Papa divulga encíclica histórica sobre ambiente e alterações climáticas

Francisco diz que "o clima é um bem comum" e que a humanidade tem de mudar o seu estilo de vida.

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Não é a primeira vez que um Papa se debruça sobre os temas ambientais. E a própria encíclica recorda passagens de textos desde 1971, de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI.

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Não é a primeira vez que um Papa se debruça sobre os temas ambientais. E a própria encíclica recorda passagens de textos desde 1971, de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI.

Mas uma encíclica inteiramente dedicada ao ambiente é uma novidade. E, mais do que isso, Francisco põe-se claramente ao lado dos cientistas na questão das alterações climáticas. “Existe um consenso científico muito consistente que indica que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático”, escreve. O clima, diz a encíclica, “é um bem comum, de todos e para todos”.

O Papa aponta o dedo aos combustíveis fósseis e afirma: “A humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudar o seu estilo de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o provocam ou agravam”.

“As alterações climáticas são um problema global, com graves implicações ambientais, sociais, económicas, distributivas e políticas, e constituem o principal desafio da humanidade”, acrescenta a encíclica, na mesma linha do que cientistas e políticos têm vindo a dizer nas últimas duas décadas.

Para a elaboração da encíclica, o Papa cercou-se tanto de pensadores religiosos como de cientistas. Um dos académicos que esteve profundamente envolvido no processo foi Hans Schellnhuber, presidente do Instituto Potsdam de Investigação sobre os Impactos Climáticos, na Alemanha. Schellnhuber é um dos principais investigadores nesta área e considerado como o pai da ideia de que se deve evitar um aumento da temperatura média global acima de 2oC até ao final deste século.

Na apresentação da encíclica, numa conferência de imprensa no Vaticano, Schellnhuber saudou a iniciativa do Papa. “[A encíclica] junta a fé e a moral à razão e ao engenho”, disse.

Um relatório "melhor e mais claro"
O texto do Papa descreve detalhadamente as causas e consequências do aquecimento global. “É como se fosse um relatório do IPCC [Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas], mas melhor e mais claro”, interpreta Francisco Ferreira, da associação ambientalista Quercus.

Com a encíclica, a Igreja Católica posiciona-se claramente em relação a várias opções políticas e económicas relacionadas com as alterações climáticas. O texto defende a substituição dos combustíveis fósseis pelas energias renováveis. E critica os sistemas de comércio de emissões de carbono, que “podem conduzir a novas formas de especulação” e “não permitem as mudanças radicais que a circunstância presente exige”.

O texto do Papa surge num momento crítico das negociações internacionais para um novo tratado climático, que deverá ser adoptado em Dezembro, numa conferência das Nações Unidas (ONU) em Paris. Já este mês, o tema será discutido num encontro de alto nível promovido pela ONU em Nova Iorque. E em Setembro, deverão ser aprovados também pela mesma organização os objectivos do desenvolvimento sustentável. “O momento para a divulgação desta encíclica não poderia ser melhor”, afirma Francisco Ferreira.

O clima não é senão um dos tópicos abordados pela encíclica. O texto toca em tudo o que diga respeito à crise ambiental – ou seja, à forma como a humanidade está a desestabilizar o planeta. Francisco cita os efeitos da poluição atmosférica, que “provocam milhões de mortes prematuras”, e fala do problema dos resíduos. “A Terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo”, afirma.

Também lá está o risco de extinção de espécies, com o alerta de que animais e vegetais não são apenas “recursos exploráveis” mas também têm “um valor em si”. O papa também reflecte sobre os problemas de acesso à água, criticando a tendência de privatização deste recurso, “tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado”. 

Os desafios e oportunidades da tecnologia também estão presentes. O texto menciona os riscos do acelerado mundo digital, dizendo que “os grandes sábios do passado correriam o risco de ver sufocada a sua sabedoria no meio do ruído dispersivo da informação”. E aborda também, de uma forma cautelosa, o debate sobre os transgénicos. “Às vezes não se coloca sobre a mesa a informação completa, mas é seleccionada de acordo com os próprios interesses, sejam eles políticos, económicos ou ideológicos”, escreve Francisco. 

Por toda a encíclica, há eixos comuns a ligar os diversos temas. E o principal deles é o da relação entre a pobreza e a fragilidade do planeta. Também a desigualdade entre países ricos e pobres é várias vezes mencionada. “Há uma verdadeira dívida ecológica, particularmente entre o Norte e o Sul”, diz o Papa Francisco.

A encíclica poderá chegar aos 1,2 mil milhões de católicos do mundo, mas a intenção de Francisco é maior. “Pretendo especialmente entrar em diá­logo com todos acerca da nossa casa comum”, afirma.

"É realmente inovador"

As reacções à iniciativa do Papa começaram a ouvir-se na segunda-feira, quando um rascunho da encíclica foi divulgado pela imprensa italiana. A iniciativa foi saudada por líderes religiosos, ambientalistas, investigadores e dirigentes de organizações internacionais. O presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, disse esta quinta-feira que a encíclica é “um claro alerta sobre a ligação entre alterações climáticas e pobreza”.

“A liderança moral do Papa sobre as alterações climáticas é particularmente importante devido ao falhanço de muitos chefes de Estado e de governo em mostrar liderança política”, acrescentou o economista britânico Nicholas Stern, autor de trabalhos pioneiros sobre o impacto do aquecimento global na economia.

“É realmente inovador”, opina Filipe Duarte Santos, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e coordenador de vários estudos sobre alterações climáticas em Portugal. “A importância da encíclica pode ser avaliada por estar já a incomodar alguns sectores económicos e financeiros ligados aos combustíveis fósseis”, completa o investigador.

Nos Estados Unidos, a iniciativa de Francisco é uma pedra no sapato para os republicanos católicos que estão na corrida à sucessão de Barack Obama. Alguns reagiram antes da divulgação da encíclica, quando uma versão preliminar já estava em circulação. “Espero não ser castigado pelo padre da minha cidade, mas a minha política económica não vem de bispos, cardeias ou do Papa”, disse Jeb Bush, ex-governador da Florida, que concorre à Presidência dos EUA.

“A Igreja já se enganou algumas vezes no passado, e é melhor deixarmos a ciência com os cientistas e centrarmo-nos naquilo em que somos bons, ou seja, em teologia e moral”, afirmou o ex-senador republicano Rick Santorum, também candidato.

Republicanos e democratas vão ouvir Francisco de viva voz em Setembro, quando o Papa visitará os Estados Unidos e falará perante o Congresso norte-americano e também na Assembleia Geral das Nações Unidas.