Na penumbra

São 36 filmes e três câmaras obscuras. Com comissariado de Vicente Todolí, a obra de João Maria Gusmão e Pedro Paiva fez o Hangar Bicocca, em Milão, mergulhar no escuro. Regresso às origens.

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Por todo o lado, o zumbir de motores e bobinas em rotação. Há qualquer coisa de matérico na forma como este som ocupa o espaço. Tanto o espaço físico, da área expositiva, como esse outro espaço mais intangível que é o vazio criado em nós pela mudez dos trabalhos em exibição, na sua maior parte pequenos filmes em 16 mm, ensaios visuais em geral com entre dois e dez minutos de duração.

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Por todo o lado, o zumbir de motores e bobinas em rotação. Há qualquer coisa de matérico na forma como este som ocupa o espaço. Tanto o espaço físico, da área expositiva, como esse outro espaço mais intangível que é o vazio criado em nós pela mudez dos trabalhos em exibição, na sua maior parte pequenos filmes em 16 mm, ensaios visuais em geral com entre dois e dez minutos de duração.

Pequenos filmes-ensaio, dizíamos. Em geral, mas não todos. Entre os dez novos trabalhos que João Maria Gusmão e Pedro Paiva apresentam nesta exposição do Hangar Bicocca, um abre um campo de acção de características ligeiramente distintas – precisamente o trabalho que dá título à mostra.

Muito mais longo do que os restantes, com os seus 43 minutos, em cinema Papagaio (2014) seria considerado uma longa-metragem. De resto, é precisamente numa insinuação de sala de cinema que esta obra é apresentada, autonomizando-se ligeiramente da estrutura geral da exposição, na qual o conjunto dos trabalhos se vêem unificados pela montagem, parecendo compor um corpo único, envolvido por, ou a gravitar em torno de, uma construção de contraplacado de madeira natural. Como uma macronarrativa composta de pequenas visões complementares.

Papagaio parece ligeiramente à margem. Uma projecção suspensa no ar e uma plateia de simples cadeiras de plástico. Sempre submersos na penumbra, sentamo-nos. Estamos em África. Homens e mulheres, todos negros, ocupam o ecrã. Na imagem, é noite, há uma fogueira e, de um dos lados, uma longa mesa, como um altar.

Aparentemente indiferentes ao facto de estarem a ser filmadas, estas presenças masculinas e femininas vestidas de forma perfeitamente anódina entregam-se ao que facilmente se identifica como um ritual de transe ou possessão.
Como nós, avançam pelo escuro. Deambulam, esboçam movimentos de dança, encontram-se e desencontram-se, tocam-se, trocam palavras que não ouvimos. Depois, pontualmente, vacilam e deixam-se cair por terra em estertor, como massas informes que acabam por se elevar do chão em torções, ângulos, ritmos e velocidades improváveis, aparentemente animadas por forças sobrenaturais.

Ao contrário da maioria dos filmes de João Maria Gusmão e Pedro Paiva, não parece haver aqui qualquer artifício intencional de filmagem ou montagem. Próxima do que seria o ponto de vista de um registo antropológico, a câmara tenta limitar-se a registar os eventos em curso, evitando a construção de uma narrativa própria – um programa conceptual muito distinto das linhas que costumam enformar os projectos desta dupla de artistas, mais frequentemente construídos em busca de um certo onirismo ou até, por vezes, de ambientes alucinatórios.

Basta olhar para os restantes filmes que, como Papagaio, João Maria Gusmão e Pedro Paiva realizaram em São Tomé e Príncipe, ao longo de duas visitas feitas a partir de uma residência inicial no arquipélago, em 2011, a convite da Bienal de Arte e Cultura local, e depois, de novo, já com apoio do Hangar Bicocca. Tal como em trabalhos anteriores – mas aqui recordando (e parecendo espelhar) o efeito de radical alteração de percepção temporal que experimenta quem visita estas ilhas equatoriais, com as horas a parecerem dilatar-se inesperadamente –, várias das obras que resultaram destas viagens retratam pequenos episódios quotidianos tornados excepcionais pelo efeito de desaceleração a que o seu registo fílmico se viu sujeito.

Para Donkey (2011), por exemplo, João Maria Gusmão e Pedro Paiva partiram do registo de um burro a galopar por uma das ruas da cidade de São Tomé. Face à desaceleração da imagem, ficamos com uma sequência fantasmática de quase stills que, tal como sublinham os materiais de divulgação da exposição, referenciam o famoso Horse in Motion (1878) de Eadweard Muybridge, o inventor da cronofotografia, o último passo técnico antes do cinema.

Está em toda a obra de João Maria Gusmão e Pedro Paiva esta espécie de arqueologia ou, na verdade, esta espécie de ressureição das origens. Porque, mais do que citar ou referenciar, é como se grande parte dos trabalhos destes artistas fizesse a sua própria incursão pelo passado, trazendo-o até à superfície do presente.

Não se trata de um revivalismo, que seria apenas uma repetição. Por isso não se trata também exactamente de uma reapropriação ou da duplicação de uma forma de fazer. Está em causa mais: um regresso. Ou seja, uma energia que, recuperada à origem, volta a ganhar vida, como numa assombração.

Nesta perspectiva, Papagaio não está tão deslocado quanto possa inicialmente parecer da matriz geral do trabalho de João Maria Gusmão e Pedro Paiva. Em Milão, na verdade, apresenta-se quase como um levantar da cortina sobre os princípios subterrâneos que regem as principais linhas de actuação de todo um corpo de obra muito deliberadamente situado algures aquém ou além dos primados da ordem e da transparência de cariz iluminista.

 

A ordem do caos

Com João Maria Gusmão e Pedro Paiva, é evidente que não estamos nos domínios das necessidades ordenadoras e niveladoras do mundo de herança modernista – filiados numa lógica de magia visual, João Maria Gusmão e Pedro Paiva dão antes forma a uma pulsão contra-iluminista em que a metafísica surge como âncora sem a qual o mundo se precipitaria num vazio de leveza.

Em firme equilíbrio sobre um complexo claro-escuro, na obra de João Maria Gusmão e Pedro Paiva aceitamos como verdade que um certo caos de sensibilidade primitiva ou mesmo arcaica faz parte da ordenação do mundo – e essa aceitação funciona como a zona de gravidade ou de contrapeso sem o qual a escalada da transparência ao extremo só poderia culminar no esvaziamento, na dissipação.

Luz e sombra, vida e morte, racional e irracional. A certa altura, foi assim, que todas as coisas se viram divididas, em oposição dicotómica. Houve um tempo, porém, em que se sabia e aceitava que toda a luz origina a sombra. Ou seja, que toda a luz é também sombra. Tal como toda a vida contém em si e origina morte. Nesse tempo, tinha-se como certo que o racional é apenas um dos dois eixos sobre os quais roda incessantemente a consciência, transportando consigo a memória irracional de todos os tempos e estares.

Aqui, o caos surge como princípio fundador de toda a ordem – o princípio essencial, também, à sua manutenção e à continuidade do universo. Aceitando isto, aceita-se que qualquer ordem é e será sempre imperfeita, por essência. Porque qualquer ordem estará em tensão permanente com o seu oposto, exigindo uma constante negociação com a profundidade do abismo.

Nas religiões mais antigas, as arenas onde essas negociações decorriam eram designadas terreiros. Neles, uma e outra vez, alguns homens – só alguns – ensaiavam – e ensaiam ainda hoje – idas e vindas entre mundos. O profano e o sagrado, o material e o metafísico. Como acontece em Papagaio, esses homens tornam-se conhecedores e portadores das metanarrativas prescientes mais misteriosas do universo. Cabe-lhes a revelação das coisas como são. São eles que observam e tentam dar sentido às imagens transmitidas pelos fluxos do indizível – as energias mais arcaicas que povoam Papagaio e que tantas vezes surgem no trabalho de João Maria Gusmão e Pedro Paiva. 
Arcaico é o que se relaciona com a arché, a origem. E a origem – isso sabemos – está presente em todos os momentos de todas as coisas, que são diferenciações de uma mesma coisa.

Em relação a uma das suas vias de trabalho, a que genericamente chamam Abissologia, João Maria Gusmão e Pedro Paiva falam numa “ciência transitória do indiscernível”. Referem-se, assim, à nossa constante vontade de entender o mundo nos seus detalhes mais misteriosos. Sabemos, porém, ao mesmo tempo – e é exactamente o que a sua obra nos diz... –, que nem tudo é discernível, nem tudo pode ser entendido. Faz parte do fascínio do mundo – e da arte.

O Ípsilon viajou a convite da Galeria Graça Brandão