Somos capazes de reconhecer um transexual grávido como um homem a sério?

Tese aprovada no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa sobre experiência e representação de transexualidade convida a pensar.

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Ao reconhecer a identidade de género em 2011, Portugal tornou-se o primeiro país europeu a ir ao encontro das orientações internacionais PEDRO CUNHA (arquivo)

Os transexuais tendem a ser vistos como transgressores de género, mas a sua experiência tem mais a ver com luta para alcançar o que a sociedade define como homem ou como mullher, isto é, como norma. É esta tese de doutoramento que Nuno Pinto defendeu no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa sobre experiência e representação de transexualidade, aprovada com distinção a 19 de Junho.

Nuno Pinto começa por dizer que o conhecimento sobre o assunto é incipiente. Fez não um, mas três estudos empíricos: num debruçou-se sobre as representações sociais que vieram à tona durante o debate público da lei da identidade de género, aprovada em 2011; noutro explorou o modo como os transexuais lidam com a identidade de género; noutro procurou perceber os diagnósticos de saúde.

Não havia lei que reconhecesse a identidade de género em Portugal. Se um transexual quisesse mudar o nome e a menção ao sexo nos documentos, tinha de processar o Estado. Em Janeiro de 2011, o país decidiu reconhecer esse direito, dispensando a esterilização forçada, a cirurgia de redesignação de sexo, qualquer tratamento hormonal ou prova de que as pessoas vivem segundo as convenções sociais de género - como acontece noutros países. Só exige um requerimento e um relatório médico assinado por dois profissionais.

Nem Espanha, nem o Reino Unido tinham ido tão longe. Portugal tornou-se o primeiro país europeu a ir ao encontro das orientações internacionais segundo as quais “a identidade de género é a vivência interna e individual do género tal como cada pessoa sente, podendo corresponder ou não com o sexo atribuído à nascença”.

Nuno Pinto analisou 79 artigos publicados nas edições electrónicas dos quatro principais diários; uma extensa reportagem de numa revista semanal; o debate parlamentar; a transcrição de um programa de televisão emitido na RTP; a mensagem do Presidente da República; quatro comunicados emitidos pela maior organização de direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero. E entrevistou 22 transexuais.

Percebeu que o mais comum na imprensa era abordar a transexualidade pelo lado da exclusão/discriminação, o que ia ao encontro de esforços feitos por activistas, políticos e organizações de saúde no sentido de pôr os direitos dos transexuais na agenda da igualdade. Só que a tónica não era a dos direitos humanos e civis.

Segundo Nuno Pinto, os órgãos de comunicação social deram mais ênfase ao corpo (à genitália) do que à identidade de género. A genitália foi o segundo assunto mais tratado e isso, em seu entender, sugere que a noção de género não se distingue da de sexo. E pode ajudar a perpetuar a ideia de que um transexual não é mesmo um homem e uma transexual não é mesmo uma mulher.

Apesar destes reparos, o investigador concluiu que os órgãos de comunicação social fizeram uma cobertura diversificada. Várias posições foram sendo apresentadas para que os cidadãos pudessem tirar as suas próprias conclusões. A “guerra de palavras”, escreveu, travou-se no cenário político.

Os políticos de direita manifestaram-se contra a lei por não incluir a esterilização. “Fundamentavam-se nos papéis de género”, interpretou. “Se uma pessoa quer ser reconhecida legalmente como uma mulher, não deve ter um pénis e não deve ser mãe fazendo par com outra mulher; se quer ser legalmente reconhecida como homem não deve ter vagina e não deve engravidar.”

Os políticos de esquerda e os activistas LGBT protagonizaram o discurso favorável à mudança. Não fizeram juízos sobre formas apropriadas de ser homem ou ser mulher, “disseminaram representações sociais sobre transexualidade, género e reconhecimento legal baseadas na noção de direitos humanos”.

Naquele primeiro estudo, o investigador nota que o discurso dos transexuais ouvidos pelos media era “conservador”: “Falaram sobre as suas vidas, em muitos casos reforçando a ideia de que homens e mulheres têm corpos contrários e distintos papéis”. No segundo estudo, sugere que “a transexualidade não é necessariamente uma experiência de transgressão”.

“Ser percebido como alguém que se encontra numa situação intermédia, nem homem, nem mulher, isto é, como um transgressor de género ou uma categoria de terceiro sexo, era aflitivo para muitos participantes [no estudo]”, assegura. “Ser transexual não significa ter uma identidade transexual: muitos participantes declaram que se reconhecem como mulheres ou como homens ao longo das suas trajectórias, de acordo com a sua identidade de género”, esclarece.

Nuno Pinto deixa muitas questões no ar. Desde logo esta: “Como é que a tendência generalizada para representar os transexuais como transgressores de género – e não como homens ou mulheres – molda a forma como as pessoas identificam e expressam a sua orientação de género?” Reconhece as limitações de um trabalho baseado em amostras pequenas e métodos qualitativos. E conclui que estudos futuros deverão beneficiar de amostras maiores, o que lhe parece um desafio.

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Os transexuais tendem a ser vistos como transgressores de género, mas a sua experiência tem mais a ver com luta para alcançar o que a sociedade define como homem ou como mullher, isto é, como norma. É esta tese de doutoramento que Nuno Pinto defendeu no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa sobre experiência e representação de transexualidade, aprovada com distinção a 19 de Junho.

Nuno Pinto começa por dizer que o conhecimento sobre o assunto é incipiente. Fez não um, mas três estudos empíricos: num debruçou-se sobre as representações sociais que vieram à tona durante o debate público da lei da identidade de género, aprovada em 2011; noutro explorou o modo como os transexuais lidam com a identidade de género; noutro procurou perceber os diagnósticos de saúde.

Não havia lei que reconhecesse a identidade de género em Portugal. Se um transexual quisesse mudar o nome e a menção ao sexo nos documentos, tinha de processar o Estado. Em Janeiro de 2011, o país decidiu reconhecer esse direito, dispensando a esterilização forçada, a cirurgia de redesignação de sexo, qualquer tratamento hormonal ou prova de que as pessoas vivem segundo as convenções sociais de género - como acontece noutros países. Só exige um requerimento e um relatório médico assinado por dois profissionais.

Nem Espanha, nem o Reino Unido tinham ido tão longe. Portugal tornou-se o primeiro país europeu a ir ao encontro das orientações internacionais segundo as quais “a identidade de género é a vivência interna e individual do género tal como cada pessoa sente, podendo corresponder ou não com o sexo atribuído à nascença”.

Nuno Pinto analisou 79 artigos publicados nas edições electrónicas dos quatro principais diários; uma extensa reportagem de numa revista semanal; o debate parlamentar; a transcrição de um programa de televisão emitido na RTP; a mensagem do Presidente da República; quatro comunicados emitidos pela maior organização de direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero. E entrevistou 22 transexuais.

Percebeu que o mais comum na imprensa era abordar a transexualidade pelo lado da exclusão/discriminação, o que ia ao encontro de esforços feitos por activistas, políticos e organizações de saúde no sentido de pôr os direitos dos transexuais na agenda da igualdade. Só que a tónica não era a dos direitos humanos e civis.

Segundo Nuno Pinto, os órgãos de comunicação social deram mais ênfase ao corpo (à genitália) do que à identidade de género. A genitália foi o segundo assunto mais tratado e isso, em seu entender, sugere que a noção de género não se distingue da de sexo. E pode ajudar a perpetuar a ideia de que um transexual não é mesmo um homem e uma transexual não é mesmo uma mulher.

Apesar destes reparos, o investigador concluiu que os órgãos de comunicação social fizeram uma cobertura diversificada. Várias posições foram sendo apresentadas para que os cidadãos pudessem tirar as suas próprias conclusões. A “guerra de palavras”, escreveu, travou-se no cenário político.

Os políticos de direita manifestaram-se contra a lei por não incluir a esterilização. “Fundamentavam-se nos papéis de género”, interpretou. “Se uma pessoa quer ser reconhecida legalmente como uma mulher, não deve ter um pénis e não deve ser mãe fazendo par com outra mulher; se quer ser legalmente reconhecida como homem não deve ter vagina e não deve engravidar.”

Os políticos de esquerda e os activistas LGBT protagonizaram o discurso favorável à mudança. Não fizeram juízos sobre formas apropriadas de ser homem ou ser mulher, “disseminaram representações sociais sobre transexualidade, género e reconhecimento legal baseadas na noção de direitos humanos”.

Naquele primeiro estudo, o investigador nota que o discurso dos transexuais ouvidos pelos media era “conservador”: “Falaram sobre as suas vidas, em muitos casos reforçando a ideia de que homens e mulheres têm corpos contrários e distintos papéis”. No segundo estudo, sugere que “a transexualidade não é necessariamente uma experiência de transgressão”.

“Ser percebido como alguém que se encontra numa situação intermédia, nem homem, nem mulher, isto é, como um transgressor de género ou uma categoria de terceiro sexo, era aflitivo para muitos participantes [no estudo]”, assegura. “Ser transexual não significa ter uma identidade transexual: muitos participantes declaram que se reconhecem como mulheres ou como homens ao longo das suas trajectórias, de acordo com a sua identidade de género”, esclarece.

Nuno Pinto deixa muitas questões no ar. Desde logo esta: “Como é que a tendência generalizada para representar os transexuais como transgressores de género – e não como homens ou mulheres – molda a forma como as pessoas identificam e expressam a sua orientação de género?” Reconhece as limitações de um trabalho baseado em amostras pequenas e métodos qualitativos. E conclui que estudos futuros deverão beneficiar de amostras maiores, o que lhe parece um desafio.