O homem que não precisou de sair da cama para saber que Blatter saía da FIFA

A maior história jornalística do ano tinha acabado de rebentar, mas Andrew Jennings, o jornalista responsável por ela, estava a dormir.

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“O meu telefone começou a tocar às seis da manhã”, disse, na terça-feira, Jennings a partir da sua quinta situada a norte de Londres. “Desliguei-o para conseguir dormir mais um pouco porque o que quer que estivesse a acontecer às seis da manhã continuaria a acontecer à hora de almoço, não será?”

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“O meu telefone começou a tocar às seis da manhã”, disse, na terça-feira, Jennings a partir da sua quinta situada a norte de Londres. “Desliguei-o para conseguir dormir mais um pouco porque o que quer que estivesse a acontecer às seis da manhã continuaria a acontecer à hora de almoço, não será?”

Se ainda não percebeu, Jennings é um defensor de um jornalismo sem pressas e metódico. Durante meio século, o repórter de investigação de 71 anos tem mergulhado em histórias complexas de crime organizado. Na década de 1980, escreveu sobre polícias maus, as tríades tailandesas que negociavam heroína e a máfia italiana. Nos anos 90, desviou o olhar para o desporto, expondo a corrupção existente no Comité Olímpico Internacional (COI).

Nos últimos 15 anos, Jennings centrou-se na Federação Internacional de Associações de Futebol (FIFA), a entidade que gere o futebol a nível mundial. Enquanto outros jornalistas assistiam aos jogos – relatando resultados ou escrevendo perfis de jogadores – Jennings escavava à procura dos negócios sujos daquele que é o mais popular jogo do mundo.

Agora, depois de décadas de ameaças e telefones sob escuta e rendimentos intermitentes, Jennings vê como cada revelação em torno do escândalo da FIFA lhe dá razão. Durante uma entrevista telefónica com o The Washington Post na terça-feira de manhã, chamou ao presidente da FIFA, Sepp Blatter, “um morto-vivo”. Duas horas depois, Blatter anunciou que abandonava o cargo, apenas dois dias depois de ter sido reeleito.

“Sei que eles são escumalha e sei disso há anos”, disse. “E não estou a dizer isto por dizer. Isto não é um insulto. Não estou a atirar palavras para o ar.”

“Esta escumalha andou a roubar o desporto das pessoas. Eles roubaram-no, cambada de ladrões cínicos”, acrescentou. “Por isso, sim, é bom ver o medo nos seus rostos.”

A melhor forma de imaginar como é Andrew Jennings é unir as figuras de Bob Woodward e Carl Bernstein e depois acrescentar um pouco de sotaque escocês. Jennings nasceu na Escócia mas foi viver para Londres em criança. O seu avô desempenhou um papel de relevo numa equipa de futebol londrina, os Clapton Orient (agora chamada de Leyton Orient), mas Jennings não revelou grande interesse pela modalidade. Mas mostrou, no entanto, ter faro para o jornalismo.

Após finalizar a sua formação académica, Jennings foi trabalhar no Sunday Times em Londres, onde tomou o gosto pelo jornalismo de investigação. Passou então a trabalhar para a BBC, mas quando a estação não transmitiu o seu trabalho sobre corrupção na Scotland Yard ele despediu-se e passou a trabalhar na concorrência, num programa cujo nome era World In Action [O mundo em acção]. A sua investigação ao universo policial rendeu-lhe o seu primeiro livro: “Scotland Yard’s Cocaine Connection,” e um documentário.

“Sou um caçador de documentos. Se eu tiver os teus documentos, sei tudo acerca de ti”, diz. “Este tipo de jornalismo é fácil, sabes. Apenas tens que encontrar algumas pessoas, corruptos repugnantes e vergonhosos e trabalhar neles. Tens que o fazer. O resto da comunicação social tornou-se excessivamente acomodada. Isso está errado. Aprendeste com a tua mãe o que é errado. Tu sabes o que está errado. O nosso trabalho é investigar, obter provas.”

Este é, no essencial, o mantra de Jennings: sem pressa, escavar no sujo e não confiar naqueles que ocupam os lugares de poder. Ele aplicou a mesma lógica para as redes de contrabando de drogas internacionais e mafiosos italianos.

Seguiu-se o desporto. Depois do trabalho sobre a Scotland Yard, um colega no World In Action, chamado Paul Greengrass, sugeriu-lhe que investigasse o COI.

“Disse-lhe, ‘O que é isso?’”, recorda Jennings. Rapidamente, contudo, mergulhou na actividade desenvolvida pelo COI. “Quando olhei para o COI, descobri que o presidente, Juan Antonio Samaranch, universalmente adolado pela imprensa desportiva, era um fascista apoiante de Franco (Samaranch reconheceu ter sido ministro do Desporto do ditador espanhol Francisco Franco, mas alegou que não tinha convicções fascistas).

Jennings escreveu uma triologia sobre uma série de alegados elefantes brancos, subornos e controvérsias relacionadas com drogas que culminaram num escândalo em torno dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2002, em Salt Lake City, na sequência do qual dezenas de membros do COI foram expulsos ou punidos por má conduta. Segundo Jennings, a maior parte dos jornalistas desportivos não toca nestes temas com medo de perderem o acesso a dirigentes e atletas de topo ou, simplesmente, porque obrigam a perder demasiado tempo ou exigem demasiado esforço. Quando Samaranch deixou o cargo em 2001, Jennings decidiu mudar o seu foco. “Nessa altura, tinha consciência de que havia algo muito, muito podre na FIFA”, disse.

Com base em anteriores investigações e por ter estudado a forma como funciona o crime organizado, Jennings sabia que precisava de fontes que lhe permitissem quebrar a redoma de secretismo que envolvia a FIFA. “Sabemos que em todo o lado, em qualquer organização, se existe algum sinal de que as figuras de topo são corruptas, há pessoas decentes a desempenhar funções intermédias, que pagam empréstimos bancários para terem casa, que têm que levar os filhos à escola”, afirmou Jennings. “São apenas funcionários e possuem um sentido do que deve ser a moralidade. Então temos que os levar a passar-nos informação pela porta das traseiras, informação que antes estava nos arquivos e que agora está nos servidores”, acrescentou.

Assim, o escocês decidiu lançar uma emboscada a uma das primeiras conferências de imprensa de Sepp Blatter depois da sua reeleição em 2002. “Fui a uma das conferências de imprensa na sede da FIFA, em Zurique”, conta. “Junto às paredes, de cada um dos lados da sala, estavam os empregados, todos com blazers da FIFA, rostos como o de robots, sem direito a falarem, apenas alinhados ao longo das paredes. Então disse para mim: ‘Muito bem, estes são aqueles que me interessam. Tenho que lhes passar a mensagem de que estou aqui’”.

Se o início da queda de Blatter pudesse ser confinada num só um momento, ele seria, provavelmente, o que se segue. Quando o presidente da FIFA terminou o seu discurso, Jennings agarrou no microfone e lançou propositadamente uma pergunta provocadora. “Estou rodeado de jornalistas aprumados, de gravatas de seda”, recorda. “E ali estou eu, vestido de modo desportivo. Seguro no microfone e digo: ‘Senhor Blatter, já recebeu algum suborno?’”

“Isto é que foi dar cabo de uma festa”, relembra Jennings. “Os jornalistas começaram a afastar-se de mim como se cheirasse mal. Bem, não era isso que queria? Obrigado jornalistas idiotas. Todos aqueles funcionários encostados às paredes têm os seus radares centrados em mim, agora, e a dizer-lhes ‘Aqui estou eu. Sou eu quem procuras. Estas figuronas não me impressionam. Sei quem eles são. Fiz o que fiz com o COI e vou fazer o mesmo a eles’”.

O resultado foi duplamente positivo. Blatter negou ter alguma vez recebido algum suborno, o que deu a Jennings um bom título. Mas houve mais. “Seis semanas depois, cerca da meia-noite, estou junto a um impressionante edifício do século XIX em Zurique questionando-me por que motivo alguém que não conhecia me mandou lá ir ter quando uma porta se abre e sou levado para dentro”, recorda Jennings. “Conduzem-me até um elegante conjunto de salas de reuniões e cerca de meia-hora depois um alto funcionário da FIFA chega com uma mão cheia de documentos. E fugiu dali”.

Aqueles documentos sublinhavam a incrível opulência do comité executivo da FIFA, entre os quais a de Sepp Blatter. Jennings noticiou que Blatter pagava secretamente a si mesmo um bónus monetário com cinco zeros. “No caso do senhor Blatter, ele não sabia o que era um voo regular. Não viaja dessa forma há 40 anos. Ele apanha um avião privado.” “Ele tinha que sentir constantemente como era poderoso. Por isso, o que o alimentava era o grande Mercedes que o levava para o avião privado na pista do aeroporto de Zurique.

Blatter ameaçou processar Jennings por difamação, mas não o fez. Jennings continuou a investigar o presidente e os seus colaboradores mais próximos na FIFA. Há algum tempo que suspeitou de que o seu telefone estaria sob escuta e o seu computador a ser pirateado. Em 2006, publicou o seu primeiro livro sobre a organização: “Foul! The Secret World of Fifa: Bribes, Vote Rigging and Ticket Scandals,” no qual acusava Blatter e outros executivos de topo de receberem subornos. Estes responsáveis não se limitaram a negar as acusações. Por vezes, atacaram Jennings fisicamente. “Jack Warner deu-me um murro, cuspiu-me” à frente das cameras. “Estes rapazes saíam do estacionamento e, de repente, ali estava eu: feio, velho, grisalho, dizendo ‘Desculpe. Recebeu algum suborno através desta ou daquela empresa?’ E eles ficavam todos tensos”.

 “Foul!” garantiu a Jennings admiradores, incluindo dentro do sector judicial. Em 2009, ele recebeu um telefonema de alguém que lhe queria apresentar algumas pessoas.

“Fui até Londres até um anónimo edifício de escritórios onde estavam três indivíduos com sotaque americano”, conta Jennings. “Apresentaram-se como agentes especiais do FBI e deram-me os seus cartões de visita nos quais estava escrito: “Brigada de combate ao crime organizado”.

Jennings lembra-se de ter pensado. “As forças policiais europeias não farão nada [em relação à FIFA] por isso era muito bom ver investigadores profissionais envolvidos no caso.” Jennings estava desejoso de poder ajudar e depois de fazer um par de telefonemas para algumas fontes que tinha na América, enviou relatórios financeiros confidenciais da Confederação da América do Norte, Central e Caraíbas (CONCACAF)  para o FBI. Eles demonstravam misteriosas e multimilionárias comissões, segundo Jennings. “Dei-lhes os documentos que puseram tudo isto a andar”, disse.

“Não é maravilhoso?”, interroga-se agora Jennings. “Estás num dos hotéis mais luxuosos do mundo, com todas as despesas pagas, [a beber champanhe] numa noite de terça-feira. Enquanto ainda dormes, às seis da manhã de quarta-feira, batem à porta. E um agente da polícia pergunta: ‘O senhor pode vestir-se?’”

“Eles não voltarão a ficar em hotéis de luxo”, disse. “Vão ser detidos na Suíça. Vão perder os processos de extradição, porque tenho a certeza que o Departamento de Justiça dos EUA vai apresentar bons argumentos. Os suíços vão ter de deixá-los ir [para os EUA]... Acho que vão descobrir quão interessante pode ser [a prisão de] Rikers Island.”

Jennings não se esforça para disfarçar a felicidade pelo facto de ver finalmente presos os homens que andou a investigar durante 15 anos. “Foi uma semana muito feliz”, admitiu. “É bom saber que Herr Blatter não conseguirá dormir esta noite. É bem feito. Ele não é boa pessoa.”

Após anos a ser barrado nas conferências de imprensa da FIFA, Jennings disse que está expectante para ver os dirigentes acusados nos tribunais americanos. “Só espero conseguir pagar o bilhete para Nova Iorque e que alguém me deixe dormir no sofá, para poder estar no tribunal e dizer ‘Olá amigos! Foi uma grande caminhada, não foi?”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post