A crise está a ajudar a juntar quatro gerações à mesma mesa

Por força do desemprego, da precariedade e da emigração, pode estar a abrandar o processo de desarticulação das famílias e a aumentar a coabitação de gerações. Este é o último de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações

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A casa de Isabel Cabral, em Ermesinde, é um exemplo de coabitação, impulsionada pela crise, de várias gerações da família Fernando Veludo/NFactos

Só tem 14 anos, Maria António. Mora com os avós em Santa Eufémia, uma aldeia do concelho de Leiria. A mãe está em Bergen, a segunda maior cidade da Noruega. Maria esteve com ela dois anos e meio, mas quis regressar. Quer fazer um curso técnico-profissional de gestão de quintas e eventos equestres. E está convencida de que em Portugal as escolas são mais exigentes e os cavalos melhores. “A minha mãe deixou-me vir. Ela está triste, mas compreende.”

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Só tem 14 anos, Maria António. Mora com os avós em Santa Eufémia, uma aldeia do concelho de Leiria. A mãe está em Bergen, a segunda maior cidade da Noruega. Maria esteve com ela dois anos e meio, mas quis regressar. Quer fazer um curso técnico-profissional de gestão de quintas e eventos equestres. E está convencida de que em Portugal as escolas são mais exigentes e os cavalos melhores. “A minha mãe deixou-me vir. Ela está triste, mas compreende.”

Mónica António, a mãe, não pensou que lhe custasse tanto deixá-la ao cuidado dos avós. A 11 de Agosto, estava a colocar a mala na bagageira e já lhe rolavam as lágrimas pelo rosto. Foi a chorar grande parte da viagem até Lisboa. Recomeçou o choro mal ouviu, já no avião, falar norueguês. “Estás no teu país e já não estás. Já estás a ouvir uma língua de um sítio para o qual não queres voltar”. 

O avô torceu o nariz. Tudo aquilo lhe parece um bocado disparatado. Para ele, adolescente não tem querer; quem tem querer é o pai ou a mãe ou ambos, caso ambos se portem como pais, o que não é o caso do pai de Maria. A mãe pensou muito. Maria tinha quatro anos quando o avô a levou pela primeira vez à Feira da Golegã e lhe comprou um cavalinho de plástico. Por volta dos seis começou a pedir para montar. Monta desde os sete. Quantos pais podem gabar-se de ter uma filha que, aos 14 anos, sabe o que quer? “Ela está feliz em Portugal”, percebe a mãe. “É uma rapariga da terra. Gosta de tomar banho na nascente, de ir à terra com o avô, de alimentar as galinhas, os perus e as ovelhas. Se tiver equipação, passa horas a limpar as cocheiras.”

Que não haja equívocos. As famílias, sublinha o sociólogo Manuel Villaverde Cabral, não são democráticas, embora sejam menos autoritárias, menos impositivas, do que há 30 ou 40 anos. As idades continuam a pesar, até “pelas diferenças de formação e do papel que cada grupo etário desempenha na sociedade e dentro da própria família”.

As relações entre as gerações podem variar conforme a classe social, a zona de residência, o posicionamento político, a escolaridade, a orientação sexual e outros factores. O uso do telemóvel, porém, será quase sempre um ponto de descontinuidade. Dir-se-ia que os mais novos não se cansam de o usar. Mandam em média 100 mensagens de telemóvel por dia – segundo um estudo feito pelo Instituto Superior Técnico e pelo Instituto de Telecomunicações no ano lectivo 2010-2011. Às vezes, parece que querem só testar o canal de comunicação. “Estás aí?” “Onde estás?” “Está tudo bem?”

Quando Mónica era adolescente, havia dois telefones lá em casa e ambos tinham um cadeado a impedir chamadas não autorizadas. Qualquer conversa podia ser ouvida. Agora, Maria tem telemóvel na mão e destreza nos dedos. O avô, de 68 anos, a avó, de 62, adoram-na, mas não compreendem aquela ligação à máquina. Os pedidos para sair são outra tormenta. Têm medo que algo lhe aconteça. A mãe explica-lhes “que tem de se confiar, que ajuda soltar a corda com limites”.

Era outro o Portugal da juventude dos avós. Há 50 anos, 91% dos casamentos realizavam-se sobre a égide da Igreja Católica, o marido provia ao sustento e ditava as regras; a mulher era responsável pelo governo da casa e, tal como os filhos, devia-lhe obediência – só 18% delas trabalhavam fora.

No calendário das relações entre gerações, vale contar um antes e um depois de Maio de 1968, que começou por ser uma contestação estudantil em França e se tornou no que Villaverde Cabral descreve como “o cume do movimento antiautoritário que varreu o mundo”. Nos países democráticos e não só, “a contestação da família patriarcal, da repressão sexual e das desigualdades de género fizeram diminuir o autoritarismo”.

Depois de 25 de Abril de 1974, Portugal tratou de recuperar o atraso. As mulheres atiraram-se de cabeça para o mercado de trabalho. Diminuíram os casamentos, aumentaram os divórcios, diminuíram os nascimentos, aumentou a esperança média de vida. É essa, resume Villaverde Cabral, “a modernidade da sociedade actual”. Com tudo isso “a noção de família foi perdendo a sua personalidade masculina autoritária”. E a própria família perdeu muito do seu peso “como referência social e mesmo pessoal”.

As famílias são hoje pequenas – 2,6 pessoas em média. Caiu o número de casais com filhos. Outras formas de organização foram ganhando expressão: casais sem filhos, famílias monoparentais, famílias reconstituídas, famílias unipessoais, famílias multi-étnicas, famílias de orientação sexual diversa.

Diz o sociólogo João Teixeira Lopes que as transformações sociais foram tão rápidas que as várias gerações se aproximaram. Parece-lhe que isso se vê numa série de práticas, inclusive legislativas – como a aprovação da interrupção voluntária da gravidez ou do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Talvez por isso, interpreta, os conflitos entre gerações tenham agora menos a ver com valores e mais a ver com gestão do quotidiano – como o uso das novas tecnologias, a partilha de espaço, a hora de chegada.

Para quem tem de educar à distância, as novas tecnologias são uma bênção. Mónica conversa muito com a filha, com a mãe, com a irmã mais velha, que pode funcionar como uma espécie de mediadora entre avó e neta. Às vezes, mesmo pelo Skype, um software que combina a voz, a escrita e a imagem, mãe e filha irritam-se uma com a outra. Mónica perde a paciência quando Maria “começa a falar alto e não pára de respirar por que não quer perder a razão.”

Conta 36 anos, Mónica. Decidiu partir na noite eleitoral de 5 de Julho de 2011. Naquele instante, sentiu que seria impossível sonhar dentro do país. Portugal tinha assinado o memorando de entendimento e o novo Governo prometia ir mais longe do que a troika – Comissão Europeia (CE), Banco Central Europeu (BCE) e Fundo Monetário Internacional (FMI). “O meu maior sonho era conhecer o planeta, mas nós mudamos e os sonhos também e agora o meu maior sonho é voltar para casa e para a Maria”.

Ainda não há estatística disponível a partir de 2011, mas, depois de décadas a cair, a coabitação pode estar a aumentar. Acentuou-se aquilo a que o sociólogo José Machado Pais chama “trajectórias ioiô”, jovens presos a períodos feitos de estágios, cursos, subempregos, aprendizagens, desempregos. Os cortes salariais, o endividamento, a precariedade e o desemprego afectam muitos adultos com filhos para criar. E há um fluxo migratório crescente, que tende a alimentar-se disso tudo.

A crise pode estar a reduzir ainda mais a natalidade, a instigar instabilidade conjugal, a aumentar a violência intrafamiliar, sobretudo contra as mulheres e as crianças, mas também estará a abrandar o processo de desarticulação das famílias, que estava a acontecer desde de 1974. Não há só filhos a adiar a saída de casa ou a deixar as crianças ao cuidado dos avós. Há também filhos a regressar a casa já com crianças nos braços ou a ir buscar os pais aos lares.

As fronteiras entre as várias faixas etárias foram-se diluindo, comenta José Machado Pais. As crianças parecem ter pressa em parecer jovens. Bastará “pensar na sexualidade, no consumo de álcool e drogas, até mesmo na erotização promovida por concursos de beleza e desfiles de moda”. E quanto mais velhos ficam os adultos mais jovens querem parecer. Villaverde Cabral é um exemplo disso mesmo: “Hoje, jubilado com mais de 70 anos, visto-me de forma menos formal do que quando comecei a trabalhar ainda não tinha 18 anos!” Foi professor de Teixeira Lopes, agora com 45 anos. “Dizia com muita graça que no tempo dele mandava-se o pai à merda e tinha de se sair de casa. Hoje, pode mandar-se o pai à merda mas não se tem necessariamente de sair de casa”, diz Teixeira Lopes. “Arranja-se um modus vivendi. Há uma grande interdependência entre as várias gerações e, por isso, muitos precisam de coabitação. A coabitação obriga a um certo pragmatismo. Não te vais incompatibilizar com os teus pais se precisas de partilhar espaços e recursos.”

Entremos em casa de Isabel Cabral, em Ermesinde. A antiga professora de Biologia usa a palavra hecatombe. Não está só a falar no corte na sua pensão. A filha mais velha, professora de Educação Visual, tornou a não ser colocada. E o genro está sem ganho. Faliu a imobiliária que o ocupava. Ele ainda tentou a sorte na Suíça, mas a experiência não foi boa. E estão ambos em casa de Isabel, com uma criança.

Dentro daquela casa moram quatro gerações. Isabel, de 69 anos, o marido, de 71, a mãe, de 91, a filha, de 40, o genro, de 50, e o neto, de dois. Duas vezes por semana, à mesa senta-se também a outra filha do casal, que já completou 34. E nesses dias ali dentro não falta nenhuma das gerações vivas em Portugal. Há a geração silenciosa, a geração “baby boomers”, a geração X, a geração Y e a geração Z.

A Isabel nunca falta o que fazer, mais agora que a mulher-a-dias está de férias. Quando se reformou, há nove anos, estava preparada para cuidar da mãe. “Ia ser o meu voluntariado!” Não pensava voltar a ter casa cheia. Não se queixa da mãe, que um longo casamento com um homem autoritário ensinou a aceitar tudo com um sorriso. “Para ela, está sempre tudo bem. Dá um bocadinho de trabalho, mas nada de especial.” Até ajuda a cuidar do pequeno, que “trepa tudo, mexe em tudo”. O desgaste de Isabel é com o resto da família, que não a ajuda tanto como ela gostaria a tratar das roupas, a limpar e a arrumar a casa, a preparar as refeições.

Sempre foram diferentes, as filhas. A mais velha era tímida, metida consigo própria. A mais nova era extrovertida, a ansiar liberdade. O pai era permissivo. A mãe era capaz de lhes levantar a mão. “Aqui há democracia, mas quem manda sou eu!”, dizia ela. As duas estudaram – uma Arte, outra Economia. Quem haveria de dizer a Isabel que uma delas voltaria a precisar do seu apoio?

O país vive a várias velocidades. E isso é claro até no modo como as diversas gerações se relacionam.

Nas classes médias e nalguns segmentos das classes populares que investiram na educação dos filhos, o sociólogo João Queirós, de 32 anos, aponta dois tipos de riscos. Quando a escola não retribuiu o investimento feito, podem surgir “dúvida sobre as ‘capacidades’ dos filhos, as suas ‘opções de estudo’, a sua ‘motivação’ ou a sua capacidade de ‘desenrasque’”. Quando os filhos sobem muito, por via da educação ou da profissão, o risco é de se afastarem – “os pais têm orgulho nos filhos, mas vêem-nos ‘fugir’”. Nas classes altas, o risco ocorre “quando a trajectória dos filhos representa declínio social ou eles não conseguem assegurar a reprodução da família, do seu património e estilo de vida”.

Numa zona urbana e pós-industrial como o Porto, exemplifica João Queirós, o mundo operário desabou. As fábricas que empregaram os pais não estão lá para os filhos. Muitos “pais (sobretudo homens) olham para os filhos (sobretudo homens) com desgosto e incompreensão: ‘Quem é que eu criei? Não quer trabalhar, não quer estudar, o que é que vai fazer da vida dele?’” E muitos filhos “olham para os pais com distância e até desprezo: ‘Não me revejo!’” Mas nem o contexto pós-industrial é todo igual. Bastará ir ao Vale do Sousa para o perceber. Em Penafiel, exemplifica, “há muito a orientação para trabalhar, para ir à procura. E a casa, muitas vezes dos pais ou dos sogros, ainda funciona como o reduto ao qual se regressa. Há um certo ‘familismo individualista’, um fechamento em torno da casa, da reprodução do grupo doméstico, que envolve a vida em comum de três ou até quatro gerações”.

Para Villaverde Cabral é óbvio que tudo seria mais complicado se não existisse uma solidariedade intrafamiliar. E nisso também sobressaem “as desigualdades entre as classes sociais: todas as famílias se entreajudam, mas as mais ricas ajudam-se mais do que as outras e as diferenças aumentam”. Na senda de sociólogos da sua geração, como o britânico Bryan Turner, dá cada vez mais importância aos “riscos de conflito entre grupos etários”. Para lá das famílias, identifica riscos de discriminação mútua, resultantes dos preconceitos que jovens e idosos têm uns dos outros; riscos de sustentabilidade dos sistemas de saúde e da segurança social, relacionados com gastos com pensões, mas também com prestação de cuidados. E riscos de competição “ao nível dos mercados de trabalho, hoje agudizada pela tesoura entre um crescente desemprego jovem e uma idade da reforma alegadamente precoce”. Parece-lhe então que vale a pena lembrar que todos passam pelas várias fases da vida.