O cemitério líquido

Nada mais fácil que culpar os mais fracos. Nada mais indigno que tentar lançar o dissentimento entre os mais pobres.

Hoje, tragicamente, o mar da navegabilidade, da mobilidade e do intercâmbio tornou-se o mar da mortandade. Um cemitério líquido. Quase não há dia em que seres humanos não encontrem a morte nas suas águas, após dias de agonia, suportados nas mais inumanas condições, explorados por organizações criminosas que não têm escrúpulos em lucrar com o desespero mais extremo. Calcula-se que o número de mortos já exceda os cinco milhares e todos temos ainda bem presente na memória as imagens dolorosas de há um mês atrás. Uma universidade holandesa acaba de publicar um estudo que indica que 65% desses mortos permanecerão para sempre por identificar. Mortos anónimos, desprovidos de família, de rasto existencial, de passado. Para eles a morte é condenação a um silêncio desumano, a negação absoluta da dignidade. Morrem como se nunca tivessem existido. Contudo, existiram, e é dessa existência que fogem. Fogem da fome, da guerra, das perseguições políticas e religiosas. Cada um deles, por mais anónimo que esteja destinado a ser, foge de uma condição concreta aviltante. A partir da experiência do desespero vislumbram, no longínquo destino europeu, uma espécie de terra prometida. Demandam-na em busca da simples sobrevivência. Provavelmente nunca ouviram falar da Europa dos filósofos, dos artistas, dos cientistas, da Europa do humanismo, do racionalismo crítico, do iluminismo, da Europa grega, judaica, latina e cristã. É contudo nas margens dessa Europa que muitos deles vêm morrer. Mesmo que eles não saibam, é essa Europa que as suas mortes interpelam.

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Hoje, tragicamente, o mar da navegabilidade, da mobilidade e do intercâmbio tornou-se o mar da mortandade. Um cemitério líquido. Quase não há dia em que seres humanos não encontrem a morte nas suas águas, após dias de agonia, suportados nas mais inumanas condições, explorados por organizações criminosas que não têm escrúpulos em lucrar com o desespero mais extremo. Calcula-se que o número de mortos já exceda os cinco milhares e todos temos ainda bem presente na memória as imagens dolorosas de há um mês atrás. Uma universidade holandesa acaba de publicar um estudo que indica que 65% desses mortos permanecerão para sempre por identificar. Mortos anónimos, desprovidos de família, de rasto existencial, de passado. Para eles a morte é condenação a um silêncio desumano, a negação absoluta da dignidade. Morrem como se nunca tivessem existido. Contudo, existiram, e é dessa existência que fogem. Fogem da fome, da guerra, das perseguições políticas e religiosas. Cada um deles, por mais anónimo que esteja destinado a ser, foge de uma condição concreta aviltante. A partir da experiência do desespero vislumbram, no longínquo destino europeu, uma espécie de terra prometida. Demandam-na em busca da simples sobrevivência. Provavelmente nunca ouviram falar da Europa dos filósofos, dos artistas, dos cientistas, da Europa do humanismo, do racionalismo crítico, do iluminismo, da Europa grega, judaica, latina e cristã. É contudo nas margens dessa Europa que muitos deles vêm morrer. Mesmo que eles não saibam, é essa Europa que as suas mortes interpelam.

Não nos esqueçamos nunca que há também uma outra memória europeia. Sinistra, sombria, desumana. Memória de guerras religiosas e ideológicas, de cruzadas sectárias, de um ominoso colonialismo do qual foram vítimas os antepassados dos homens e das mulheres que agora nos procuram. Por isso mesmo há um passado de que também nós temos obrigação de fugir. Apesar de todas as dificuldades temos conseguido fazê-lo. Nenhuma civilização terá levado tão longe o sentido autocrítico quanto a Ocidental. Nisso reside uma das suas grandezas. Grandeza permanentemente posta à prova.

A União Europeia só tem sentido se for a tradução política de um grande projecto de uma ordem civilizacional assente no primado dos direitos do homem, da liberdade, da democracia e da solidariedade. É isso que está em causa na forma como abordamos esta questão. Está em causa a identidade mais profunda do projecto europeu. Compreendendo isso mesmo, Jean-Claude Juncker, num dos seus discursos inaugurais como presidente da Comissão Europeia, estabeleceu o objectivo de concretizar uma nova política de migração como uma das dez prioridades da acção a prosseguir. Federica Mogherini, a Alta-Representante da UE para os Assuntos Externos e a Política de Segurança, e Dimitris Avramopoulos, comissário Europeu para a Migração e os Assuntos Internos, pronunciaram também palavras de idêntica orientação. Felizmente têm agido em consonância com tais propósitos. Na semana passada a Comissão Europeia apresentou um programa sério e consistente visando uma gestão comum do problema dos fluxos migratórios que desaguam nas fronteiras externas da Europa. O programa, designado Agenda Europeia para a Migração, está alicerçado em vários pilares: no controlo de fronteiras e acolhimento de imigrantes, na repartição equitativa e criteriosa de demandantes de asilo pelos vários Estados-Membros, na luta contra as máfias implicadas no tráfico dos migrantes em condições abjectas e na promoção de uma nova política de migração legal.

É de registar que a Comissão optou por dar este passo depois de constatar e contestar a exiguidade da resposta anteriormente formulada pelo Conselho Europeu, revelando audácia ao activar um mecanismo de emergência previsto nos tratados europeus que torna compulsiva a aceitação por parte dos Estados-Membros de migrantes em caso de um afluxo repentino e maciço fruto de circunstâncias calamitosas. Infelizmente, vários governantes de diversos países membros aprestaram-se a fazer declarações incompatíveis com as suas responsabilidades históricas, dando assim provas de temor reverencial perante a ameaça populista e xenófoba que os transforma em inesperados adeptos desse mesmo populismo que tanto os amedronta. Não está em causa o direito de discutir em concreto as orientações emanadas da Comissão mas sim a forma precipitada e até mesmo mesquinha como alguns deles reagiram. De políticos sérios espera-se que não se rendam com facilidade ao discurso do medo. Bem sabemos que não falta quem queira tirar proveitos políticos da situação frágil de muitos europeus desempregados, propagando essa velha e odiosa receita: os culpados são os imigrantes, os estrangeiros, o outro. Nada mais fácil que culpar os mais fracos. Nada mais indigno que tentar lançar o dissentimento entre os mais pobres. Que governantes europeus não tenham a força de carácter suficiente para enfrentarem esta conspiração de medos e preconceitos diz muito acerca da natureza e dos males das democracias contemporâneas. Felizmente ainda há quem ouse seguir pelo caminho da coragem, por mais impopular que este momentaneamente se possa revelar e ainda que contemple apenas o acolhimento de 20.000 seres humanos, uma pequena fracção dos 620.000 que só em 2014 submeteram pedidos de asilo. Neste caso, a Comissão Europeia seguiu pelo bom caminho e isso merece ser saudado.