“Nem Deus consegue acabar com esta guerra”

Há duas décadas que a guerra fustiga o Leste do Congo. Milhões de pessoas perderam a vida. Dezenas de milícias tomaram regiões inteiras. A aldeia de Kivuye é o espelho do mundo instável dos congoleses

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No primeiro dia de mercado depois de a milícia ter recuado, com o sol do início da tarde a aparecer entre a neblina, centenas de aldeões juntam-se numa colina coberta de relva. Os vendedores negoceiam couve fresca, milho, batatas, sem medo de serem roubados. As mulheres compram vestidos cor-de-rosa e roupas laranja sem medo de serem violadas. As crianças dão pontapés em bolas de trapos sem medo de serem levadas à força para pegarem em armas. Quando começou a escurecer, ninguém foi a correr para casa.

Mas Bernard Kamanzi está nervoso. Como alto responsável do Governo aqui, sabe que estes momentos de liberdade desaparecem sempre muito depressa. E sabe uma coisa que os aldeões não sabem: os soldados congoleses que têm estado a lutar contra as milícias e a proteger a aldeia retiraram-se nessa manhã. “As milícias podem voltar a qualquer momento”, diz. “É o medo que temos.”

A aldeia no Leste do Congo está no epicentro de uma das guerras mais brutais e duradouras de África. É ao mesmo tempo uma base militar e um campo de refugiados, um campo da morte e um refúgio, um local feito de caos e resiliência. Os civis, apanhados numa violência sem tréguas, lutam pela vida. A morte chega de várias formas — armas, machetes, doenças e fome.

Estima-se que desde 1998 a guerra já tenha matado cinco milhões de pessoas, muitas à fome, por doença ou outras causas relacionadas com o conflito — mais vítimas do que as guerras do Vietname, Afeganistão e Iraque juntas, e mais do que qualquer outro conflito desde a II Guerra Mundial. É uma guerra que a maior e mais dispendiosa missão de paz da ONU não tem conseguido debelar. Os capacetes azuis, maioritariamente financiados por Washington, fazem agora o maior esforço dos últimos anos para acabar com os combates.

E mesmo assim a guerra continua a ser invisível para quase todo o exterior, que se tornou indiferente ao infindável ciclo de violência. Actualmente, as organizações humanitárias têm dificuldades em angariar fundos para ajudar o Congo, com as calamidades mais publicitadas da Síria, Sul do Sudão e outras a chamar mais a atenção mundial.

Aquilo por que Kivuye passou durante alguns meses deste ano permite perceber porque é que o conflito parece tão complexo e irresolúvel, e as soluções para a miséria do Congo tão indefinidas. Mesmo durante breves períodos de acalmia, quando a esperança começa a crescer, os congoleses ainda têm de lutar contra as forças que a guerra criou.

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Os habitantes da aldeia no primeiro dia de mercado depois de os soldados terem expulso os rebeldes

No dia em que o mercado reabriu em Kivuye, o dia mais libertador em vários anos, os habitantes sabiam que as milícias tinham recuado apenas até à floresta, à espera de uma oportunidade de regressar. Não sabiam que dentro de dias outro senhor da guerra, que uma vez tinha mandado na aldeia, voltaria. Não sabiam que, dentro de poucas semanas, os soldados do Exército congolês enviados para os proteger estariam a cometer violações em massa ali perto.

E não sabiam que os soldados da ONU, cuja base estava a menos de oito quilómetros, em breve partiriam. A sua presença, por muito fraca que fosse, era um sinal de que o mundo ainda se importava.

Agora, isso também desapareceria.

Espalhada por uma colina de cor de esmeralda, Kivuye é uma extensão de cabanas de adobe, casebres de madeira e lojas minúsculas ligadas por caminhos sinuosos. Não há electricidade, nem água canalizada, nem rede de telemóvel. O vale lá em baixo está coberto de campos, um conjunto de remendos com vários tons de verde.

A estrada esburacada que serpenteia até ao centro da aldeia já transportou exércitos de todos os tipos, de imunes capacetes azuis a soldados renegados e a combatentes que acreditam que as balas se desviam dos seus corpos. Raramente passam carros.

Se alguém conhece o arco da destruição de Kivuye é Azarias Mataboro. Aos 73 anos, o antigo chefe tribal da aldeia caminha com um pau e fala com uma voz enérgica. A sua memória é tão nítida como a água fresca da Primavera que se aproxima.

Recorda-se quando os colonizadores belgas tinham plantações de chá que empregavam os habitantes da aldeia. E apesar de os belgas exercerem um jugo brutal sobre o Congo, recorda-os como sendo mais benevolentes do que os três governantes que se seguiram: um ditador corrupto apoiado pelos Estados Unidos que mudou o nome do país para Zaire e gostava de chapéus com pele de leopardo e de champanhe francês; o seu sucessor igualmente corrupto, que usava fatos de estilo maoísta e tinha o seu retrato em todo o lado; e o seu filho, que agora preside ao Congo.

Com os colonizadores, foi a última vez que Kivuye teve uma estrada em condições, a última vez que a aldeia teve uma escola construída, ou uma fonte de rendimento fiável. “A vida era boa”, diz Mataboro.

Mataboro também se recorda das raízes da tragédia de Kivuye.

O genocídio do Ruanda, em 1994, quando extremistas hutus chacinaram 800 mil tutsis e os seus simpatizantes hutus, deu origem à destruição no Congo. Quando a violência estava a chegar ao fim no Ruanda, mais de um milhão de hutus, temendo represálias, passaram a fronteira para o Congo, desencadeando uma sucessão de conflitos. Aquela que foi chamada “I Guerra Mundial Africana” envolveu vários países. As vastas reservas de minerais do Congo — incluindo ouro, cobre e coltan, usado para fabricar telemóveis — eram pilhadas por todos os lados.

Vinte anos depois, o legado do genocídio ainda ecoa aqui da forma mais dramática, enquanto o Ruanda goza de paz e vai prosperando. Os grupos armados do Congo continuam envolvidos numa negra luta de poder, riqueza e identidade, e as tensões entre hutus e tutsis ainda estão fortemente visíveis.

“Continuamos a sentir o impacto do genocídio no Ruanda”, diz Faustin Mbara, um padre da cidade de Kitchanga, na estrada que vai para Kivuye, cuja paróquia católica inclui um monte de aldeias da região. “O espírito de vingança espalhou-se e continua hoje no Congo.”

Actualmente, as colinas que vão dar a Kivuye estão cheias de barracas de lona. Os refugiados não pararam de chegar desde 1996, quando milícias e grupos de rebeldes começaram a atormentar a região, e a aldeia passou de algumas centenas de habitantes para vários milhares.

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Jogo de futebol em Mpati, onde milhares de pessoas procuraram refúgio para fugir aos grupos armados da região

Nove grupos armados controlaram Kivuye com impunidade. Incluem membros da força extremista hutu que orquestraram o genocídio no Ruanda. Os milicianos arrasaram não só com as famílias mas com as tradições e laços que existiam desde que reis africanos governavam o continente. Agora, a aldeia é praticamente toda hutu. Os tutsis e outros grupos étnicos fugiram para zonas controladas pelas milícias das suas próprias comunidades ou para campos de refugiados.

“Na guerra, não há tipos bons ou tipos maus”, diz Joanna Trevor, directora do programa para o Congo da agência Oxfam. “Eles são todos destrutivos.”

Mataboro faz mentalmente as contas às suas perdas ao longo dos últimos 20 anos, empregando a aritmética repugnante usada por muitos aldeões:

Eles incendiaram a minha casa sete vezes.

Fugi quatro vezes da aldeia, de quatro milícias diferentes.

A minha mulher foi morta por uma das milícias.

O coronel Bigirabagabo tomou o controlo de Kivuye em Dezembro. Hutu na casa dos 30, era antigo soldado do Exército que desertou para lançar a sua própria milícia. Cultiva de tal forma o secretismo que os habitantes nunca o viram, nem sequer sabem o seu primeiro nome. Nem eles nem os seus próprios homens, que o descrevem como sendo implacável. Os responsáveis da ONU e os capacetes azuis também não sabiam nada sobre ele.

Innocent Bauma, um antigo combatente de 15 anos, diz que viu o senhor da guerra matar cinco dos seus próprios homens por terem desobedecido às suas ordens. “Ele baleou-os”, recorda Bauma, que fugiu depois do incidente e se rendeu ao Exército congolês. “Se fizermos algum erro, ele mata-nos.”

Durante mais de um ano, os guerrilheiros de Bigirabagabo pilharam pequenas aldeias da região. Mas quando o senhor da guerra que mandava em Kivuye concordou em juntar-se ao programa de desarmamento do Governo, Bigirabagabo e os seus homens chegaram para tomar conta.

Ninguém desafiou a milícia. A força policial da aldeia era de apenas seis membros e uma metralhadora. E sempre que os capacetes azuis da ONU passavam por Kivuye nos seus camiões brancos e pretos, os combatentes escondiam-se em cabanas ou em lojas.

“É tão difícil ver ou tentar encontrar milicianos”, diz o capitão Miguel Cioffi, o uruguaio que comanda a companhia de manutenção da paz. “Quando eles vêem os capacetes azuis, fogem.”

Tal como o seu antecessor, Bigirabagabo ordenou a todos os habitantes que pagassem uma taxa de “direito à vida” de cerca de 1,3 dólares por mês. A maior parte dos residentes recebe 5 a 7 dólares mensais.

Os combatentes entregavam recibos que facilitavam a prova de quem tinha pago — e quem não tinha. Quando os aldeões regressavam do seu trabalho no campo, os combatentes confiscavam o seu pagamento do dia ou as colheitas que traziam para casa para o jantar caso não tivessem pago a taxa.

Todos eram considerados alvos; a etnia não tinha grande importância.

Os homens armados detiveram Kanyeshamba Gwagitare dias depois de ele ter chegado a Kivuye em Janeiro e vergastaram-no 20 vezes com uma cana grossa por não ter pago o imposto. “Nós fugimos a pensar que vamos ter com o nosso irmão, que ele nos vai proteger”, diz Gwagitare, que chegou aqui com a sua mulher grávida e os seus cinco filhos depois de ter escapado a outra milícia. “Mas em vez de nos proteger, ele espanca-nos. O que podemos fazer? Ele tem uma arma. Nós calamo-nos.”

Nos dias de mercado, os milicianos exturcam subornos de arma apontada a vendedores e compradores. Isso, e as taxas, tem feito com que a maior parte dos habitantes evite ir ao mercado. Um dia, os combatentes cortaram o subchefe da polícia ao meio por ele ter tentado prender um dos seus camaradas.

Ignorando uma antiga hierarquia tribal, os combatentes ameaçam os aldeões mais velhos. Também passam por cima da autoridade de Bernard Kamanzi. Esguio e careca, Kamanzi tem o título de chefe de posto, uma posição equivalente à de presidente de câmara. Vive numa cabana enfiada na montanha. À noite, consegue ver a base da ONU iluminada a gerador. Brilha como a estrela polar, guiando os refugiados que fogem das milícias para o acampamento de barracas que se ergueu ao lado do campo.

Há 14 anos que Kamanzi não recebe o seu salário oficial. Ainda assim, continua empenhado no seu trabalho, se bem que as milícias tenham diluído a sua influência.

“O coronel Bigirabagabo agiu como chefe do posto, chefe da polícia e chefe da aldeia”, diz enquanto toma um pequeno-almoço de feijão, milho e espinafres na sua barraca. “Os seus homens andavam a prender quem quisessem.”

Sobreviver é um acto de equilíbrios delicados.

Kamanzi tem de baixar respeitosamente a cabeça quando fala com os jovens e iletrados guerrilheiros do senhor da guerra. Sempre que visitam a sua barraca, tem de lhes oferecer cerveja. Tem de lhes entregar dinheiro de multas e disputas judiciais e emprestar dinheiro para pagar os cartões de telemóvel do senhor da guerra.

Os aldeões acabaram por deixar de ir ter com Kamanzi para pedir conselhos ou ajuda. Alguns recorreriam aos novos governantes da aldeia para resolver as suas disputas. “Era humilhante”, diz Kamanzi. “Mas eu andava a fazer tempo para salvar a vida. Caso contrário, eles ter-me-iam certamente matado.”

No início de Março, o senhor da guerra e os seus 50 homens retiraram-se da aldeia depois de ter chegado um regimento do Governo e ter instalado um campo nas proximidades. Trouxe um sentimento de esperança, evidente naquele primeiro dia de mercado depois de a milícia se ter ido embora.

Com um soldado especado à frente da sua porta, Kamanzi estava de novo aos comandos. Os aldeões regressaram para o consultar. Durante uns tempos, só se preocupou com o seu trabalho.

Em Kivuye há muitas formas de morte.

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Um médico examina uma criança com graves problemas de malnutrição. Apesar das terras à volta de Kivuye serem extremamente férteis, a insegurança impede o cultivo

Os casamentos costumavam ser ocasiões festivas, com muita comida, bebida e dança. Vacas, cabras e porcos eram mortos para a celebração. Desde que chegaram as milícias, os casamentos tornaram-se raros e discretos. Ninguém quer chamar a atenção.

Seja como for, a maior parte dos aldeões não se pode dar ao luxo de pagar um casamento. Por exemplo, Bahatyi Nchimiye. Não deu o dote de uma vaca, cabra ou roupas aos seus sogros pela mão da filha. De acordo com as tradições da aldeia, isso significa que não estão legalmente casados. Mas vivem juntos e têm dois filhos, uma relação que seria impensável há duas décadas.

“Não paguei o dote porque não tenho dinheiro”, diz Nchimiye, de 18 anos, reparador de rádios. “Os pais dela não disseram nada. Sabem que estamos em guerra.”

As raparigas são agora menos desejadas pelos pais, dizem os mais velhos, porque já não podem exigir dotes. Os jogos de futebol também desapareceram porque muitos rapazes se juntaram a grupos armados, ou fugiram para não serem recrutados à força.

Os aldeões também já não podem celebrar o Natal ou a Páscoa. Antigamente, os agricultores pediam a toda a aldeia que ajudasse a fazer as colheitas quando era época. Ofereciam cerveja e comida como agradecimento. Agora, com tanta pobreza e tantos deslocados, essas festas desapareceram. Em vez disso, os roubos tornaram-se rotineiros, desintegrando os laços sociais que havia ali.

“A população é pobre porque tem de pagar os impostos de ‘direito à vida’ às milícias”, diz Kamanzi. “Alguns roubam os próprios vizinhos.”

Num lugar esquecido pelo mundo, a população sofre mesmo quando os seus opressores desaparecem.

Uma milícia atacou vários familiares de Marisiyana Bizimana, incluindo quatro filhos, numa aldeia próxima. Grávida de sete meses, fugiu com a família para Kivuye, onde os homens armados espancaram o marido e os obrigaram a pagar o imposto de “direito à vida” e alguns subornos. Agora, sem dinheiro que sobre para os cuidados médicos, ela tem de dar à luz dentro da sua barraca de colme. Duas mulheres — as suas vizinhas — amparam-na. Outra puxa o bebé. “Tiraram um pedaço de madeira para cortar o cordão umbilical, mas isso não resultou”, diz ela. “Por isso foram à procura de uma lâmina de barbear.”

Há um ano, Bizimana teria tido o seu filho na clínica pública de Kivuye. Mas a agência dos Médicos Sem Fronteiras, que a apoiava, retirou-se da aldeia por necessidades mais urgentes noutros locais. E com o Governo ausente em quase toda a região, a clínica ruiu.

“As pessoas cansaram-se do Congo”, diz Magali Roudaut, que na altura era chefe dos Médicos Sem Fronteiras no Leste do Congo.

O Programa Alimentar Mundial foi obrigado a cortar a ajuda à região devido a cortes no financiamento e mais de quatro milhões de congoleses enfrentam agora “uma falta grave de alimentos”.

De qualquer forma, poucas agências humanitárias foram para ali. Demora dez horas a chegar à aldeia partindo da capital de província, Goma, se estiver bom tempo. Quando o tempo piora, formam-se lençóis de água que transformam a estrada em lama. Os ataques também mantêm os funcionárias das agências à distância.

Com um vestido castanho — a única peça de roupa que tem — e um lenço encarnado, Bizimana tem ao colo o seu bebé recém-nascido, dentro da cabana feita de barro, palha e juncos.

A poucos metros da sua barraca estão umas latrinas que foram construídas há cinco anos, com uma cobertura que tem o selo “USAID — Enviado pelo povo americano”. Os funcionários financiados pelos Estados Unidos não regressaram desde então, dizem os anciãos da aldeia.

Bizimana ainda tem pesadelos com a visão dos corpos dos quatro filhos dos cunhados no chão, com o pescoço e o ventre abertos com machetes. Gritou “até não conseguir mais”.

A sua própria família poderia ter sofrido o mesmo destino e por isso deu o nome de Nfiteumukiza ao seu filho. Na língua kiniarwanda, uma das várias línguas que se falam no Leste do Congo, significa “tenho um salvador”.

À porta da clínica de saúde, uma menina de dois anos chamada Sifwe está a chorar. Tem inchaços e arranhões na cabeça.

“Não tenho conseguido encontrar comida para dar à minha filha”, explica a mãe, Nyiramana Nzabomimpa, de 36 anos, visivelmente perturbada. “Há cinco dias que ela não come.”

A clínica é uma barraca de madeira, com chão em lama e um telhado de zinco que deixa entrar água. Um balde roxo está pendurado numa balança que serve para pesar crianças malnutridas. Há três termómetros, mas um deles está estragado. Há um estetoscópio.

Não há médicos e há apenas quatro enfermeiros. Há mais de dois anos que não recebem ordenado.

Quando os Médicos Sem Fronteiras estavam cá, a clínica tratava em média 50 pacientes por dia, sem cobrar. Agora, trata 25 por semana. “Actualmente, as pessoas não têm meios”, diz Augustin Bazamanga, 45 anos, enfermeiro-chefe da clínica.

O bebé de Nzabomimpa estava tão malnutrido que as médicas o mandaram para o hospital mais perto, em Mweso, a oito horas a pé. Quando chegou, Swife apresentava problemas pulmonares e febre alta; também tinha anemia, segundo o pessoal dos Médicos Sem Fronteiras do hospital. Alimentaram-no por sonda.

Lentamente, Sifwe foi ficando mais forte.

“Se tivesse chegado um dia depois, teria morrido”, diz Delvaux Nyongolo, 43 anos, responsável pelo programa de nutrição do hospital.

Naquele dia, Kamanzi estava de mau humor.

Os soldados congoleses que se tinham ido embora duas semanas antes ainda não tinham regressado para proteger a aldeia. Bigirabagabo e os seus combatentes andavam à espreita na floresta. E, pior ainda, o senhor da guerra que tomou Kivuye antes dele regressara à zona e vivia a apenas oito quilómetros.

“O medo é que ele volte a reunir o seu grupo e comece novamente a sua rebelião”, diz Kamanzi, com um walkie-talkie preto na mão e um impermeável preto e verde.

Horas depois, Kamanzin ouvia notícias ainda mais perturbadoras: as forças da ONU iam ser mobilizadas para outro lado.

Conhecidas agora pelo seu acrónimo francês Monusco, a missão da ONU começou há 15 anos. Com mais de 21 mil capacetes azuis, os EUA garantiam praticamente um terço do seu orçamento anual de 1,4 mil milhões de dólares. Mas a missão foi incapaz de deter a trajectória de violência no Congo.

Numa colina por baixo da base das forças de manutenção da paz, um helicóptero de fabrico russo da ONU está para ali como um pássaro de mola. Despenhou-se há alguns meses, quando tentava aterrar. Para muitos aldeões, o aparelho caído tornou-se um símbolo do falhanço da ONU no Congo.

Mas sem as forças da paz, a população teria sofrido ainda mais.

No ano passado, as Nações Unidas lançaram uma brigada de combate de três mil soldados — a primeira força da ONU desse género — para apoiar o Exército congolês a combater as milícias. Apesar de ter havido sucessos, grupos de direitos humanos acusaram a força de apoiar um Governo corrupto e um Exército indisciplinado com historial de abusos.

Neste canto do Congo, as forças da paz — do Uruguai — não faziam parte da brigada de combate. Chegaram há mais de dois anos, mas as milícias continuam a reinar.

“A nossa missão é apenas de protecção civil”, diz Cioffi, o comandante da companhia.

Mas era difícil para os soldados, que não conheciam nenhuma das principais línguas faladas nesta parte do Congo — nem francês, nem suaíli, nem quiniaruanda —, comunicar com a população local para criar fontes e adquirir informações. Qualquer acção para proteger civis nunca era preventiva e frequentemente chegava demasiado tarde.

“Uma vez, os milicianos vieram durante a noite e dispararam contra as tendas de refugiados”, disse Celestine Nzabarinda, de 44 anos. “Duas crianças morreram incendiadas dentro das suas tendas. A Monusco chegou de manhã.”

Janvier Mada, um líder da comunidade e ele próprio um refugiado, recorda-se da última vez que se queixou às forças da paz de que um senhor da guerra estava a recrutar pessoas dos campos para se juntarem à sua milícia. As forças da paz responderam com uma patrulha à aldeia duas vezes por semana, e os homens do senhor da guerra foram-se embora. Mas isso foi apenas temporário.

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Soldados uruguaios da ONU esperam que um helicóptero os venha à base de Mpati

“Agora, as forças da paz não fazem patrulhamento. Apenas passam por ali”, diz Mada.

No início de Abril, as tendas foram recolhidas na base da ONU. Técnicos ucranianos trabalhavam para remover os destroços do helicóptero da ONU da colina.

Jean Bosco Mutuyimana, gerente de um café em frente à base, abana a cabeça. “Temos medo que os rebeldes que estão no bosque apareçam brevemente”, diz. “Quando a Monusco se for embora, eu se calhar também vou.”

Dentro da base também há apreensão. A partida das forças da paz significa o fim de um programa para reabilitar os milicianos, incluindo crianças-soldado. Cerca de 10 a 15 combatentes são desarmados todas as semanas, dizem funcionários congoleses do programa. “As milícias ainda andam por aí”, diz um dos funcionários, que não quis ser identificado por temer perder o emprego se for crítico com a Monusco. “Eles não se renderam ao Exército. Isto não acabou.”

Depois da missão de paz da ONU partir, o 804.º regimento do Exército ficou com a responsabilidade de proteger os civis de Kivuye e das áreas circundantes.

“Eles usavam fardas militares. Eles tinham armas”, diz a frágil mãe de cinco filhos numa voz baixa, na cidade de Kitchanga, a cerca de 48 quilómetros de estradas sinuosas de Kivuye. Está coberta por um lençol branco, deitada na cama de uma clínica para mulheres violadas. Com os olhos fechados, descreve como na semana anterior tinha ido procurar comida na floresta e se deparou com soldados congoleses que andavam a tentar apanhar milicianos que protegiam o seu grupo étnico. Os soldados eram do 804.º regimento.

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Soldados congoleses do 804º regimentona aldeia de Ndumba, onde combatem os rebeldes

Com a partida da milícia, os soldados do Congo tornaram-se o inimigo.

“Quando quis chorar, um soldado apontou-me uma arma à boca. Fiquei em silêncio enquanto quatro soldados me violavam, até terminarem”, conta. “Depois, amarraram-me com as minhas roupas. Bateram-me com um pau, tanto que quase me partiram as costas. A seguir foram-se embora.”

Pelo menos outras 13 mulheres tinham sido violadas na semana anterior, a cerca de 24 quilómetros de Kivuye. Em entrevistas separadas, cinco das vítimas descreveram os abusos, tal como os funcionários sociais congoleses que lhes prestam aconselhamento. Há muito tempo que a violação é uma arma de guerra no Congo, usada por todos os lados para instigar o medo e controlo da população.

O comandante do 804.º regimento, tenente-coronel Desire Chibi Chabeme, afirmou desconhecer as violações, adiantando que as pessoas que contam “histórias” destas são “inimigas” do Exército do Congo.

Mas já havia problemas com o regimento ainda antes da saída das forças de paz da ONU. A uma distância curta da base, soldados forçavam com uma arma dezenas de rapazes a transportarem a sua bagagem e munições para a linha da frente, segundo aldeões que foram recrutados à força e que deram o seu depoimento em entrevistas separadas.

“Se eu recusasse, os soldados batiam-me”, diz Innocent Zigamwe, que foi obrigado a carregar uma grande caixa de munições durante sete horas. “Não me pagavam. Não me davam comida. Nem sequer me agradeceram.”

Os soldados tomavam como alvo qualquer pessoa que lhes parecesse ser simpatizante das milícias. Num incidente, cinco soldados bêbedos detiveram um adolescente perto da base da ONU. Forçaram-no a ajoelhar-se na lama e amarraram-no com uma fita de plástico encarnada. Um soldado deu-lhe uma pancada na cabeça.

“Nos prendêmo-lo porque ele trabalhava com os inimigos”, afirma o major Marc Bwahiro, comandante da unidade. “Ele é um traidor.”

Mas o prisioneiro gritava: “Estou inocente. Não pertenço a nenhuma milícia.”

Vários aldeões confirmaram o que o jovem disse. No dia seguinte, os soldados libertaram-no depois de os seus familiares lhes terem trazido cervejas, segundo disseram amigos da família.

Muitos daqueles que mais sofreram abandonaram Kivuye. Na cidade de Kashuga, que fica a sete horas a pé, várias gerações de pessoas de Kivuye vivem uma existência difícil no campo de refugiados. Como por exemplo Furaha Uwimana, que fugiu com os seus cinco filhos depois de os combatentes terem espancado o seu marido até à morte.

Ela e outros aldeões ouviram dizer que o Exército estava a controlar a região. Mas ninguém planeava regressar. Já tinham desistido do Governo e das forças de paz da ONU.

“Nunca poderia regressar ao sítio onde mataram o meu marido”, diz Uwimana, com a dor marcada no rosto e o olhar vazio nas paredes da sua tenda.

No ano passado, Chantal Mukamana também fugiu de Kivuye e acabou no campo de refugiados de Mugunga, à sombra do Nyiragongo, um vulcão activo perto de Goma. Foi aqui que centenas de milhares de hutus do Ruanda procuraram refúgio depois do genocídio. Agora, duas décadas depois, o campo está cheio de congoleses desesperados.

“A guerra no Congo é uma guerra sem fim”, diz Mukamana, de 35 anos. “Já não sabemos se até mesmo Deus consegue acabar com esta guerra.”

De volta a Kivuye, Kamanzi está inquieto dentro da sua barraca. Desde a partida das forças da ONU, e do seu brilho reflector, que as perguntas não deixam a sua cabeça.

As milícias vão voltar? As forças da paz vão voltar? E durante quanto tempo durará o dia de mercado dos habitantes da aldeia e a sua liberdade?

Nesta noite, as respostas são tão invisíveis como o vale, que agora está coberto de escuridão.

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Missa de domingo em Kinshasa

Exclusivo PÚBLICO/Washington Post