Ser mulher é difícil mas também é bom

Mulheres, africanas, guineenses. Trabalham de sol a sol para sustentar a família e pagar a escola dos filhos, que sonham um dia ver na universidade.A 31 de Julho celebra-se o Dia Internacional da Mulher Africana.

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Jorgete tem porte de diva, é uma activista pelos Direitos da Mulher embora na Guiné-Bissau não lhe atribuam expressões com tanta pompa. “Inspiração”, “mamã”, “modelo a seguir”, “exemplo de força e coragem”, “alguém que não se cansa de lutar por nós”, é assim que as colegas da associação de costura onde trabalha a referem. Gosta de falar — alto, pausadamente, com garra a transpirar do discurso —, especialmente quando tem muita gente a ouvi-la: “Aqui os homens não trabalham, são as mulheres que batalham para pôr os filhos na escola, para os vestir, para lhes dar de comer. Se tivermos o nosso próprio dinheiro, deixaremos de ser tão dependentes.”

Quase metade da população guineense (46%) não sabe ler nem escrever. As mulheres representam 63,2% deste universo (a percentagem de analfabetismo masculino é de 36,8%), de acordo com os últimos censos realizados no país em 2009. Jorgete finta as estatísticas. Sim, gostava de ter estudado mais do que o 6.º ano de escolaridade, mas aprendeu a virar-se como sabia: “Não é preciso ir à escola para trabalhar com agulhas. Mesmo quem vai à escola pode nunca saber coser.”

Viver o melhor que pode, o melhor que sabe, esse é também o lema de Júlia. Há duas coisas a que nunca diz não: ao trabalho e à oportunidade de aprender mais. Produz óleo de palma, vende frutas e legumes na praça, trabalha nos campos de caju e ainda está a aprender Português, Inglês e Francês, duas vezes por semana, ao final da tarde. Julia tem tantos ofícios que, quando os conta com a ponta dos dedos, acaba sempre por se perder.

O Relatório de Desenvolvimento Humano de 2014, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), refere que na Guiné-Bissau há mais homens (78,5%) economicamente activos do que mulheres (68,1%), mas contabiliza apenas a “força de trabalho que se destina à produção de bens e serviços num determinado período de tempo”, deixando de fora as actividades praticadas pela maioria das mulheres diariamente e que garantem o sustento das famílias.

Ao contrário de Júlia, Safieto não sente vontade de ir à escola, lugar que nunca conheceu. Tinha 15 anos quando se casou com um homem três décadas mais velho, que só conheceu no dia do casamento. É uma das mulheres que dão rosto aos números: 37,1% das meninas guineenses casam-se antes dos 18 anos e 59,6% das adolescentes entre os 14 e os 19 anos estão casadas com um homem pelo menos dez anos mais velho, segundo o Inquérito aos Indicadores Múltiplos de 2014 publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Hoje, com quatro filhos, Safieto não se queixa do que tem — “acho que vivo bem” — e diz que gosta muito do marido: “Sou eu que trabalho para comprar comida, mas, quando não tenho dinheiro, ele dá-me.”

Cecília está a passar uma fase menos boa. Vive com o marido em Elalab, uma ilha isolada com cerca de 200 habitantes no Norte da Guiné-Bissau. É uma saudosista dos tempos em que tinha a casa cheia com os cinco filhos, que entretanto se mudaram para Bissau, a capital. Diz que está tudo a mudar: “A tabanca [aldeia] não tem nada para oferecer aos mais jovens, só os velhos é que cá ficam. Cada vez faz mais calor, chove menos e quase não há variedade de peixe.” No ano passado, com a subida do nível da água do mar, a sua plantação de arroz inundou-se e ficou sem comida para enfrentar a época seca [entre Outubro e Junho]. A pobreza não monetária atinge 40% da população da Guiné-Bissau, desta, 60,3% vive em áreas rurais e apenas 8,4% em centros urbanos — os números são do relatório “Guiné-Bissau: Segundo Documento de Estratégia Nacional de Redução da Pobreza”, realizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2011. “Tem sido um período difícil mas este ano vai ser diferente. Comemos arroz de manhã, à tarde e à noite. Para os flupes [uma das mais de 30 etnias do país], arroz é riqueza, se não tens arroz, estás na desgraça.”

Júlia M’bana,  30 anos

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Levanto-me todos os dias às cinco da manhã e trabalho até o sol se pôr. Faço sabão, vendo bananas no mercado, trabalho nos campos de caju, colho chabéu [fruto do dendezeiro, uma espécie de palmeira] e produzo óleo de palma na Associação Sitna Bissif [“extracção de óleo de palma” em crioulo], onde sou secretária. Sou eu quem sustenta a casa: vivo com a minha sogra, os irmãos do meu marido, a minha avó, as minhas duas filhas, a minha cumbossa e os filhos da minha cumbossa. Ao todo, compro comida para 11 pessoas, quando não tenho dinheiro peço ajuda à minha avó, mas ela também já está velha. Comemos arroz a todas as refeições e, quando é possível, ponho peixe para acompanhar. O meu marido foi trabalhar para Cabo Verde e nunca mais voltou, há sete anos que não o vejo, que tomo conta das nossas filhas sozinha. De vez em quando, telefona: diz que a vida lá é difícil, que há muita crise, que não nos pode ajudar aqui em Cacheu [cidade da costa norte da Guiné-Bissau], mas que deve voltar no final deste ano. Os homens africanos não querem trabalhar no duro, são sempre as mulheres que cortam a lenha, carregam a água, varrem a casa, cuidam da horta e vendem na feira. Comecei a namorar com o Martinho muito nova, mas ele engravidou outra e eu tornei-me na sua segunda esposa. A minha cumbossa foi ao meu casamento, mesmo que eu não quisesse que ela fosse, o que é que podia fazer? Gostava de ter mais um filho, um homem. Também queria arranjar um namorado, mas tenho medo: seria obrigada a deixar as minhas filhas na casa do meu marido. É por causa de elas que não arrisco, talvez um dia, quando estiverem crescidas… Se o meu marido voltar, fico feliz porque ele vai ajudar-me e não terei de trabalhar tanto. Para onde quer que me vire, só vejo trabalho. Quero ganhar dinheiro para pagar os colégios, comprar roupas novas e cabelo [extensões artificiais] para mim e para elas e poder ir ao médico, se for preciso. Não sou doutora, mas elas vão ser: estudam na escola privada [as escolas públicas da Guiné-Bissau têm uma má reputação porque, durante o Governo de Transição — entre Maio de 2012 e Junho de 2014 —, os professores faziam várias greves para reivindicar pagamentos em atraso] e quero que vão para a universidade. A minha vida mudou depois de ter entrado na Associação Sitna Bissif, no dia 10 de Outubro de 2008. Antes, não tinha nem 100 francos CFA [cerca de 15 cêntimos] para comprar sabão. Hoje somos 51 mulheres e 14 homens e juntos conseguimos produzir muito mais óleo de palma do que se estivéssemos sozinhos. Quando estou triste e vou trabalhar com elas, brincamos, conversamos, aconselhamo-nos umas às outras e fico mais contente. Esta união ajuda a ter muitas ideias. Estou a estudar Português e Francês, quero sempre aprender mais.

Jorgete Benante, 59 anos

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Nasci em 1956, isso são quantos anos? Durante a guerra [Guerra da Independência da Guiné-Bissau que começou em 1963], os meus pais fugiram comigo e com a minha irmã para o Senegal. Estudei num colégio de freiras, por isso é que falo francês tão bem. Depois casei, tive filhos e não voltei mais à escola. O meu marido viajou para Portugal e nunca mais disse nada, abandonou-me com duas crianças. Quando regressei à Guiné, conheci um rapaz 13 anos mais novo, que tinha acabado de regressar de Cuba, onde estudava. Ele começou a andar atrás de mim, mas eu dizia que não queria nada, tinha medo. Insistiu tanto que acabei por aceitar, vivemos juntos há 20 anos e temos três filhos. É o meu marido, não casámos mas dividimos a vida. Sou cristã, quando vou à igreja, sinto o meu coração confiante, alegre. É como quando passas água no corpo, sentes-te fresca. Depois da missa, digo “bom dia” a toda a gente e venho para casa, comprar comida na feira e fazer o almoço. Aqui em São Domingos todos me tratam por Iaié [mamã em crioulo], alguns nem sabem que me chamo Jorgete. As pessoas ouvem-me, sou muito respeitada. Já trabalhei no campo, nas limpezas, mas agora só costuro e planto arroz, dói-me as costas, já sou mindjer garandi [“mulher velha” em crioulo]. Sempre brinquei com agulhas. Como não estudei muitos anos, um dia pensei: o que é que eu posso fazer? Uns vão à escola, eu sei costurar. Quando vejo um modelo de que gosto, deito-me e fico a imaginar. Depois, às vezes a meio da noite, levanto-me, ligo a luz, pego no tecido e começo a coser. Quando termino, volto a deitar-me. Sou a presidente da Associação Dja Guimabilar [ “nós fazemos” em manjaco, uma das mais de 30 línguas faladas na Guiné-Bissau]. Somos nove mulheres e um homem — o costureiro é sempre um homem —, vamos recuperar a tradição de tingir e bordar panos. Tivemos formação e aprendemos a fazer modelos modernos, para vender mais. Queremos que este seja o nosso rendimento de final do mês, se as mulheres ganharem o seu dinheiro, não dependem tanto dos homens. É difícil ser mulher na Guiné, mas também é bom. Se o nosso trabalho tiver sucesso, vou construir uma casa com quartos para os meus cinco filhos e para os meus netos, já tenho o terreno mas falta-me dinheiro para a erguer. Passo as tardes na associação e à noite também costuro. Como não tenho luz em casa, ponho a lanterna no ombro e seguro-a com a cabeça. Às vezes até coso na cama. Uma vez em que fui ao Senegal, vi um rapaz na feira que costurava sacos de arroz. Vim para casa a pensar nisso e depois começaram a sair modelos da minha cabeça: bordei os sacos de arroz que tinha em casa e fiz malas de diferentes formatos. Vou levar a ideia para a associação: não penso no rendimento só para mim, também olho para elas, este dinheiro ajuda-nos muito.

Cecília Djedjo,  56 anos

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Vivo com o meu marido em Elalab, já fomos muitos cá em casa, antes de os meus cinco filhos irem para a cidade. A tabanca não tem nada para oferecer aos mais jovens, só os velhos é que cá ficam. Cada vez faz mais calor, chove menos e quase não há variedade de peixe. No ano passado, o terreno onde plantei o arroz foi inundado de água salgada, perdemos tudo e ficámos sem ter que comer. Para os flupes, arroz é riqueza, se não tens arroz, estás na desgraça. Como sobrevivi? Os vizinhos convidaram-me a participar na colheita nos seus terrenos e deram-me algum arroz. Comi uma parte com o meu marido e a outra guardei, para ter sementes e poder plantar este ano sem ter de pedir a mais ninguém. Vendi os animais domésticos — cabras e porcos —, e os meus dois filhos que estavam a estudar em Bissau tiveram de ir trabalhar para ganhar algum dinheiro. Compraram-nos três sacas, é isso que temos comido durante a época seca. Quando o meu marido consegue apanhar peixe, eu vou na piroga [canoa de madeira] com outras mulheres e vendo-o no mercado. Procurei alternativas, precisava de fazer alguma coisa para poder comprar outros alimentos: comecei a costurar na máquina que a minha irmã mais velha me ofereceu — as pessoas trazem os tecidos, pagam-me o serviço e com esse dinheiro compro comida. Também tento plantar batatas, milho, tomates, mas não é fácil, o terreno de Elalab é pouco fértil e os porcos destroem as plantações. Na tabanca de Elalab somos todos flupes, a maioria é animista mas a minha família é católica, vivemos no bairro católico. Por tradição, quando o homem morre primeiro do que a mulher, a casa e os animais do casal têm de ser destruídos. A mulher terá de ir viver para um anexo na casa do irmão mais velho do marido ou pedir aos filhos para lhe construírem uma nova casa. Não é bem visto manter os bens de alguém que morreu. Connosco isso não vai acontecer, somos católicos. Se o Zé morrer primeiro do que eu, ficarei com a casa e com os animais. Esta tradição é uma forma de tirar poder às mulheres, não faz sentido nos dias de hoje.

Safieto Djaló,  31 anos

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Sou a responsável pela limpeza da área das mulheres no Mercado de São Domingos [cidade fronteiriça no Norte da Guiné-Bissau]. Levo duas horas a limpar tudo e depois vou vender cebolas, tomates, chuchu, manteiga de amendoim, óleo de palma… Ganho 15 mil francos CFA (cerca de 17,5 euros) por mês, vivo com o meu marido, os nossos filhos e a minha cumbossa [“rival” em crioulo e refere-se à primeira mulher do marido]. Só à quinta-feira é que não varro, é dia de lumo [feira semanal], o mercado fica cheio. Faço muitas coisas para poder ganhar dinheiro porque o meu marido já não tem força, tem idade. Mesmo assim, quando o dinheiro não chega, ele ajuda com o que ganha no corte de lenha. Eu e a minha cumbossa? Damo-nos bem, somos muito amigas. A primeira vez que vi o meu marido foi no dia do casamento, o meu irmão mais velho é que o conhecia. Quando olhei para ele, quis desistir, mas ia fazer a minha mãe passar por uma grande vergonha, tive de aceitar. Casámos há 16 anos, ele tem mais uns 40 anos do que eu, temos quatro filhos. Dantes se a mulher rejeitasse casar, era espancada, mas agora com a escola isso já não acontece… Como não fui à escola, gosto de ver a telenovela na TV Record, aprendo muita coisa que não sabia, dá-me ideias. Aprendi a mimar, a abraçar, a falar bem com o meu marido e os meus filhos. Se não vais à escola e não vês novelas, não sabes nada, nada, ficas burra. Quando chega às nove da noite, as mulheres da vizinhança reúnem-se todas a ver televisão num sítio aqui próximo. Se eu não tiver trabalho para fazer, vou com os meus filhos, só o meu marido é que fica em casa. Gostava de ter um painel solar no telhado para poder ter um ecrã só para mim. Acho que vivo bem: pago a escola dos meninos e compro comida. A diversão é só no Tabaski e no Ramadão [as duas maiores festas muçulmanas] ou quando há um casamento… Se vamos a uma cerimónia, nós os fulas [outra das etnias guineenses] compramos sempre roupa nova, matamos um porco e oferecemos algum dinheiro. Gosto da Guiné-Bissau, aqui és livre, ninguém te chateia. No Senegal há melhores condições, mais limpeza, mais verduras, mas se não tens dinheiro, não vives. Na Guiné podes viver sem dinheiro porque o guineense tem pena do seu companheiro.

Este trabalho foi realizado com o apoio da ONGD Monte