Quinze por todos

1. Nasceram em Angola. Têm entre 19 e 37 anos. Quase todos são pais de um ou vários filhos. Quase todos passaram pela faculdade. Quase todos intervêm politicamente, na rua, no papel ou no hip hop desde 2011, à custa de prisões e/ou perseguições. Não são os únicos presos políticos em Angola, mas aqueles que, em conjunto, e ao fim de meses de privações, conseguiram uma mobilização inédita. A detenção sem mandado está a prolongar-se muito para além dos 90 dias previstos na lei angolana. Querem aguardar um julgamento em liberdade e em nome disso vários cumpriram greves de fome. Vários terão sido entretanto maltratados. No momento em que escrevo, Luaty Beirão está em greve de fome pelo 32.º dia. A defesa entregou um pedido de habeas corpus ao Tribunal Supremo de Angola pedindo a libertação de todos, a decisão deverá acontecer dentro de dias. Em qualquer lugar do mundo alguém pode ser inspirado por esta luta, e o mundo será um pouco melhor por causa disso, mas o perfil de cada um destes 15 (14 negros e um branco) mostra como ela está a ser travada dentro de Angola e com angolanos.

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1. Nasceram em Angola. Têm entre 19 e 37 anos. Quase todos são pais de um ou vários filhos. Quase todos passaram pela faculdade. Quase todos intervêm politicamente, na rua, no papel ou no hip hop desde 2011, à custa de prisões e/ou perseguições. Não são os únicos presos políticos em Angola, mas aqueles que, em conjunto, e ao fim de meses de privações, conseguiram uma mobilização inédita. A detenção sem mandado está a prolongar-se muito para além dos 90 dias previstos na lei angolana. Querem aguardar um julgamento em liberdade e em nome disso vários cumpriram greves de fome. Vários terão sido entretanto maltratados. No momento em que escrevo, Luaty Beirão está em greve de fome pelo 32.º dia. A defesa entregou um pedido de habeas corpus ao Tribunal Supremo de Angola pedindo a libertação de todos, a decisão deverá acontecer dentro de dias. Em qualquer lugar do mundo alguém pode ser inspirado por esta luta, e o mundo será um pouco melhor por causa disso, mas o perfil de cada um destes 15 (14 negros e um branco) mostra como ela está a ser travada dentro de Angola e com angolanos.

2. Na acusação do Ministério Público angolano, o primeiro arguido é Domingos da Cruz, de 31 anos. Com um mestrado em Direitos Humanos feito no Brasil (depois de uma formação base em Filosofia), ensina actualmente na Universidade Independente de Angola. Publicou seis livros, entre os quais Quando a Guerra é Necessária e Urgente, que lhe valeu um processo-crime em Luanda “por alegação de incitamento à guerra e violência”, do qual se viu absolvido em 2009. Depois, adaptou à realidade angolana um clássico de Gene Sharp, Da Ditadura à Democracia, em que o autor americano propõe 198 técnicas de desobediência civil democrática e pacífica. O volume de Domingos inspirado em Sharp intitula-se Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura: Filosofia Política da Libertação para Angola. Em torno desta adaptação é que, a 20 de Junho de 2015, um grupo de activistas se juntou para debater na livraria Kiazele, em Luanda. O processo diz que “foram detidos em flagrante delito” de leitura e debate, vindo o autor (Domingos) a ser detido no dia seguinte, “quando, em fuga, pretendia transpor a fronteira”. São acusados de tentativa de golpe contra o Presidente. Luaty Beirão aparece em segundo lugar na lista da acusação.

3. Para conhecer melhor os restantes, a fonte básica é a série de perfis que Rafael Marques de Morais publicou pouco depois das detenções. Entre os 15, há outros rappers além de Luaty. Um deles é José Gomes Hata, também conhecido como “Cheik Hata”, de 30 anos, que estudou Relações Internacionais em Angola e é líder dos Terceira Divisão. Uma das letras do grupo diz:

Sentados à mesma mesa
aprovam a lei
abutres concordam como camelos do rei
sim, sim, sim
nunca dizem não
o espectro político é feito à base da corrupção
discursos limitados em factos passados
pobres e baratos
o cão do professor também pensa que já é professor
(…)
o povo em desespero
como justificar a morte de alguém
que morreu por ter sido sincero?
a criação de mais um ministério para roubar uns dinheiros?
a alcoolização do povo para esquecer o sofrimento?
falar de igualdade de direitos
se o povo não tem tecto?
somos o indescritível
não adianta falar de leis
aqui é um caso inconveniente
vivemos na desordem
sob a ditadura de um presidente

O mesmo grupo hip hop tem outro membro preso entre os 15, Hitler Jessy Chiconde “Samussuku”, de 25 anos, que estudou Ciências Políticas em Luanda. O tio, diácono de uma igreja evangélica, contou a Rafael Marques que a polícia cercou a casa da família, entrou sem mostrar mandado de busca, revirou tudo e levou todos os livros, discos e o computador do sobrinho.

4. O mais novo dos 15, mas um dos que já sofreram mais com prisões e repressões, é Manuel Baptista Chivonde “Nito Alves”, de 19 anos, caloiro de Direito em Luanda. A primeira vez que foi preso tinha apenas 15 anos, e seguiram-se mais nove prisões, espancamentos e torturas. Umas das vezes foi acusado de atentado contra o Presidente por ter imprimido 20 camisolas a dizer “Zé Dú / Fora / Nojento Ditador”. Mas antes disso, relata Rafael Marques, homens armados à paisana raptaram-no e mantiveram-no cativo, enquanto o ameaçavam de morte. A acusação acabou por ser reformulada para “crime de ultraje contra titular de órgão de soberania”, de que foi ilibado por insuficiência de provas. Entretanto, esteve preso em solitária, tinha apenas 17 anos. O nome “Nito Alves” é uma homenagem ao homónimo que liderou a tentativa de golpe de 27 de Maio de 1977, durante a qual foi morto. E passadas décadas, exactamente noutro 27 de Maio, mas de 2014, este jovem “Nito Alves” foi espancado pela polícia. Uma “surra” tal que “preferia ter estado preso”.

5. Mas vários dos 15 foram igualmente presos e torturados antes da actual prisão e agora. Um deles é Albano Evaristo Bingobingo “Albano Liberdade”, de 29 anos. Sem frequência universitária, foi motorista da Casa de Segurança do Presidente até ser expulso por reivindicar condições. Antigos colegas seu foram assassinados em 2012. Bingobingo vai na sua sétima prisão. Participou por exemplo em tentativas de manifestação contra o aumento dos combustíveis. É um dos 15 que, durante o actual processo, esteve em greve de fome. Familiares contaram a Rafael Marques que foi torturado com bastões eléctricos e mal consegue andar. Outro dos 15 que também terá sofrido choques eléctricos é Benedito Jeremias “Dito Dali”, 30 anos, um funcionário público que estudou Relações Internacionais.

6. Com cinco ou mais prisões, e espancamentos, contam-se ainda Arante Kivuvu, 21 anos, estudante de Filosofia, e Fernando Tomás “Nicola Radical”, 37 anos, técnico de geradores. Afonso Matias “Mbanza Hamza”, 30 anos, um professor primário que estudou Engenharia ainda guarda marcas de como foi espancado em 2012 por milícias, que lhe partiram a cabeça e uma omoplata.

7. Entre os detidos “em flagrante” naquele sábado, estavam ainda Nuno Álvaro Dalta, 31 anos, que estudou Língua Portuguesa e é professor num centro para crianças com necessidades especiais; Inocêncio António de Brito “Drux”, 28 anos, estudante de Economia e chefe de escuteiros; Sedrick de Carvalho, 26 anos, jornalista com frequência em Direito; e Nelson Dibango, 33 anos, que frequentou Psicologia e é técnico de informática.

8. Segundo a acusação, o 15.º preso foi detido três dias depois por ter ligações aos outros. É o tenente Osvaldo Caholo, 26 anos, formado em Relações Internacionais. A polícia apreendeu em casa dele livros como A Purga em Angola, de Dalila e Álvaro Mateus, sobre o 27 de Maio de 1977, ou Diamantes de Sangue: Tortura e Corrupção em Angola, de Rafael Marques.

9. O processo abrange 17 pessoas, das quais duas estão em liberdade provisória: Laurinda Gouveia, 26 anos, estudante de Filosofia, que relatou ter sido espancada e insultada pela polícia como “puta de merda”; e Rosa Conde, 28 anos, secretária.

10. Das tentativas de vigília em Angola entretanto reprimidas pela polícia, o músico Pedro Coquenão, do projecto Batida, destaca a das mães dos presos, quando elas se concentraram em Agosto, apelando à libertação dos filhos. Foi o momento em que “se quebrou um símbolo”, em que até a figura sagrada da “mamã angolana” não foi respeitada, diz ao telefone a partir de Luanda, quando lhe telefono para a clínica onde Luaty está no seu 32.º dia de greve de fome. O médico acaba de o avisar que entrou numa zona de risco. A mãe está ali ao lado, é ela que atende quando volto a ligar.

11. Apesar da repressão, os activistas, familiares e amigos dos 15 presos sentem uma “solidariedade em surdina” à sua volta, descreve Coquenão. Os 15 são os que naquele sábado estavam no debate, mas a insatisfação não é só deles nem de agora. No começo de 2011, lembra, houve aquele convocatória “anónima” para uma manifestação à meia-noite de 7 de Março, em Luanda, na senda das Primaveras Árabes. O email circulou, Luaty Beirão deu-lhe eco num concerto em Fevereiro, e foi um, no meio de uma dúzia, a comparecer nessa meia-noite. Acabaram todos presos, mas o rastilho seguiu, com forte impulso do hip hop. Entre os músicos, artistas ou escritores angolanos que têm levantado a bandeira dos 15 desde Junho, como Bonga, Aline Frazão, Carbono, José Eduardo Agualusa, Ondjaki, Kalaf, Paulo Flores ou Nástio Mosquito, está por exemplo o rapper MCK:

Cidadão angolense acorda antes que o sono t’enterra
se deres ouvido à minha poesia conhecerás
a cara e o nome do mosquito que nos ferra
saberás que a causa do caos do povo não foi apenas a guerra

Foto
miguel manso