A criança que sonhava com o fim do mundo

“A criança que sonhava com o fim do mundo” (Nova Delphi) é uma hábil reflexão sobre os medos mais profundos do ser humano

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Alexandre Meneghini/Reuters

Em Bergamo, um padre e duas educadoras de infância são acusadas de abusar de crianças pelas quais são responsáveis. A partir desta situação, António Scurati (n. Nápoles, 1969) construiu uma obra sobre um vírus que vai infectando Bergamo e toda a Itália: o medo. “A criança que sonhava com o fim do mundo” (Nova Delphi) é uma hábil reflexão sobre os medos mais profundos do ser humano. É, também, uma crítica acutilante sobre as características individuais e sociais tão propícias ao aparecimento da psicose.

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Em Bergamo, um padre e duas educadoras de infância são acusadas de abusar de crianças pelas quais são responsáveis. A partir desta situação, António Scurati (n. Nápoles, 1969) construiu uma obra sobre um vírus que vai infectando Bergamo e toda a Itália: o medo. “A criança que sonhava com o fim do mundo” (Nova Delphi) é uma hábil reflexão sobre os medos mais profundos do ser humano. É, também, uma crítica acutilante sobre as características individuais e sociais tão propícias ao aparecimento da psicose.

O medo só necessita de um inimigo, real ou imaginário, para provocar convulsões sociais com resultados difíceis de prever. A interpretação sob o seu efeito leva a conclusões viciadas desde o início. O medo impõe a conduta moral; a interpretação é uma mera desculpa que justifica a acção. Bergamo reúne as condições para a fragmentação social: a forte imigração; professores, padres e educadoras de infâncias suspeitos de pedofilia; e ciganos. Junte-se o medo e a explosão é iminente.

Bergamo somos nós.

Os boatos e a fuga de informação, quando o processo está em julgamento, sobre a presumível conduta dos acusados encontram nos Media o aliado indispensável à deflagração do vírus causador de uma verdadeira “pestilência social”.

“A partir daquele momento, de nada serviriam a inconsistência das provas, as testemunhas abonatórias, as considerações contrárias.” pág.163 Perante as câmaras de televisão, os jornalistas, a vigilância electrónica nas ruas, os “smartphones” e a internet, a maldade torna-se espectáculo. O estado “orwelliano” redefine a privacidade. E assim, todos se transformam em actores e plateia.

Devido à “colonização mental”, a inocência deixa de ser presumível e a culpabilidade é certa. A colonização é de tal grandeza que o próprio narrador se põe em causa ao duvidar da sua infância e das suas acções durante os seus períodos de sonambulismo. Quando uma vítima de pedofilia o aponta como responsável por abuso sexual, a psicose torna-se individual. Ele começa a duvidar de si próprio e a sentir necessidade de confrontar o seu passado para perceber a raiz dos seus distúrbios de sono. A dúvida sobre a veracidade do que é contado é exponenciada pela estrutura do romance. A utilização de estratégias narrativas pertencentes tanto à linguagem literária como à mais informativa e denotativa próprias do texto não literário remetem para “A sangue frio”, de Truman Capote. Scurati procura minimizar a polissemia quando relata os acontecimentos em Bergamo. Esta estratégia é coerente com o “eu narrativo” exercido por um personagem que é professor e jornalista de profissão.

Um texto literário não tem de obedecer à realidade visível, mas deve permanecer credível. Scurati mantém a credibilidade do princípio ao fim, levando o leitor a ser testemunha.

Enriquecido por um extraordinário prefacio de António Fournier, “A criança que sonhava com o fim do mundo” é uma obra inquietante e inteligente, tanto pelo tema como pela sua própria estrutura literária.