Queridos, são centenas de cartazes!

São seis centenas de cartazes de artista – uma pequena parte da Colecção Lempert na primeira de cinco exposições que até 2018 a Culturgest dedica a esta colecção alemã. Honey, I rearranged the colection… by artist é o primeiro capítulo de uma longa viagem por caminhos inesperados da história da arte.

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Dubuffet, pois. Seguido por Claes Oldenburg: o próprio artista a abraçar uma bisnaga gigante de tinta no cartaz que anuncia a sua exposição de 1966 no Moderna Museet de Estocolmo; uma tesoura ampliada no cartaz da exposição de 1968 no Smithsonian, em Washington; uma mola de madeira a crescer junto ao Beijo (1908), de Brancusi, no cartaz da exposição de 1972 no Philadelphia Museum of Art; e, depois, um cartaz de outro género: um “artists cal” de Janeiro de 1984 contra a intervenção norte-americana na América Central, com centenas de assinaturas: Joel Shapiro, Cindy Sherman, Carolee Schneemann, Andres Serrano, Richard Serra, Kiki Smith, Andy Warhol…

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Dubuffet, pois. Seguido por Claes Oldenburg: o próprio artista a abraçar uma bisnaga gigante de tinta no cartaz que anuncia a sua exposição de 1966 no Moderna Museet de Estocolmo; uma tesoura ampliada no cartaz da exposição de 1968 no Smithsonian, em Washington; uma mola de madeira a crescer junto ao Beijo (1908), de Brancusi, no cartaz da exposição de 1972 no Philadelphia Museum of Art; e, depois, um cartaz de outro género: um “artists cal” de Janeiro de 1984 contra a intervenção norte-americana na América Central, com centenas de assinaturas: Joel Shapiro, Cindy Sherman, Carolee Schneemann, Andres Serrano, Richard Serra, Kiki Smith, Andy Warhol…

Depois, e por fim, Ben Vautier: “Este é um cartaz para vos informar que me exibirei por dinheiro e glória na Galeria Denise René e Hans Meyer”, lê-se num póster de 1970, que acaba em oração derrisória: “Ámen”; “A arte é apenas uma questão de assinatura/data”, lê-se num cartaz de 1972 com duas versões: uma assinada e datada, outra por assinar e por datar.

Podíamos continuar:  Allan Kaprow, Robert Rauschenberg, Andy Warhol, Richard Hamilton, Dieter Roth, Ellsworth Kelly, Dan Flavin, Sol LeWitt, Hanne Darboven, Richard Tuttle, Lawrence Weiner, Marcel Broodthaers, Gino de Dominicis, James Lee Byars…  A primeira das cinco exposições do ciclo Honey, I rearranged the collection…, que a Culturgest inaugurou há uma semana e que reúne 600 cartazes assinados por 17 artistas ao longo de um vasto arco temporal que arranca na década de 1940. Uma muito pequena parte da Colecção Lempert, que integra cerca de 15 mil espécimes de centenas de autores e à qual a Culturgest dedicará outras quatro mostras ao longo dos próximos três anos.

Nesta primeira exposição, a colecção é visitada por artista – o título completo da mostra é, aliás, programático: Honey, I rearranged the collection… by artist – Capítulo 1/1ª Parte. No arranque do próximo ano segue-se uma segunda mostra seguindo o mesmo critério curatorial na exposição Honey, I rearranged the collection… by artista – Capítulo 1/2ª Parte. Em 2017, na terceira e quarta exposições do ciclo – Honey, I rearranged the collection… by topic – Capítulo 2, 1ª e 2ª partes –, a escolha de obras será feita por categorias como “séries e variações”, “a imagem do artista”, “cartazes tipográficos”, “cartazes manuscritos” ou “cartazes políticos”, por exemplo, integrando autores agora não representados – é o caso, entre outros, de Picasso e Fontana – ou repetindo nomes, mas com novos trabalhos – é o caso de Dieter Roth, com 21 novos cartazes. Por fim, no princípio de 2018, a quinta e última exposição do ciclo, intitulada Honey, I rearranged the collection… by year, apresentará um olhar cronológico sobre esta colecção privada francesa que estava até hoje por expor publicamente.

A Colecção Lempert “é uma das melhores se não a melhor colecção deste género no mundo”, diz Miguel Wandschneider, curador de arte contemporânea da Culturgest e comissário da exposição.
Wandschneider ficou a conhecer a colecção por acaso em 2009, quando dedicou na Culturgest uma exposição à obra de Jochen Lempert – o artista herdou a colecção do pai, que começou a construir os seus acervos em meados dos anos 1960, precisamente a década em que o número de artistas a fazerem os seus próprios cartazes se tornou exponencial.
À época, ninguém coleccionava cartazes, diz Wandschneider: “Fritz Lempert foi um percursor e especializou-se. Tornou-se numa autoridade neste domínio. E estava em contacto directo com artistas como Dan Flavin, Sol LeWitt, Claes Oldenburg, o que foi importante para conseguir uma colecção tão completa.”
Nesta altura, os cartazes desenhados por nomes como Toulouse Lautrec atingiriam já valores de mercado incomportáveis para Lempert, diz ainda Wanschneider. A colecção integra alguns exemplares art nouveau. No entanto, foca-se, em geral, no pós-guerra.

Lempert coligiu todos os cartazes que conseguiu desenhados por Picasso. E os cartazes das décadas de 1940 e 1950 de Dubuffet que agora se vêem em Lisboa, por exemplo, hoje já não se encontram no mercado.
Dubuffet, precisamente, é o mais recuado nome na Culturgest. “Um caso de transição entre as chamadas artes moderna e contemporânea”, diz Wandschneider.
Estão representados outros artistas com trabalhos da década de 1950 – Allan Kaprow, Ellsworth Kelly… São, em geral, trabalhos de finais dessa década. Quando começam a surgir algumas das evoluções técnicas e questionamentos que se tornariam centrais na década seguinte.

Por todos os campos da criação, ideias como a de democratização da obra de arte levaram a um interesse pela serialização. E, com esta chegou, naturalmente, o interesse por todas as técnicas que permitissem a multiplicação de uma mesma chave matricial.
A fotografia e o vídeo, claro. Mas também a xilogravura, a calcografia, a litografia, o stencil, a serigrafia, o grafito – ao longo de toda a década de 1960 o interesse por tudo o que fosse matéria impressa explode. “Não por acaso”, sublinha Wandschneider, “há uma coincidência entre a expansão imensa do cartaz e o campo dos livros de artista. Não é coincidência que artistas com grande produção de cartazes produzam também livros de artista.”

Dieter Roth, Lawrence Weiner, Sol LeWitt, Marcel Broodthaers – todos assinaram um volume significativo tanto de livros de artista como de cartazes. Claes Oldernburg, Robert Rauschenberg, Andy Warhol, Ellsworth Kelly, Sol LeWitt – todos produziram ainda edições, de vários tipos.
“O cartaz tem um carácter democrático quer na produção quer na reprodução que interessava muito aos artistas desta década de 1960, quando os artistas estão também muito interessados em materiais e técnicas tidos como não-nobres, ou seja, tradicionalmente não ligados às artes plásticas”, diz ainda Wandschneider.      
É nesta altura, por exemplo, que Dan Flavin começa a trabalhar com as luzes fluorescentes que se tornariam na sua imagem de marca. Entendeu-se que usar materiais do quotidiano interpelaria os não-iniciados numa linguagem ao seu alcance e numa via de dois sentidos: no sentido inverso, esses mesmos materiais permitiriam introduzir nas galerias e museus as temáticas e poéticas do quotidiano, permitindo aos artistas, simultaneamente, cortar com a lógica do domínio virtuoso e tecnicista das disciplinas tradicionais.
Os cartazes podem ser entendidos neste contexto de desconsideração pelos materiais e técnicas tidos como nobres. No entanto, há outros ângulos que tocam a ideia de democratização – o cartaz permitia chegar aos anónimos em trânsito no espaço urbano exterior aos círculos da arte, recorda Wandschneider; não por acaso artistas como Lawrence Weiner saltam do cartaz para a inscrição directa em paredes, no chão… Mas nem mesmo a acumulação de todos estas possibilidades explica porque tantos artistas se interessaram pela realização dos materiais gráficos de divulgação das suas exposições e outro tipo de eventos. É uma pergunta que Wandschneider repete: porquê?

No caso de um artista como Andy Warhol, por exemplo, essa dedicação parecerá natural, dados os interesses gerais da sua obra. No entanto, Warhol acabaria por realizar mais cartazes para outros do que para as suas exposições. Na Culturgest estão, entre outros, o cartaz na base da capa do álbum de 1987 Aretha, de Aretha Franklin para a Arista Records – o último trabalho conhecido de Warhol antes da sua morte, nesse ano; o cartaz dos XIV Jogos Olímpicos de Inverno, realizados em 1984 em Sarajevo, então na Juguslávia, o primeiro país comunista a receber os Olímpicos de Inverno e apenas o segundo país comunista de sempre a receber uns Olímpicos (depois de se terem realizado em Moscovo, em 1980); três versões diferentes do cartaz de promoção de Querelle, o célebre filme de Fassbinder; e até um inesperado cartaz para o partido dos Verdes alemães.

As questões ligadas à serialização e à massificação, o fascínio pelo universo da publicidade, do marketing, das finanças, do poder, da fama e do estrelato são intrínsecos à obra de Warhol. Mas, e quanto aos outros artistas? Porquê o interesse por este suporte?   

Uma explicação simples corresponderia ao desejo de divulgar uma obra por via da sua própria linguagem, não deixando em mãos alheias a representação do seu trabalho e de si mesmos. Os artistas poriam assim em jogo nos cartazes as ideias, preocupações e linguagens da sua obra num dado momento – o que é, aliás, evidente ao longo de toda a mostra, com muitos elementos constantes nos cartazes a serem facilmente identificáveis com uma assinatura. De resto, Miguel Wandschneider refere que esse é um dos motivos porque a Colecção Lempert proporciona uma tão “extraordinária e surpreendente viagem pela obra destes artistas e a história da arte dos últimos cinquenta anos”. No entanto, vai mais longe: ao assumirem a função que normalmente seria entregue a terceiros, os artistas plásticos impedem que os seus cartazes fiquem sob a alçada de critérios de ordem comunicacional formatados, pré-definidos ou definidos por outros – por isso, diz, se encontram muitos cartazes que subvertem quase todos os critérios de racionalidade.

Quem, o quê, onde, quando – nos cartazes de artista, as informações básicas a que o marketing e a publicidade dariam primazia são muitas vezes secundarizadas, escondidas ou encriptadas, com os artistas a dificultarem ou complexificarem leituras.

Num cartaz como aquele em que escreve “Ben expõe por todo o lado” Ben Vautier produz uma afirmação (de omnipresença) – de resto, produz afirmações em todos os seus cartazes, normalmente questionando o estatuto do artista, o estatuto da obra arte ou ambos. Em autores como ele, ou como Dieter Roth, “os cartazes não são apenas uma forma de comunicar ou formar públicos”, sublinha Wandschneider. É por esse motivos, diz ainda o comissário da exposição, que muitos artistas continuam hoje a fazer cartazes, numa época em que o cartaz se tornou obsoleto.

Wandschneider faz notar como, em Lisboa, a galeria Cristina Guerra produziu nos últimos anos cartazes para três veteranos internacionais: John Baldessari, Lawrence Weiner e Matt Mullican. Cartazes que não foram espalhados pela cidade e, antes, assinados pelos artistas e oferecidos aos convidados das suas inaugurações na galeria. “Mesmo quando os cartazes simulam a função prática de divulgar uma exposição, já não cumprem essa função. Surgem dentro de e prolongam uma genealogia. O cartaz deixou de ter uma racionalidade económica e de ser eficaz do ponto de vista comunicacional. No entanto, muitos artistas continuam a fazê-los. Até porque a separação entre a produção da obra e a divulgação dessa obra não faz muito sentido.”