de cerca de um milhão de dólares (900 mil euros). Os primeiros resultados estão aí.

Depois do artigo científico na revista Zootaxa, o projecto vai publicar um pequeno livro sobre as espécies encontradas no Parque Nacional da Cangandala, com as descrições e fotografias, numa edição conjunta do MNHNC e INBAC e lançamento, em breve, em Lisboa e Luanda.

E a tese de mestrado de Mariana Marques está também a ser trabalhada por ela, Luís Ceríaco, Aaron Bauer e David Blackburn, este último do Museu de História Natural da Universidade da Florida, para ser publicada como atlas dos anfíbios e répteis de Angola. Será editado, durante este ano, pelo MNHNC, com apoio do INBAC e das universidades norte-americanas envolvidas no projecto. Ao longo de 800 páginas em inglês, falar-se-á de cerca de 110 anfíbios e 300 répteis. O Cordylus namakuiyus já lá constará.

“Conterá todos os registos publicados de todas as espécies de anfíbios e répteis de Angola, com mapas, notas taxonómicas e de história natural e estatutos de conservação. Será uma peça fundamental para próximos trabalhos, pois permite-nos perceber o que sabemos, mas principalmente o que não sabemos”, diz o biólogo português. “O único atlas – e é difícil chamar-lhe um atlas – é um livro de 1895, Herpethologie d'Angola et du Congo, de José Vicente Barbosa du Bocage, do Museu de História Natural de Lisboa. Até hoje, é o único texto sinóptico sobre anfíbios e répteis de Angola. Há mais 120 anos de informação que se encontrava dispersa”, diz Luís Ceríaco. “Com este projecto, esperamos potenciar estratégias de conservação da biodiversidade.”