Manifesto para uma mudança de visão no estudo dos grandes símios

Catorze nomes sonantes da primatologia, antropologia e evolução humana lançam uma proposta: os grandes símios afectados pelos humanos são oportunidade única para uma série de investigações.

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“Muitos dos chamados organismos ‘selvagens’ estão expostos a uma variedade de actividades humanas modernas, como a agricultura, a caça, a extracção mineira e outras indústrias extractivas, e são afectados por estradas e povoamentos”, alerta o artigo, que tem como primeira autora Kimberley Hockings, da Universidade Oxford Brookes, no Reino Unido, e da Universidade Nova de Lisboa. “Em 2030, prevê-se que menos de 10% do actual habitat dos grandes símios africanos e apenas 1% do habitat dos grandes símios asiáticos permaneça relativamente inalterado pelo desenvolvimento de infra-estruturas humanas.”

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“Muitos dos chamados organismos ‘selvagens’ estão expostos a uma variedade de actividades humanas modernas, como a agricultura, a caça, a extracção mineira e outras indústrias extractivas, e são afectados por estradas e povoamentos”, alerta o artigo, que tem como primeira autora Kimberley Hockings, da Universidade Oxford Brookes, no Reino Unido, e da Universidade Nova de Lisboa. “Em 2030, prevê-se que menos de 10% do actual habitat dos grandes símios africanos e apenas 1% do habitat dos grandes símios asiáticos permaneça relativamente inalterado pelo desenvolvimento de infra-estruturas humanas.”

Um dos exemplos mencionados no artigo é o dos chimpanzés que vivem perto da aldeia de Bossou, na Guiné-Conacri. É como um pau de dois bicos: por um lado, esse contacto coloca-os em risco, por outro obriga-os a adaptarem-se e é isso que os investigadores podem observar em primeira mão. Aliás, em Bossou existe desde 1976 uma estação para os estudar criada pelo Instituto de Investigação de Primatas da Universidade de Quioto, no Japão.

“Os chimpanzés de Bossou vivem numa situação extrema de convívio com os seres humanos: têm de atravessar estradas, aprenderam a libertar-se de armadilhas de caçadores, comem as plantações dos humanos...”, descreve-nos a primatóloga e arqueóloga Susana Carvalho, da Universidade de George Washington (EUA) e da Universidade do Algarve, e que está entre os 14 autores do artigo intitulado Símios no Antropoceno: flexibilidade e sobrevivência. Entre os seus autores encontram-se ainda nomes como o de Tetsuro Matsuzawa (director do Instituto de Investigação de Primatas da Universidade de Quioto), William McGrew (da Universidade de Cambridge, no Reino), Robin Dunbar (da Universidade de Oxford, no Reino Unido) ou Richard Wrangham (da Universidade de Harvard, nos EUA).

“O artigo é um manifesto sobre a necessidade de mudarmos de visão sobre os estudos dos primatas em habitat natural: a ideia cor-de-rosa que acompanhava os estudos pioneiros de Jane Goodall nas florestas pristinas de África tem de ser corrigida, sob pena de perdermos toda a informação associada às adaptações que os grandes símios demonstram ter quando confrontados com habitats em permanente e violenta mutação”, diz Susana Carvalho.

“Hoje, com uma ou duas excepções, esses locais sem interferências exteriores não existem. Estão todos influenciados, de alguma forma, pela presença humana e pelos muitos problemas de caça e das mudanças climáticas, entre outros”, alerta a cientista. “Há que estudar estas populações que vivem próximo dos humanos e aproveitar essa oportunidade para saber mais sobre os [seus] limites adaptativos e o grau de plasticidade cognitiva perante os novos desafios que surgem todos os dias. E retirar informação vital sobre o que pode ter acontecido ao longo da história evolutiva humana, quando condições semelhantes e mudanças de clima e de habitats resultaram em extinções e na emergência de novas espécies de hominíneos [todos os nossos antepassados depois da separação do ramo dos chimpanzés, há cerca de oito milhões de anos] e, finalmente, em nós, que representamos o extremo da adaptabilidade dos primatas. Estes grupos de primatas são tão interessantes, ou mais, do que os que tínhamos antes para estudar”, resume Susana Carvalho, acrescentando que a presença de investigadores nesses locais ajuda à conservação destes grupos já muito ameaçados de extinção.