Rui Paixão: o palhaço que o Cirque du Soleil escolheu para novas criações

O ano de 2015 não podia ser melhor. Entrou no Cirque du Soleil, foi a revelação do Imaginarius, ganhou um prémio de artista emergente em Sevilha. Nos jogos que cria, todos podem errar ou acertar. Tem 20 anos, estudou teatro, e prepara uma peça sobre um homem que come todos os porcos da terra.

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O dia 3 de Novembro do ano que agora terminou foi intenso. Demasiado intenso. Era dia de casting no Cirque du Soleil, em Las Vegas, Estados Unidos da América. Rui Paixão, 20 anos, de Santa Maria da Feira, estava lá. Inteiro. Intenso, também. No fim do dia, recebeu a melhor notícia: era um dos cincos palhaços e actores escolhidos entre cerca de 70 candidatos de várias partes do mundo. Disseram-lhe que era único, criativo e que a sua personagem encaixaria em novas criações.

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O dia 3 de Novembro do ano que agora terminou foi intenso. Demasiado intenso. Era dia de casting no Cirque du Soleil, em Las Vegas, Estados Unidos da América. Rui Paixão, 20 anos, de Santa Maria da Feira, estava lá. Inteiro. Intenso, também. No fim do dia, recebeu a melhor notícia: era um dos cincos palhaços e actores escolhidos entre cerca de 70 candidatos de várias partes do mundo. Disseram-lhe que era único, criativo e que a sua personagem encaixaria em novas criações.

Rui Paixão deixou a sala com o seu nome escrito na rede de artistas para novas produções do Cirque du Soleil. “Estava na lua, a navegar. Estava feliz, tranquilo. Diverti-me mesmo a fazer o casting porque não estava a contar passar, fui pela experiência”, conta.

O método prendeu-lhe tanto a atenção que só queria estar em todas as etapas da selecção. “Para mim, foi mais do que um casting, foi o meu primeiro workshop e formação em clown e, a dado momento, percebi que eles estavam a divertir-se tanto quanto eu”.

Foi na Internet que o actor soube do casting da companhia conhecida em todo o mundo. Pediam um vídeo e um currículo. Tudo enviado e duas semanas depois a resposta chegou-lhe ao email com um convite para estar em Las Vegas. Tratou do passaporte para a primeira saída fora da Europa, organizou a viagem, partiu. Uma apresentação de dois minutos era o único pedido para aquele dia, tempo curto que se esgotou logo no início. Depois, foi tudo improvisação. Improvisação da boa. Uma cadeira no palco, uma coroa invisível, uma cena para criar com início, meio e fim e em que se justifique o exercício anterior em que se foi 90% animal e 10% humano. Sempre a improvisar, sempre com a cabeça a funcionar e o corpo em acção. Exercício feito, os participantes saíam da sala e os que passavam seguiam para uma nova fase de selecção. Rui ficou com o coração cheio.

Não podia ser de outra forma. O bichinho estava lá, andava a morder. Bem que as professoras avisaram os pais que o puto tinha jeito para o teatro. “Sempre que havia idas ao teatro, era o miúdo da turma que mais delirava. Nas idas ao circo, ficava uma semana sem dormir”, recorda.

Durante oito anos, jogou basquetebol, mas ficava quase sempre no banco. De vez em quando, a dois minutos do jogo terminar, entrava em campo. “A plateia, tanto da equipa adversária, como da minha equipa, aplaudia o Rui Paixão. Eu era o palhaço do grupo, foi a forma que encontrei de me integrar, mas um dia chateei-me com aquilo e o meu pai perguntou-me por que não ia fazer teatro”. Teatro, como actividade lúdica, para fazer novos amigos, para se divertir. Não foi bem assim. O conselho foi seguido à letra. No liceu, fez um acordo com os pais. Se durante um ano provasse que conseguia fazer alguma coisa no teatro, então iria estudar para a Academia Contemporânea do Espectáculo (ACE), no Porto. Nesse ano, tudo o que vinha à rede era peixe. Começou a fazer teatro na Academia de Música e Artes de Rio Meão, na Feira. Em 2011, estava na Viagem Medieval em Terra de Santa Maria, na Feira, como acompanhante de um grupo de músicos. Animar as pessoas enquanto os músicos tocavam era a proposta.

Nesta primeira experiência, o clique aconteceu. “Na primeira vez que saio à rua para fazer uma animação, durante 40 minutos, senti-me livre, fantasticamente bem. Senti que, de facto, quando há um choque com uma coisa que não é natural, que não é do quotidiano, as pessoas dão valor”. Não havia nada a fazer e Rui Paixão vai estudar Interpretação para a ACE. Durante os três anos de formação, pensava nessa coisa de ser palhaço de rua.

“Há um paradigma que se instala na sociedade: o paradigma do sucesso. Para ter sucesso é preciso agradar o outro. Para ter sucesso, é preciso que outra pessoa o diga. Quando comecei a reflectir sobre isso, percebi que nada disso fazia sentido. O que faz sentido para tu teres sucesso é fazeres alguma coisa que, de facto, vale a pena para ti. Faz sentido para ti”, diz.

Curso terminado, a pergunta da praxe: o que fazer? Rui Paixão cria então o seu projecto Cão à Chuva. O álbum Rain Dogs de Tom Waits serviu-lhe de inspiração para o baptismo por falar de vagabundos, dos que vivem na rua. “Há uma frase, no álbum, que diz qualquer coisa como os cães saem à noite para procurar comida quando a cidade já dorme. Essa imagem é muito forte, na minha opinião. Aquela ideia de que só podes ter tudo quando já não quiseres nada. Quando uma pessoa não quer nada, já tem tudo”. E a ideia fez todo o sentido no seu teatro.

Carlos Reis juntou-se à ideia e é o seu companheiro no Cão à Chuva. É músico de vários instrumentos e cria a banda sonora original do projecto. Também estudou na ACE, no curso Luz e Som.

Rui Paixão não diz que faz espectáculos, não usa esse termo, prefere a palavra jogo. Cão à Chuva não tem guião, tem jogos montados, uma linha que define o conceito, a dramaturgia. Depois, é tudo improvisação. “É a ideia do palhaço, de não existir bem nem mal, nada está certo e nada está errado. Existem possibilidades na vida, possibilidades criativas. O objectivo daquele jogo é precisamente criar um lugar vazio onde toda a gente pode errar, pode acertar. Toda a gente pode fazer o que quiser dentro de uma lógica e, de repente, entendemo-nos todos no nada”, explica.

Desleixo cívico, social
Cão à Chuva não lhe saía da cabeça. Contactou os directores artísticos do Imaginarius - Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira para colocar em prática o que lhe explodia na cabeça. Convenceu-os e deu-se bem. Muito bem. Lullaby apresentava um “palhaço bizarro esquecido nas ruas de uma metrópole”, era um convite ao público para entrar numa performance interactiva, divertida, com humor, como um “jogo de improviso entre palhaço e espectador que buscam o riso, a cumplicidade, a emoção”.

Em Maio de 2015, estava no Imaginarius e foi considerado a revelação do festival. “Foi uma investigação honesta. Estivemos um mês em residência em Santa Maria da Feira a criar o jogo, mas, mais do que isso, a tentar perceber o que é isto do clown porque não tenho formação nenhuma”. Um mês a tentar chegar a algum lado. “Essa resposta até pode não ser muito concreta, mas, no fim, foi prova de que provoca alguma coisa nas pessoas. E isso é bom”.

Antes de entrar em cena — leia-se: as ruas de Santa Maria da Feira —, o Cão à Chuva esteve dois meses em fase de testes no Fórum de Aveiro, em Évora e Beja no Festival Internacional de Teatro do Alentejo, num outro festival em Águeda. Depois do Imaginarius, esteve no Circada - Festival de Circo de Sevilha, onde ganhou o prémio de artistas emergentes; no Xtraxt, em Londres, plataforma de divulgação de novos projectos e artistas de rua; e ainda no Fringe Festival em Edimburgo, durante duas semanas em Agosto.

Santa Maria da Feira foi o primeiro palco. Na sua terra, sente que há “um respeito enorme pela cultura”. “A cultura também agita uma cidade e Santa Maria da Feira percebeu isso. Está sempre a inovar, sempre a pensar em novas formas de fazer coisas”.

Presentemente, Rui Paixão está a preparar Pozzo, uma co-produção do Cão à Chuva e da d’Orfeu Associação Cultural de Águeda. O trabalho deverá estrear em Abril próximo. É um espectáculo de rua de média escala, com estrutura cenográfica. É uma nova fase que implica crescimento, e o palhaço que o Cirque du Soleil escolheu não gosta de ficar na base. Pozzo é, diz, uma “mega-loucura”. Um jogo mais político, a história de um homem que “tem uma panca enorme que é comer porcos, é a única coisa que consegue fazer na vida”. Até que come o último porco à face da Terra e deixa a cidade em fome. Um caso que tem de ser resolvido. Às vezes, Rui Paixão colabora com a companhia Radar 360º, do Porto, nas histórias suspensas, e em Dezembro esteve no Rivoli com a peça Funâmbulo, que nasceu de uma bolsa atribuída a artistas emergentes ganha por João Cravo Cardoso, que o convidou para mais uma aventura.

Cara branca, dois tufos de cabelo verde, roupa suja, atacadores rotos. É assim que se apresenta no Cão à Chuva. A caracterização é pensada ao pormenor. “As pessoas, por vezes, não têm a noção da investigação que está por detrás de um jogo que aparenta ser tão simples. O palhaço não é um nariz vermelho, uma caracterização, ou uma roupa. É um estado de espírito. É uma frequência, tal como a água que ferve a um determinado grau. Não existem palhaços, não existem actores, não existem bailarinos, existem seres humanos que se colocam numa frequência e existem com ela”.

Rui Paixão veste-se de palhaço velho, o palhaço que já morreu, que já não existe. “De repente, temos uma figura que contraria o estado de desleixo encontrando um estado primitivo do homem. E este estado primitivo que, por sua vez, existindo na contemporaneidade, é muito mais social do que o estado social que vivemos”.

E desleixo é a palavra que encontra para falar do estado da arte. Desleixo cívico, desleixo social, desleixo pelo outro. Desleixo. “É incrível como as pessoas perdem a curiosidade pela vida”, comenta. “Um objecto artístico, a arte, ao contrário do entretenimento, não tem a finalidade de existir para massas, tem a finalidade de existir para o artista — para o artista se fazer valer, transbordar. Os artistas têm de se concentrar em si numa fase inicial para que depois o objecto a que se estão a entregar faça sentido”, conclui.