O deve e o haver no custo da formação médica: a propósito de umas contas mal contadas!

Há quem advogue a ideia de que os médicos deveriam, no final da sua especialidade, ficar a trabalhar durante alguns anos no SNS. Discordo totalmente desta ideia.

Partindo deste custo estimado, uma vez que ainda não vi contas exactas, há quem advogue a ideia de que os médicos deveriam, no final da sua especialidade, ficar a trabalhar durante alguns anos (que não vi quantificados) no Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou, em alternativa, indemnizar o Estado, caso pretendessem ir para o sector privado.

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Partindo deste custo estimado, uma vez que ainda não vi contas exactas, há quem advogue a ideia de que os médicos deveriam, no final da sua especialidade, ficar a trabalhar durante alguns anos (que não vi quantificados) no Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou, em alternativa, indemnizar o Estado, caso pretendessem ir para o sector privado.

Discordo totalmente desta ideia.

Espero poder, nas próximas linhas, explicar porque a acho errada e até perigosa. Vejamos:

— a formação pré-graduada dos médicos é cara, embora não conheça um estudo consistente que demonstre quão cara é, nem qual a diferença para a formação noutras áreas onde também há emigração de licenciados (engenharia, arquitectura, enfermagem...). Porém, não vejo que se peça uma medida semelhante para estes casos;

para lá das propinas, os pais dos alunos pagam, com os seus impostos, a educação dos filhos;

os mais ricos e os melhores poderiam sair, ficando o SNS com os desmotivados porque não podiam sair;

o Estado-patrão poderia proletarizar os médicos, impondo salários ainda mais baixos, pois os médicos que não tivessem dinheiro para sair estariam indefesos, obrigados a aceitar qualquer remuneração;

se fizermos as contas, o interno paga, com o seu trabalho, toda a sua formação pré e pós-graduada;

Convido-os a fazerem as seguintes contas, tendo como base a tabela de preços a praticar no SNS publicada em DR de 29 de Janeiro de 2014. Os valores são, entre outros, os seguintes:

A) Episódios de Urgência

Serviço de Urgência (SU) Polivalente: 112,07 euros

SU Médico-cirúrgica: 85,91 euros

SU Básica: 51 euros

B) Consulta Externa: 31 euros/consulta

Façamos, então, algumas contas.

Partindo do pressuposto de um internato de especialidade de cinco anos, assumindo que o interno faz um período de urgência de 12 horas/semana e um período de consulta externa de 4 horas/semana, e que em cada um destes períodos vê 20 doentes na urgência e 12 na consulta externa, estimando 10 meses de trabalho (descontando as férias e eventuais licenças), este interno terá realizado, nos cinco anos da sua formação, 4.000 atendimentos de urgência e 2.400 consultas externas. Se multiplicarmos estes números pelo valor de cada tipo de urgência e consulta externa, obteremos:

 SU Polivalente + Consulta Externa = 522.680 euros

SU Médico-cirúrgica+Consulta Externa = 418.040 euros

SU Básica+Consulta Externa = 278.400 euros

Se calcularmos a média dos três valores, obteremos 406.373 euros.

Ou seja, se contarmos apenas o trabalho em Urgência de 12 horas/semana, acrescido do trabalho em consulta externa num período de 4 horas/semana e 10 meses/ano de trabalho, um interno de uma especialidade que dure cinco anos terá produzido uma receita superior ao valor médio de 400.000 euros estimado por alguns para o custo da formação pré e pós-graduada de um médico.

Acresce que, durante o seu período de formação, o médico interno desenvolve muitas outras atividades que não apenas as de assistência no serviço de urgência e consulta externa, nomeadamente acompanhamento na enfermaria, actos cirúrgicos e exames complementares de diagnóstico

Ao custo de formar um médico há, por conseguinte, que subtrair tudo isto. Ou, então, as contas estarão mal contadas!...

Estomatologista; Membro da APCMG - Associação de Medicina de Proximidade