Oliveira, um caso português

Após o consenso das homenagens, vamos continuar a decifrar — e a experimentar — Manoel de Oliveira

Decidimos nesse dia que uma fotografia da cerimónia deveria ser a imagem principal da capa do jornal. O realizador estava frágil e a recuperar de uma crise cardíaca. Iria ter energia e força para continuar a filmar e a ser notícia?
Foi isso, claro, que Manoel de Oliveira continuou a fazer. Apenas duas semanas mais tarde estava de regresso à capa do Ípsilon e do PÚBLICO. A notícia era a estreia do seu filme O Gebo e a Sombra, no Festival de Veneza. E assim continuou mais três anos, a fintar as convenções, as previsões e o tempo. A curta-metragem O Velho do Restelo estreou, também em Veneza, em Setembro do ano passado. O neto disse ontem que ainda há quinze dias o avô saiu de casa e esteve a trabalhar num projecto. Oliveira morreu a fazer filmes. Era o seu desejo e conseguiu-o. Fez 70 filmes e, de certo modo, acabou como começou a sua vida de 83 anos no cinema: a confundir e a dividir a crítica, deixando os espectadores desconcertados. Reverenciado por alguma crítica internacional, desprezado por muito público português, Oliveira tornou-se um “caso” emblemático da incapacidade de nos revermos nas imagens e nos sons daquilo que é o “cinema português”.
Toda a gente sabe quem é Manoel de Oliveira. Com o orgulho de quem conhece e admira um ícone. Mas neste caso com a total incompreensão em relação à matéria de que ele é feito. Invenção internacional! A sua longevidade dobrou a crispação que em tempos — nos idos da década de 70, quando a teatralidade de Amor de Perdição escandalizou — esteve ao rubro. Mas dificilmente levou mais público a querer desafiar-se como espectador. Quando, no PÚBLICO de 13 de Outubro de 1996, Marcello Mastroianni, actor em Viagem ao Princípio do Mundo, dizia, dirigindo-se a nós, “Manoel de Oliveira é uma espécie de monumento. Talvez vocês, portugueses, não o saibam, mas este homem é conhecido a nível internacional. Ele faz um cinema muito especial e foi isso que me interessou”, o actor assinalava, como se nos apontasse o dedo, uma dificuldade que é nossa, que é uma espécie de Cabo Bojador ainda por dobrar. Temos de sentir esse dedo apontado: sim, sabemos que Oliveira é conhecido a nível internacional, e isso até já nos irritou; mas não, não sabemos, para além dos lugares-comuns construídos, o que é a experiência de um filme de Manoel de Oliveira. Não é o cinema dele que se recusa encontrar-nos, nós é que temos dificuldade em saber o que ali está. É uma figura totémica (Ingmar Bergman, no seu país, também é um caso de incompreensão ou de recusa) que corremos o risco de, depois do consenso de homenagens e declarações oficiais, continuar por decifrar. Por experimentar.

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Decidimos nesse dia que uma fotografia da cerimónia deveria ser a imagem principal da capa do jornal. O realizador estava frágil e a recuperar de uma crise cardíaca. Iria ter energia e força para continuar a filmar e a ser notícia?
Foi isso, claro, que Manoel de Oliveira continuou a fazer. Apenas duas semanas mais tarde estava de regresso à capa do Ípsilon e do PÚBLICO. A notícia era a estreia do seu filme O Gebo e a Sombra, no Festival de Veneza. E assim continuou mais três anos, a fintar as convenções, as previsões e o tempo. A curta-metragem O Velho do Restelo estreou, também em Veneza, em Setembro do ano passado. O neto disse ontem que ainda há quinze dias o avô saiu de casa e esteve a trabalhar num projecto. Oliveira morreu a fazer filmes. Era o seu desejo e conseguiu-o. Fez 70 filmes e, de certo modo, acabou como começou a sua vida de 83 anos no cinema: a confundir e a dividir a crítica, deixando os espectadores desconcertados. Reverenciado por alguma crítica internacional, desprezado por muito público português, Oliveira tornou-se um “caso” emblemático da incapacidade de nos revermos nas imagens e nos sons daquilo que é o “cinema português”.
Toda a gente sabe quem é Manoel de Oliveira. Com o orgulho de quem conhece e admira um ícone. Mas neste caso com a total incompreensão em relação à matéria de que ele é feito. Invenção internacional! A sua longevidade dobrou a crispação que em tempos — nos idos da década de 70, quando a teatralidade de Amor de Perdição escandalizou — esteve ao rubro. Mas dificilmente levou mais público a querer desafiar-se como espectador. Quando, no PÚBLICO de 13 de Outubro de 1996, Marcello Mastroianni, actor em Viagem ao Princípio do Mundo, dizia, dirigindo-se a nós, “Manoel de Oliveira é uma espécie de monumento. Talvez vocês, portugueses, não o saibam, mas este homem é conhecido a nível internacional. Ele faz um cinema muito especial e foi isso que me interessou”, o actor assinalava, como se nos apontasse o dedo, uma dificuldade que é nossa, que é uma espécie de Cabo Bojador ainda por dobrar. Temos de sentir esse dedo apontado: sim, sabemos que Oliveira é conhecido a nível internacional, e isso até já nos irritou; mas não, não sabemos, para além dos lugares-comuns construídos, o que é a experiência de um filme de Manoel de Oliveira. Não é o cinema dele que se recusa encontrar-nos, nós é que temos dificuldade em saber o que ali está. É uma figura totémica (Ingmar Bergman, no seu país, também é um caso de incompreensão ou de recusa) que corremos o risco de, depois do consenso de homenagens e declarações oficiais, continuar por decifrar. Por experimentar.