O cacau ainda mexe em São Tomé?

Foi um dos símbolos do colonialismo português, foi o produto rei de São Tomé, continua a ser o que mais se exporta. Quarenta anos depois da independência, o cacau já não tem o poder que tinha — mas ainda mexe. O que é que o cacau nos conta sobre estes últimos 40 anos?

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Nazaré Ceita, historiadora, 50 anos, aponta para a avenida e lembra uma memória da sua infância: o cheiro a cacau que vinha dos armazéns onde era depositado um dos produtos que mais ficou associado a estas ilhas a partir dos finais do século XIX. "Tudo isto que está em fila, até à ponta, era cacau", diz, debaixo de um Sol intenso. "O cacau que a roça trazia era para escoamento, com serviçais que faziam o descarregamento".

Horas antes, Nazaré Ceita está a guiar-nos por uma das mais conhecidas roças de São Tomé, a Roça Agostinho Neto, antiga Rio do Ouro.

Mal o jipe entra pelo terreno adentro sente-se o cheiro a cacau. Os edifícios onde antes se fazia a secagem estão abandonados. A madeira das portas está partida. Crianças percorrem a enorme "avenida" que liga o antigo hospital à casa da administração. Por essa estrada espalham-se casas do tempo colonial em madeira e casas novas, algumas já com telhas e cimento, há gente na rua, estendais imensos de roupa. José, 61 anos, jardineiro que ali viveu toda a vida, faz de guia e explica que é a comissão de moradores que se ocupa da roça, onde vivem milhares de pessoas.

Há 40 anos, quando se deu a independência de São Tomé e Príncipe, seria adoptado um regime socialista, de partido único (o MLSTP, que durou até 1990), e todas as plantações de cacau foram nacionalizadas. Esta também. Depois "cada um tomou pequenas células", explica "Zé", sobre os terrenos.

Os antigos donos das roças deixaram para trás uma produção que chegou a atingir as 12 mil toneladas por ano: hoje não chega às três mil. O país foi em tempos o maior produtor mundial de cacau, diz-nos António Dias, director da CECAB, Cooperativa de Produção e Exportação de Cacau Biológico e ex-ministro da Agricultura.

Ainda hoje o cacau representa cerca de 90% ou mais do valor total das exportações, segundo o economista Adelino Castelo David, ex-ministro, ex-governador do Banco Central. "O valor do cacau exportado foi sempre superior ao de serviços até 1992, período em que a situação começou a inverter-se até o aumento dos serviços, que compreende também viagens e turismo, que vêm crescendo gradualmente." Hoje a grande fatia do emprego no sector agrícola é no cacau.

Aqui na Agostinho Neto ninguém produz cacau, nas dependências como a Caldeira sim. "Como é que vocês deixaram o hospital cair?", pergunta Nazaré Ceita a José, apontando para o edifício que foi ocupado por várias famílias. De perto vê-se bem que este bloco cor-de-rosa, de arquitectura do século XVIII, está completamente abandonado.

Andamos na estrada em direcção à cascata por onde os serviçais não passavam, explica José. O que mudou com o fim do colonialismo, o que mudou nestes 40 anos?, perguntamos a José. "Mudou muita coisa. Liberdade." Liberdade é o que repete.

Na roça mudou muito pouco. "Falta mão-de-obra e construir casas de trabalhadores".

O abandono das roças é algo que são-tomenses como o economista Jorge Coelho, 56 anos, ex-candidato à Presidente da República, criticam. Poderia ter sido feita uma "certa negociação da parte económica da independência", mas as plantações foram abandonadas, "então teve que se fazer uma tomada à força", comenta. "Com a influência do comunismo e com a estatização da economia na altura, toda a produção de cacau ficou na mão do Estado. Mas o Estado tentou gerir a produção de cacau de forma centralizada e foi ineficiente", considera o também professor de História económica que deu aulas em várias universidades americanas.

Nos anos 1990, continua o economista, distribui-se a terra pelos são-tomenses que começaram a trabalhar uma terra que seria parcelada, sob ordens do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM), explica. "Mandaram distribuir as roças pensando que ao distribuir as pessoas iam trabalhar e ficar donos. Esqueceram-se que temos uma população que tem muita dificuldade em assumir-se como dono, é o nosso ponto fraco." O programa estrutural está a ser aplicado "há 20 anos, eles vêm cá e dizem que há mudanças mas nós que somos economistas não vemos mudança nenhuma", comenta.

Uma das figuras históricas de luta pela independência, e mais tarde pela democracia, o jurista Filinto da Costa Alegre, diz que a intervenção do BM e do FMI nesta matéria tratou-se de uma imposição das premissas do pacto colonial, porque "era continuar a monocultura do cacau". "Estava-se a tentar fazer reviver algo que já não tinha sustentabilidade, era preciso uma reforma agrária no país, e repensar a diversificação para a modernização do sector agrícola, melhoria de gestão. Era preciso formarem-se verdadeiros agricultores e empresários agrícolas. O desenvolvimento não foi nesse sentido, foi um fracasso total."

Dependência externa

O cacau era o petróleo de São Tomé, a sua maior fonte de riqueza, mas ao longo destes 40 anos a produção quase que morreu, sublinha o artista plástico Kwame de Souza, 35 anos. "Esqueceu-se que se criou uma sociedade à volta do cacau" e que as comunidades que viviam da agricultura empobreceram, empobrecendo assim o país, que passou a depender da ajuda externa.

A quase totalidade do Orçamento do Estado depende da ajuda externa. O país continua a receber vários apoios, da educação à saúde, e ainda no ano passado acordou implementar uma estratégia para reduzir a pobreza, que está acima dos 60%. Porém, o BM prevê que o Produto Interno Bruto (PIB) deverá crescer de 4,1% em 2014, para 4,4% em 2016 e que o país tem tido uma melhoria significativa na área do desenvolvimento humano: está em 144.º lugar entre 186 países, no Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), acima da média dos países da África Subsariana.

Mas se o principal produto de exportação são-tomense é o cacau, a quantidade (três mil toneladas em 2014) é irrisória, lembra Jorge Coelho, que defende que tem potencialidade para "ser um país riquíssimo em África". Em 2014, a venda de cacau rendeu nove milhões de dólares, representando 93,9% das exportações de produtos agrícolas.

Kwame de Souza lembra, por outro lado, que a marca da produção de cacau em São Tomé é tão grande que faz parte do desenho da arquitectura do país. "Em todas as zonas encontramos casas coloniais, feitas pelos colonos, onde produziam cacau e essas empresas estão hoje num estado lastimável, no limiar da pobreza. As pessoas que viviam lá — cabo-verdianos, moçambicanos, angolanos que vinham contratados — ficaram sem educação, saúde, saneamento e ainda por cima continuaram a ser estrangeiros durante muitos anos", critica.

Hoje o cacau não é prioridade, "então o Estado o que faz?", interroga, retoricamente. "Trabalha com grandes empresas que consomem e compram todo o cacau produzido em São Tomé." Contra a nacionalização das roças, Kwame de Souza critica também a falta de gestão pela parte do Estado. "Neste momento o cacau consegue ter muito pouco poder, não mexe com nada".

Houve um período em que o cacau tinha poder e muito durante o colonialismo. Filinto da Costa Alegre fala do papel que o cacau teve como instrumento de colonização e de desigualdade. "Conquistada a independência, devíamos ter ultrapassado o anátema do cacau, devíamos ter caminhado para uma diversificação agrícola de modo a não estarmos nesta dependência de importarmos quase tudo o que necessitamos". A produção foi decaindo, não só por causa da velhice das plantações e das infra-estruturas como porque "não somos capazes de dominar a tecnologia".

Apostar na qualidade
Em vez de acrescentar valor ao cacau, São Tomé continua a apostar na "parte menos rentável": no cultivo, na produção e na secagem. "Toda a rentabilidade vem depois de se colocar o cacau lá fora; por isso é que não avançamos." Como vários são-tomenses ouvidos, também Filinto da Costa Alegre defende que se deveria apostar na qualidade e não na quantidade. "O nosso cacau é usado para melhorar os lotes que vêm de outros países; então era preciso que se tivesse atenção particular a isto, preservar a qualidade".

Exemplo da falta de investimento é que há séculos que se cultiva cacau em São Tomé e, por exemplo, "não existe uma escola para ensinar as crianças a fazerem cacau", nota.

A produção de cacau não vai poder resolver os problemas económicos de São Tomé e Príncipe e como é tão baixa não está em condições de contribuir, como se desejaria, para a economia local, diz, por outro lado António Dias. "Há muitas vozes que dizem que se trata do fim de um ciclo", comenta. "São Tomé representa uma gota no oceano, temos a Costa do Marfim que produz acima de um 1,5 milhões de toneladas de cacau, logo a aposta tem que ser na qualidade. É essa aposta que se tem vindo a fazer para que seja o primeiro produtor na qualidade do cacau; mesmo ao nível dos mercados internacionais existem nichos e fazendo apostas estou convencido que pode contribuir um pouco mais para economia".

Exemplos como a empresa do italiano Claudio Corallo, que produz um chocolate que já foi várias vezes considerado um dos melhores do mundo, são para seguir — assim como o de outras empresas como a Satocau que está a fazer um esforço de reabilitação de cacueiros.

Memória da escravatura
Mas para historiadores como Isaura Carvalho há uma questão mais complexa associada ao cacau: a memória da escravatura. Muitos dos trabalhadores agrícolas até aos anos 1960 estavam em regime de trabalho forçado e isso é um peso que "ainda paira" no ar. "O que as roças transmitem é a degradação de um património em que a maior falha foi não conseguir inverter a nosso favor toda uma História ligada a estas estruturas. Continuamos a manter quase que a relação de uma ideia colonial com os espaços".

Hoje o cacau não deveria, porém, ser perdido de vista na economia de São Tomé e Príncipe, mas devia-se apostar nas cooperativas e nos mercados externos para escoar o produto, defende Nazaré Ceita. "De facto é preciso que o governo faça apostas, por exemplo no cacau de qualidade, evitando-se a super-produção, e investindo na criação de estruturas fabris que transformasse o cacau em chocolate. Falta trabalho de casa", resume a historiadora, especialista no período colonial.

Caminhos? Apostar na diversificação agrícola, produzir culturas alimentares, e "produzir coisas e produtos que facilitassem a nossa integração na região", propõe Filinto da Costa Alegre. "São Tomé está colocado no Golfo da Guiné mas a sua balança comercial não tem trocas mínimas com a região porque o seu sector produtivo está virado para satisfazer outras. Qualquer programa de desenvolvimento teria que olhar para a questão da agricultura, das pescas — temos um mar com algum peixe mas não temos o equipamento necessário para capturar, conservar, transformar o peixe. O que São Tomé faz é vender licenças de pesca para os que têm frotas. Os co-culpados somos nós: em 40 anos não sabemos definir o que queremos ser. As relações internacionais são absolutamente desiguais e injustas e da nossa parte não tem havido a ponderação necessária para definir o caminho e tentarmos segui-lo."

Teotónio Torres, economista, um dos dirigentes da Associação dos Economistas de São Tomé e Príncipe, e um homem que tem denunciado alegados casos de corrupção na gestão do dossier do petróleo, discorda que se deva apostar no cacau porque exige um tipo de trabalho violento. E a população de 180 mil são-tomenses é escassa, "deve ser aproveitada no que der mais rendimento". Não o vê como um produto que possa melhorar a vida dos são-tomenses, ao contrário da pesca, do turismo, do petróleo. No fundo acha que os esforços deveriam ir para outros sectores que beneficiariam mais o povo.

Embora a produção de cacau continue a ser uma das alternativas económicas, não está a ter a produção desejável, nota Isaura Carvalho. Não há mão-de-obra, técnicos formados para fazer o acompanhamento, falta a maquinaria de suporte, a tecnologia. "Há todo um conjunto de factores que emperram este processo e fazem com que não seja viável. Supondo que queríamos que a nossa economia vivesse do cacau: tínhamos que olhar para ele como um produto especial."

"Economia artificial"
A viver há 20 anos em São Tomé, o italiano Claudio Corallo foi dos exemplos mais referidos nestas entrevistas: acrescentou valor ao cacau produzido na ilha, transformando-o em chocolate e apostando na qualidade. Fazê-lo não é uma receita para o destino do cacau do país, comenta-nos. "Claro que numa terra pequena assim é melhor ir para a qualidade do que para a quantidade. Mas aqui há uma economia totalmente artificial" — fruto dos projectos de cooperação que duram um curto período de tempo e não criam autonomia.

"Aqui temos o problema da falta do Estado, não há lei, a lei não é respeitada", queixa-se ele que já teve várias pessoas a construírem casas nos seus terrenos. "A última casa começou a ser construída há dias e já decidimos que não merece queixas: perco dinheiro em advogados, tempo... é gente que recebeu terrenos para construir casa mas prefere ficar na nossa roça porque está limpa e etc.".

Num país tão pequeno, um projecto altera profundamente a economia, alerta. O mercado é extremamente difícil, até porque globalmente as chocolaterias de médio tamanho estão a desaparecer: "Ou é Nestlé, ou é super-qualidade; a confeitaria é outro trabalho. Verdadeiramente: é muito difícil."

É preciso mudar de paradigma, defende, por seu lado, João Carlos Silva, fundador da Bienal de São Tomé, do centro de artes Cacau e da Roça de São João dos Angolares, também autor do programa de televisão Na Roça com os Tachos. "O cacau condicionou a nossa vida, não vamos deixar que ele morra. Mas temos que olhar de outra forma, temos que ver que o próprio modo como era produzido está associado a um determinado tipo de sistema que não se compadece com a democracia. São Tomé nunca foi pensado como país que pode ter viabilidade económica mas como país que pode continuar de mãos estendidas. Quarenta anos depois temos que voltar a olhar para as roças como pequenos pólos de desenvolvimento local e de uma forma integrada" — algumas dessas roças, sugere, poderiam avançar para futuras vilas e cidades do país. "Temos que olhar para os próximos anos, pensar no que fazemos com as vulnerabilidades e com o património imenso que temos, olhando para o meio rural que é fundamental para a sobrevivência deste país."

De volta à roça de Agostinho Neto, o senhor "Zé" defende que se devia apostar e produzir mais cacau. Porque é que isso não acontece? "Tinha que ter gente para tomar conta disto. E não tem. A mata toda está abandonada".

Esta reportagem foi realizada em parceria com 

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Nazaré Ceita, historiadora, 50 anos, aponta para a avenida e lembra uma memória da sua infância: o cheiro a cacau que vinha dos armazéns onde era depositado um dos produtos que mais ficou associado a estas ilhas a partir dos finais do século XIX. "Tudo isto que está em fila, até à ponta, era cacau", diz, debaixo de um Sol intenso. "O cacau que a roça trazia era para escoamento, com serviçais que faziam o descarregamento".

Horas antes, Nazaré Ceita está a guiar-nos por uma das mais conhecidas roças de São Tomé, a Roça Agostinho Neto, antiga Rio do Ouro.

Mal o jipe entra pelo terreno adentro sente-se o cheiro a cacau. Os edifícios onde antes se fazia a secagem estão abandonados. A madeira das portas está partida. Crianças percorrem a enorme "avenida" que liga o antigo hospital à casa da administração. Por essa estrada espalham-se casas do tempo colonial em madeira e casas novas, algumas já com telhas e cimento, há gente na rua, estendais imensos de roupa. José, 61 anos, jardineiro que ali viveu toda a vida, faz de guia e explica que é a comissão de moradores que se ocupa da roça, onde vivem milhares de pessoas.

Há 40 anos, quando se deu a independência de São Tomé e Príncipe, seria adoptado um regime socialista, de partido único (o MLSTP, que durou até 1990), e todas as plantações de cacau foram nacionalizadas. Esta também. Depois "cada um tomou pequenas células", explica "Zé", sobre os terrenos.

Os antigos donos das roças deixaram para trás uma produção que chegou a atingir as 12 mil toneladas por ano: hoje não chega às três mil. O país foi em tempos o maior produtor mundial de cacau, diz-nos António Dias, director da CECAB, Cooperativa de Produção e Exportação de Cacau Biológico e ex-ministro da Agricultura.

Ainda hoje o cacau representa cerca de 90% ou mais do valor total das exportações, segundo o economista Adelino Castelo David, ex-ministro, ex-governador do Banco Central. "O valor do cacau exportado foi sempre superior ao de serviços até 1992, período em que a situação começou a inverter-se até o aumento dos serviços, que compreende também viagens e turismo, que vêm crescendo gradualmente." Hoje a grande fatia do emprego no sector agrícola é no cacau.

Aqui na Agostinho Neto ninguém produz cacau, nas dependências como a Caldeira sim. "Como é que vocês deixaram o hospital cair?", pergunta Nazaré Ceita a José, apontando para o edifício que foi ocupado por várias famílias. De perto vê-se bem que este bloco cor-de-rosa, de arquitectura do século XVIII, está completamente abandonado.

Andamos na estrada em direcção à cascata por onde os serviçais não passavam, explica José. O que mudou com o fim do colonialismo, o que mudou nestes 40 anos?, perguntamos a José. "Mudou muita coisa. Liberdade." Liberdade é o que repete.

Na roça mudou muito pouco. "Falta mão-de-obra e construir casas de trabalhadores".

O abandono das roças é algo que são-tomenses como o economista Jorge Coelho, 56 anos, ex-candidato à Presidente da República, criticam. Poderia ter sido feita uma "certa negociação da parte económica da independência", mas as plantações foram abandonadas, "então teve que se fazer uma tomada à força", comenta. "Com a influência do comunismo e com a estatização da economia na altura, toda a produção de cacau ficou na mão do Estado. Mas o Estado tentou gerir a produção de cacau de forma centralizada e foi ineficiente", considera o também professor de História económica que deu aulas em várias universidades americanas.

Nos anos 1990, continua o economista, distribui-se a terra pelos são-tomenses que começaram a trabalhar uma terra que seria parcelada, sob ordens do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM), explica. "Mandaram distribuir as roças pensando que ao distribuir as pessoas iam trabalhar e ficar donos. Esqueceram-se que temos uma população que tem muita dificuldade em assumir-se como dono, é o nosso ponto fraco." O programa estrutural está a ser aplicado "há 20 anos, eles vêm cá e dizem que há mudanças mas nós que somos economistas não vemos mudança nenhuma", comenta.

Uma das figuras históricas de luta pela independência, e mais tarde pela democracia, o jurista Filinto da Costa Alegre, diz que a intervenção do BM e do FMI nesta matéria tratou-se de uma imposição das premissas do pacto colonial, porque "era continuar a monocultura do cacau". "Estava-se a tentar fazer reviver algo que já não tinha sustentabilidade, era preciso uma reforma agrária no país, e repensar a diversificação para a modernização do sector agrícola, melhoria de gestão. Era preciso formarem-se verdadeiros agricultores e empresários agrícolas. O desenvolvimento não foi nesse sentido, foi um fracasso total."

Dependência externa

O cacau era o petróleo de São Tomé, a sua maior fonte de riqueza, mas ao longo destes 40 anos a produção quase que morreu, sublinha o artista plástico Kwame de Souza, 35 anos. "Esqueceu-se que se criou uma sociedade à volta do cacau" e que as comunidades que viviam da agricultura empobreceram, empobrecendo assim o país, que passou a depender da ajuda externa.

A quase totalidade do Orçamento do Estado depende da ajuda externa. O país continua a receber vários apoios, da educação à saúde, e ainda no ano passado acordou implementar uma estratégia para reduzir a pobreza, que está acima dos 60%. Porém, o BM prevê que o Produto Interno Bruto (PIB) deverá crescer de 4,1% em 2014, para 4,4% em 2016 e que o país tem tido uma melhoria significativa na área do desenvolvimento humano: está em 144.º lugar entre 186 países, no Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), acima da média dos países da África Subsariana.

Mas se o principal produto de exportação são-tomense é o cacau, a quantidade (três mil toneladas em 2014) é irrisória, lembra Jorge Coelho, que defende que tem potencialidade para "ser um país riquíssimo em África". Em 2014, a venda de cacau rendeu nove milhões de dólares, representando 93,9% das exportações de produtos agrícolas.

Kwame de Souza lembra, por outro lado, que a marca da produção de cacau em São Tomé é tão grande que faz parte do desenho da arquitectura do país. "Em todas as zonas encontramos casas coloniais, feitas pelos colonos, onde produziam cacau e essas empresas estão hoje num estado lastimável, no limiar da pobreza. As pessoas que viviam lá — cabo-verdianos, moçambicanos, angolanos que vinham contratados — ficaram sem educação, saúde, saneamento e ainda por cima continuaram a ser estrangeiros durante muitos anos", critica.

Hoje o cacau não é prioridade, "então o Estado o que faz?", interroga, retoricamente. "Trabalha com grandes empresas que consomem e compram todo o cacau produzido em São Tomé." Contra a nacionalização das roças, Kwame de Souza critica também a falta de gestão pela parte do Estado. "Neste momento o cacau consegue ter muito pouco poder, não mexe com nada".

Houve um período em que o cacau tinha poder e muito durante o colonialismo. Filinto da Costa Alegre fala do papel que o cacau teve como instrumento de colonização e de desigualdade. "Conquistada a independência, devíamos ter ultrapassado o anátema do cacau, devíamos ter caminhado para uma diversificação agrícola de modo a não estarmos nesta dependência de importarmos quase tudo o que necessitamos". A produção foi decaindo, não só por causa da velhice das plantações e das infra-estruturas como porque "não somos capazes de dominar a tecnologia".

Apostar na qualidade
Em vez de acrescentar valor ao cacau, São Tomé continua a apostar na "parte menos rentável": no cultivo, na produção e na secagem. "Toda a rentabilidade vem depois de se colocar o cacau lá fora; por isso é que não avançamos." Como vários são-tomenses ouvidos, também Filinto da Costa Alegre defende que se deveria apostar na qualidade e não na quantidade. "O nosso cacau é usado para melhorar os lotes que vêm de outros países; então era preciso que se tivesse atenção particular a isto, preservar a qualidade".

Exemplo da falta de investimento é que há séculos que se cultiva cacau em São Tomé e, por exemplo, "não existe uma escola para ensinar as crianças a fazerem cacau", nota.

A produção de cacau não vai poder resolver os problemas económicos de São Tomé e Príncipe e como é tão baixa não está em condições de contribuir, como se desejaria, para a economia local, diz, por outro lado António Dias. "Há muitas vozes que dizem que se trata do fim de um ciclo", comenta. "São Tomé representa uma gota no oceano, temos a Costa do Marfim que produz acima de um 1,5 milhões de toneladas de cacau, logo a aposta tem que ser na qualidade. É essa aposta que se tem vindo a fazer para que seja o primeiro produtor na qualidade do cacau; mesmo ao nível dos mercados internacionais existem nichos e fazendo apostas estou convencido que pode contribuir um pouco mais para economia".

Exemplos como a empresa do italiano Claudio Corallo, que produz um chocolate que já foi várias vezes considerado um dos melhores do mundo, são para seguir — assim como o de outras empresas como a Satocau que está a fazer um esforço de reabilitação de cacueiros.

Memória da escravatura
Mas para historiadores como Isaura Carvalho há uma questão mais complexa associada ao cacau: a memória da escravatura. Muitos dos trabalhadores agrícolas até aos anos 1960 estavam em regime de trabalho forçado e isso é um peso que "ainda paira" no ar. "O que as roças transmitem é a degradação de um património em que a maior falha foi não conseguir inverter a nosso favor toda uma História ligada a estas estruturas. Continuamos a manter quase que a relação de uma ideia colonial com os espaços".

Hoje o cacau não deveria, porém, ser perdido de vista na economia de São Tomé e Príncipe, mas devia-se apostar nas cooperativas e nos mercados externos para escoar o produto, defende Nazaré Ceita. "De facto é preciso que o governo faça apostas, por exemplo no cacau de qualidade, evitando-se a super-produção, e investindo na criação de estruturas fabris que transformasse o cacau em chocolate. Falta trabalho de casa", resume a historiadora, especialista no período colonial.

Caminhos? Apostar na diversificação agrícola, produzir culturas alimentares, e "produzir coisas e produtos que facilitassem a nossa integração na região", propõe Filinto da Costa Alegre. "São Tomé está colocado no Golfo da Guiné mas a sua balança comercial não tem trocas mínimas com a região porque o seu sector produtivo está virado para satisfazer outras. Qualquer programa de desenvolvimento teria que olhar para a questão da agricultura, das pescas — temos um mar com algum peixe mas não temos o equipamento necessário para capturar, conservar, transformar o peixe. O que São Tomé faz é vender licenças de pesca para os que têm frotas. Os co-culpados somos nós: em 40 anos não sabemos definir o que queremos ser. As relações internacionais são absolutamente desiguais e injustas e da nossa parte não tem havido a ponderação necessária para definir o caminho e tentarmos segui-lo."

Teotónio Torres, economista, um dos dirigentes da Associação dos Economistas de São Tomé e Príncipe, e um homem que tem denunciado alegados casos de corrupção na gestão do dossier do petróleo, discorda que se deva apostar no cacau porque exige um tipo de trabalho violento. E a população de 180 mil são-tomenses é escassa, "deve ser aproveitada no que der mais rendimento". Não o vê como um produto que possa melhorar a vida dos são-tomenses, ao contrário da pesca, do turismo, do petróleo. No fundo acha que os esforços deveriam ir para outros sectores que beneficiariam mais o povo.

Embora a produção de cacau continue a ser uma das alternativas económicas, não está a ter a produção desejável, nota Isaura Carvalho. Não há mão-de-obra, técnicos formados para fazer o acompanhamento, falta a maquinaria de suporte, a tecnologia. "Há todo um conjunto de factores que emperram este processo e fazem com que não seja viável. Supondo que queríamos que a nossa economia vivesse do cacau: tínhamos que olhar para ele como um produto especial."

"Economia artificial"
A viver há 20 anos em São Tomé, o italiano Claudio Corallo foi dos exemplos mais referidos nestas entrevistas: acrescentou valor ao cacau produzido na ilha, transformando-o em chocolate e apostando na qualidade. Fazê-lo não é uma receita para o destino do cacau do país, comenta-nos. "Claro que numa terra pequena assim é melhor ir para a qualidade do que para a quantidade. Mas aqui há uma economia totalmente artificial" — fruto dos projectos de cooperação que duram um curto período de tempo e não criam autonomia.

"Aqui temos o problema da falta do Estado, não há lei, a lei não é respeitada", queixa-se ele que já teve várias pessoas a construírem casas nos seus terrenos. "A última casa começou a ser construída há dias e já decidimos que não merece queixas: perco dinheiro em advogados, tempo... é gente que recebeu terrenos para construir casa mas prefere ficar na nossa roça porque está limpa e etc.".

Num país tão pequeno, um projecto altera profundamente a economia, alerta. O mercado é extremamente difícil, até porque globalmente as chocolaterias de médio tamanho estão a desaparecer: "Ou é Nestlé, ou é super-qualidade; a confeitaria é outro trabalho. Verdadeiramente: é muito difícil."

É preciso mudar de paradigma, defende, por seu lado, João Carlos Silva, fundador da Bienal de São Tomé, do centro de artes Cacau e da Roça de São João dos Angolares, também autor do programa de televisão Na Roça com os Tachos. "O cacau condicionou a nossa vida, não vamos deixar que ele morra. Mas temos que olhar de outra forma, temos que ver que o próprio modo como era produzido está associado a um determinado tipo de sistema que não se compadece com a democracia. São Tomé nunca foi pensado como país que pode ter viabilidade económica mas como país que pode continuar de mãos estendidas. Quarenta anos depois temos que voltar a olhar para as roças como pequenos pólos de desenvolvimento local e de uma forma integrada" — algumas dessas roças, sugere, poderiam avançar para futuras vilas e cidades do país. "Temos que olhar para os próximos anos, pensar no que fazemos com as vulnerabilidades e com o património imenso que temos, olhando para o meio rural que é fundamental para a sobrevivência deste país."

De volta à roça de Agostinho Neto, o senhor "Zé" defende que se devia apostar e produzir mais cacau. Porque é que isso não acontece? "Tinha que ter gente para tomar conta disto. E não tem. A mata toda está abandonada".

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