A vagina da rainha e a nossa necessidade colectiva de significado

Anish Kapoor tem uma nova exposição em França, no emblemático convento de La Tourette, mas é de Dirty Corner que ainda se fala. O que justifica a pulsão para o vandalismo em Versalhes? “Referi-me àquele trabalho no feminino. Uma mulher, não um homem”, explicou o artista ao PÚBLICO.

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Silêncio, formas e cores. Tranquilidade e contemplação. Daqui à ruidosa Paris são quase 500 quilómetros, mas o que se passa em Paris não fica em Paris. Muito menos quando meia centena de jornalistas de todo o mundo se juntam em torno do autor de Dirty Corner, a escultura vandalizada nos jardins do Palácio de Versalhes.

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Silêncio, formas e cores. Tranquilidade e contemplação. Daqui à ruidosa Paris são quase 500 quilómetros, mas o que se passa em Paris não fica em Paris. Muito menos quando meia centena de jornalistas de todo o mundo se juntam em torno do autor de Dirty Corner, a escultura vandalizada nos jardins do Palácio de Versalhes.

Dirty Corner são 60 metros de metal em forma de trompa, uma presença agora conhecida como "a vagina da rainha" e sobre a qual foram executados três diferentes actos de vandalismo desde Junho. E lá estão ainda os graffiti que Anish Kapoor decidiu temporariamente não apagar, deixando ali, à vista de todos, os seus conteúdos nacionalistas e anti-semitas: "A rainha sacrificada, duas vezes ultrajada", "SS sacrifício de sangue", "a segunda VIOLAÇÃO da nação pelo activismo JUDEU DESVIANTE".

Em La Tourette, Kapoor recebe-nos em pé, de costas para uma das peças da exposição que a comunidade dominicana o convidou a apresentar (Anish Kapoor Chez Le Corbusier, até 3 de Janeiro). É a tarde que se segue ao regresso dele de Paris, menos de 24 horas volvidas sobre a reunião do artista com o Presidente François Hollande sobre o caso.

Kapoor tem os braços cruzados sobre o peito e a cabeça baixa – postura discreta, quase humilde. Por detrás, tem uma grande parede branca e rugosa. Sobre esta, um grande círculo negro, ligeiramente convexo, que espelha a luz e distorce o espaço e o corpo das pessoas em volta. Chegamos aqui conduzidos pelo monge que há mais tempo reside em La Tourette, o irmão Marc. O mesmo que minutos antes explicou sentir-se "escandalizado" com o que tem acontecido em Versalhes.

"É chocante. Sinto-me profundamente tocado pela inadmissibilidade desses gestos. É indigno ver as inscrições. É inadmissível o que está ali escrito. E a nossa resposta é esta exposição, que abre agora, poucos dias depois. Nós, os irmãos dominicanos, aceitamos estas obras entre nós. Oramos junto a elas”, explicou o monge frente à primeira das peças que apresentou à imprensa, o sítio onde pára para explicar ainda que o convite a Kapoor se inscreve numa tradição dominicana “de proximidade com os artistas do nosso tempo, em cada época”.

O irmão Marc recorda como, na mesma década de 1950 em que Courbusier era convidado para desenhar La Tourette, a comunidade dominicana editava também a influente revista L’Art Sacrée, dirigida pelos irmãos Couturier e Régamey. “Couturier escreveu que é preciso confiar nos grandes artistas da nossa época, mesmo que não sejam católicos, porque, se eles têm génio, a sua obra vai projectar-nos cada vez mais longe nas regiões do espiritual.”

Nas décadas de 1930 e 1940 Couturier empenhara-se na construção da Igreja de Nossa Senhora de Todas as Graças, perto de Chamonix, e que reúne intervenções de Braque, Matisse, Bonnard, Lurçat, Rouault, Léger, Bazaine, Chagall, Berçot, Briançon e Richier. A fachada de Léger foi considerada blasfema. Tal como o Cristo crucificado de Richier. Mas o herdeiro de Couturier que nos recebe, com o seu cabelo grisalho cortado à escovinha, o seu hábito branco e os seus intensos olhos azuis, fala apenas em “audácia”: “O que em certo momento pode parecer audacioso é o que nos desloca, o que nos faz avançar. E é por isso que o que se passa em Versalhes é consternante”, conclui o irmão Marc. 

A exposição de Kapoor em La Tourette, parte da 13.ª Bienal de Arte Contemporânea de Lyon (até 3 de Janeiro), não é especialmente vasta e as peças não foram especificamente feitas para La Tourette, apenas escolhidas a pensar no convento. No hall de entrada Kapoor instalou uma coluna reflectora que multiplica em labirinto os três corredores que dali partem. Um desses corredores leva à igreja, que é quase subterrânea e surpreende com os seus inesperados contrastes de planos de cor em verde, vermelho, preto e amarelo contra paredes de betão aparente e as suas misteriosas entradas de luz elípticas.

Ao centro da igreja Kapoor instalou uma peça espelhada cónica, uma grande base circular com uma ponta aguçada a elevar-se em direcção ao céu. Como a maioria das obras escolhidas, também quase se limita a fazer ressonância do espaço em volta. Depois, há as novas peças em silicone e pigmento vermelho, a parecerem carne, entranhas. “O que me tocou muito na primeira visita de Anish Kapoor [a La Tourette] foi a sua grande humildade e receptividade ao edifício”, explica o mesmo irmão Marc. “Sugerimos, por exemplo, que instalasse uma obra na igreja e inicialmente ele disse: ‘Mas é um lugar de tal forma silencioso que uma obra dentro, a fazer ruído, será invasiva. Não.’ Ou seja, ele teve muito em conta o edifício e a sua energia.”

Uma longa tradição

Em geral, Kapoor escolheu observar e multiplicar os efeitos matéricos do próprio desenho de Corbusier – luz a jogar com sombras a jogar com as texturas das paredes. As peças de silicone têm um perfil distinto. O monge que nos vai guiando pelo convento explica que viu essas peças pela primeira vez no atelier de Kapoor em Londres em Novembro de 2014 e sublinha o “grande impacto” que tiveram nele. Um sentimento de repulsa, mas também de atracção. “Qualquer coisa de muito forte.”

A representação da carne e das entranhas inscreve-se numa longa tradição da arte e do pensamento. O monge dominicano recorda Rembrandt, Soutine. Podia falar também de Goya, Francis Bacon. É um imaginário que deixa a exposição em tensão entre dois pólos: entre obras da ordem do carnal e peças mais despojadas, espirituais: “São os dois grandes pólos dos nossos itinerários de vida, enquanto homens. Somos carne e somos atraídos para a carne, mas somos também seres espirituais. Na tensão entre dois pólos está esta exposição – tal como a vida de qualquer homem. Qualquer homem é atraído pela carne e aspira ao espiritual”, diz o irmão Marc.

Um pouco mais tarde, Kapoor explicará interessar-se profundamente pela linguagem simbólica. Em relação a estes trabalhos recentes falará numa “hipermaterialidade”: “São pintura, mas não são pintura. São escultura, em certo sentido. São feitos de silicone, e o silicone tem uma fisicalidade própria. É o mesmo material usado para fazer partes de corpo, especialmente implantes mamários.”

Inevitavelmente, quando o corpo é virado do avesso, como acontece nestas peças, emergem ligações simbólicas, reconhece Kapoor. Especialmente num lugar como La Tourette, qualquer destas obras rapidamente ganha implicações religiosas. “Não há como evitar”, diz o artista. “É muito interessante como isso simplesmente acontece”, acrescenta Kapoor, explicando: “Como artista, não tenho nada a dizer. O trabalho de um artista não é entregar mensagens. É aceitar processos de experimentação em que há coisas que emergem, que acontecem, e tentar segui-las. Somos investigadores, de certa maneira.”

Quase uma escultura

Entre a carne e o espírito: é assim também o tom da breve conferência de imprensa que Kapoor dá após a visita guiada, que não acompanha: as primeiras perguntas aspiram aproximar-se do despojamento das obras mais minimalistas na exposição do convento de La Tourette; rapidamente, porém, surgem as primeiras perguntas sobre Versalhes. De resto, é o próprio Kapoor quem lhes abre a porta.

Durante vários minutos, fala apenas do convento. Explica como o conhecia apenas através de fotografias e como ficou “profundamente surpreendido ao senti-lo”, in loco. “O meu primeiro pensamento foi que poderia ter sido feito na Índia. Foi o que me ocorreu”, conta o artista. E não é despropositado, como ele próprio acaba por referir: Corbusier pensou La Tourette na mesma altura em que estava a fazer a cidade de Chandigarh e o edifício da Mill Owners' Association de Ahmedabad, ambos na Índia.

Kapoor, que vive em Inglaterra desde os anos 1970 mas nasceu e cresceu na Índia, vê nesta dupla de intervenções uma “enorme relação” com La Tourette, especialmente na concretização do desenho. “Não é a atitude minimalista japonesa em relação ao betão aparente. Aqui temos mesmo matéria bruta de construção. Está apenas feito. Está ali. Não é polido, não tem acabamentos, nada. O edifico inteiro tem esta característica de ser quase um objecto, uma escultura, com a sua relação muito interessante e cambiante com a luz.”

Precisamente, foi a relação entre o objecto físico do edifício e a presença etérea da luz que conduziu a exposição. “Não foi muito consciente, mas, em algum momento, tive a ideia do diálogo entre o que é objectual e o que é efémero e etéreo”, diz Kapoor. A partir daí, uma das perguntas que o artista se fez foi como seria viver em La Tourette, um espaço árido, com muito pouco conforto a oferecer.

La Tourette são dezenas de corredores e salas despidos, pontuados apenas pelo vidro das amplas janelas. Aqui e ali, a interrupção cromática constituída por inesperados planos de cores primárias (de repente, uma grande porta verde, uma parede vermelha…). “O que é que este edifício faz à vida quotidiana de um padre? Qual é a relação entre a prática espiritual quotidiana de um sacerdote e um edifício como este? Por outras palavras: o edifício preenche o espaço interior de um monge que esteja aqui?”, pergunta Kapoor.

Ao artista o edifício inspira “melancolia”. O irmão Marc explicará que, de facto, poucos monges aguentam passar mais do que um ano em La Tourette. Ele vive lá há três. “Os irmãos que vivem aqui acham que esta é uma arquitectura sem concessões, uma arquitectura espelho, que nos devolve a nós mesmos. Se tudo está bem connosco, sentimo-nos bem nesta arquitectura, se não, o que o edifício faz é obrigar-nos a olhar para dentro de nós mesmos. E essa pode ser uma experiência abissal”, diz o monge. Kapoor completa explicando como La Tourette “rejeita qualquer decoração”: “Como é que se lida com isso? Não sei. No fundo resta confiar que o trabalho fale por si e tenha uma vida tão forte quanto o próprio edifício. Caso contrário, é um não acontecimento. É como para vivermos uma vida interior – temos de a construir, não a podemos ficcionar. Literalmente, procurei a forma mais simples: peças em aço inoxidável, polidas, noções de singularidade...”

Kapoor interrompe-se aqui. Olha em volta e acaba por confirmar: “É tudo o que tenho a dizer sobre esta exposição.” E é então que chegamos a Paris. Ou, melhor: é então que Paris chega a La Tourette com autorização do artista.

"Política suja" em Versallhes

Primeira pergunta: porquê deixar os graffiti, não os apagar de imediato? “Versalhes é muito complicado”, diz Kapoor, “complicado porque é a casa de uma certa perspectiva que a França tem de si mesma”.

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Versalhes é o grande símbolo da monarquia absolutista, representando a primeira vez em que a coroa, a justiça e o governo se reuniam no mesmo espaço. Houve Luís XIV, o Rei Sol, e houve, claro, uma das mais fascinantes habitantes do palácio: Maria Antonieta, a mulher de Luís XVI.

Kapoor diz que, com Dirty Corner, visou sobretudo encetar um diálogo – “talvez um diálogo problematizante” – com os jardins desenhados por Le Nôtre, expoente máximo do jardim francês. “O trabalho convidou agora, pela segunda vez, estes ataques. O primeiro foi bastante mau. Na altura, achei que a coisa certa era remover a tinta. Mas a peça chama-se Dirty Corner e, pelos vistos, apela a coisas sujas. Agora apela à política suja. Pelo menos é assim que eu vejo a questão. E pareceu-me que a coisa certa era deixar ali aquele lixo... É muito mau. Estive lá ontem. É mesmo sórdido.”

Antes do seu encontro com a comunicação social em La Tourette, Kapoor fora informado de que Versalhes poderia levá-lo a tribunal por exibir declarações anti-semitas. E no intenso debate gerado em França, vários juristas defenderam a ilegalidade de exibir ditos anti-semitas. “É um revés maravilhoso”, ironiza o artista. Depois acrescenta mais sério: “Mostra como toda esta história é uma loucura.” Para logo de seguida se desfazer em riso enquanto explica: “Ontem encontrei-me com François Hollande e uma das coisas que ele me disse foi que apoiava a minha decisão de deixar as frases. De um ponto de vista pedagógico…”

Deixar ou apagar as inscrições feitas por terceiros é um privilégio que, à partida, assiste a Kapoor. Arriscando a violação da integridade de uma obra protegida pelas leis da propriedade intelectual, Versalhes não poderia tomar qualquer decisão unilateral. A não ser a de mandar retirar a escultura. “Afinal, o que é que eu posso fazer? Qual é a coisa certa? Não sei de facto a resposta”, explica Kapoor. “É muito vil [o que ali está]. E eu quero ver-me livre daquilo. Mas, por outro lado, talvez seja isto que o trabalho está a pedir. Como artista, chega-se ao estúdio, tem-se uma ideia, acha-se que se está a fazer uma coisa específica, depois outra coisa acontece. Por exemplo, entornamos qualquer coisa e chegamos à conclusão de que, na verdade, a obra funciona melhor assim... Temos de seguir esses momentos. No caso de Versalhes, é a segunda vez que tenho um desses momentos. Tenho de me perguntar: sigo o momento? Não sigo? O que faço? Qual é a coisa certa a fazer?”

Kapoor falava uma semana antes dos novos desenvolvimentos no caso: esta sexta-feira, a agência AFP fazia saber que o artista reconsiderou e supervisionará os trabalhos de restauro que apagarão as marcas de vandalismo. Em La Tourette o artista explicou não querer abrir um guerra com Versalhes porque “não vivemos tempos para abrir portas à agressão”. “É uma situação muito estranha. As ameaças naquele trabalho são profundamente pessoais. Mas porquê? No fundo, somos todos muito irrelevantes.”

Ou não? Não haverá qualquer coisa de maior no que os artistas fazem? E, nesse sentido, não terá Kapoor uma perspectiva sobre o que tem suscitado tanta violência? Não terá uma ideia sobre o que, de concreto, naquele trabalho, apelará a atitudes tão agressivas?

Os olhos do artista brilham quando ouve a pergunta e sorri ao responder: “Muito do meu trabalho tem a ver com opostos. Quando inicialmente completei este trabalho referi-me a ele no feminino. Disse 'ela' - uma mulher, como você, não um homem, como eu. Depois disso, o meu trabalho foi rapidamente transformado na 'vagina da rainha'." Kapoor ri: "É um trabalho abstracto. Se pegarmos numa chávena de chá e a deitarmos de lado é uma vagina. Quer dizer… Há aqui toda uma questão ligada à nossa necessidade colectiva de significado. Espero que seja o poder da arte.”

A notícia divulgada pela AFP incluía apenas uma frase de Kapoor, citada a partir de um comunicado escrito que parece aludir às acções do Estado Islâmico e ao rasto de destruição que tem deixado no legado patrimonial universal: "Nesta época perigosa em que as obras de todos os tempos são especialmente visadas pelo ódio, é nosso dever manter a escultura Dirty Corner no Palácio de Versalhes até ao fim da exposição.”

O encerramento está previsto para 1 de Novembro.

O PÚBLICO viajou a convite da Bienal de Lyon