Especialistas que sabem de tudo quase nada

“Formar” profissionais de saúde sem competência prévia em intervenção psicológica para serem “especialistas em depressão” é grave

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Unsplash|Pixabay

Foi divulgado recentemente, por vários meios de comunicação social, a implementação de uma nova abordagem para o tratamento da depressão, recorrendo a psicoterapia através de "smartphone" e formando para o efeito aquilo a que o coordenador deste projecto considera serem “peritos em depressão”.

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Foi divulgado recentemente, por vários meios de comunicação social, a implementação de uma nova abordagem para o tratamento da depressão, recorrendo a psicoterapia através de "smartphone" e formando para o efeito aquilo a que o coordenador deste projecto considera serem “peritos em depressão”.

Este “tratamento”, e porque a palavra só faz sentido entre aspas, é inenarrável e inconcebível; é também um desprestígio para o nosso Serviço Nacional de Saúde. O “tratamento” postula resolver a depressão em oito semanas valendo-se do recurso ao "smartphone" e conta com a actuação de “peritos” que poderão ser médicos de família ou enfermeiros ou assistentes sociais ou psicólogos. Fazem todos o mesmo? Este “tratamento” é denominado pelo coordenador do projecto como Psicoterapia. Psico-quê?

Um dos dados mais robustos e comprovados cientificamente demonstra que a eficácia da Psicoterapia, nas vastíssimas abordagens e técnicas que a compõem, assenta na construção de uma relação de proximidade, entre o psicólogo e o cliente/paciente, baseada na aceitação incondicional, na compreensão empática, na genuinidade.

Se partir um comprimido anti-depressivo em cinco partes, tomar apenas 1/5 e juntar leite, umas frutas e uns vegetais, será que dá um bom batido anti-depressivo? E se decompuser a Psicoterapia em cinco partes, escolher uma parte, juntar um "smartphone" e uns profissionais sem preparação, será que funciona? Talvez não faça sentido. Em primeiro lugar, porque não há evidência científica a sustentar tal aplicação e, em segundo lugar, porque teria que ser sistematicamente testado, validado e comprovado antes da sua implementação.

Só faz Psicoterapia quem é Psicoterapeuta, ou seja, quem tem formação em Psicologia e especialização em Psicoterapia. Completei a minha formação em Psicologia, o que com estágio profissional perfaz um total de seis anos, e estou a especializar-me em Psicoterapia, sendo necessárias 400 horas de formação teórica em modelos de intervenção psicoterapêutica, 100 horas de desenvolvimento pessoal, 500 horas de prática clínica supervisionada, e 150 horas de seminários de supervisão. São só uns anitos de formação. Mas pelos vistos são apenas precisas oito horas de formação com mais quatro horas "via e-learning". Porreiro pá!

A adjectivação para qualificar esta medida representa, para mim, um complexo mas indeclinável desafio. É um dever ético como psicólogo.

“Formar” profissionais de saúde sem competência prévia em intervenção psicológica, para serem “especialistas em depressão”, é grave. Não prescrevo fármacos porque essa é competência dos médicos, da mesma forma que não substituo assistentes sociais por não ter formação para tal, e não dou uma perninha em procedimentos de enfermagem porque não fui treinado para o efeito. Os psicólogos fazem intervenção psicológica e em casos mais complexos intervenção psicoterapêutica. Como tal, a psicoterapia é competência dos psicólogos com formação especializada. É preciso actuar numa lógica interdisciplinar. Cada profissional com as suas competências, e nada desta salgalhada em que todos fazem um bocadinho de tudo, em que se tornam especialistas que sabem de tudo quase nada.