O elogio das “esquerdas caviar”

Desde brancos abolicionistas, até burgueses que se juntaram à causa operária, são múltiplos os exemplos desses “dissidentes de classe” que nos permitiram constatar que o amor pelo próximo não é uma fantasia

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Rita Salomé Esteves

Se olharmos para a história da humanidade, conseguimos encontrar inúmeros exemplos de seres humanos de classes favorecidas que foram capazes de sair da sua redoma de origem e que lutaram pelos interesses dos desfavorecidos. Com essa atitude, ajudaram a mudanças de regime que muito contribuíram para que a humanidade tenha conseguido progredir em paz, justiça, liberdade e igualdade.

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Se olharmos para a história da humanidade, conseguimos encontrar inúmeros exemplos de seres humanos de classes favorecidas que foram capazes de sair da sua redoma de origem e que lutaram pelos interesses dos desfavorecidos. Com essa atitude, ajudaram a mudanças de regime que muito contribuíram para que a humanidade tenha conseguido progredir em paz, justiça, liberdade e igualdade.

Desde brancos abolicionistas, até burgueses que se juntaram à causa operária, passando por homens feministas ou aristocratas liberais, são múltiplos os exemplos desses “dissidentes de classe” que nos permitiram constatar que a empatia e o amor pelo próximo não são uma fantasia.

Para mim, todas essas pessoas são exemplares da “esquerda caviar”.

Sei bem que a expressão “esquerda caviar” é usada em tom pejorativo, querendo insinuar a incoerência das pessoas que se dizem de esquerda quando, no seu dia-a-dia, levam uma vida materialmente confortável. Mas essa crítica sempre me pareceu injusta e desprovida de lógica. Primeiro, porque ser de esquerda não significa defender a pobreza (sim, a Coreia do Norte não é um regime de esquerda mas uma monarquia absolutista). Ser de esquerda, basicamente, significa acreditar que os seres humanos são mais parecidos do que diferentes e que o sistema social deve redistribuir as sortes da vida para que não se gerem círculos viciosos de sorte ou azar. Nada disso é incompatível com o conforto material ou mesmo com a existência de luxos. Depois, porque o não se ser pobre ou oprimido mas lutar pela defesa dos interesses dos excluídos só pode ser elogiado (porque é um acto de altruísmo) ou, quanto muito, criticado como ingenuidade. Mas nunca depreciado moralmente.

Não tenho nada contra as pessoas que apenas defendem os seus interesses, desde que respeitem as leis vigentes e que ajam de acordo com um mínimo de princípios morais. Mas valorizo mais aquelas que vêem para além do seu umbigo e que são capazes de também defender interesses alheios (ter um bom emprego, um bom salário e gozar a vida e, ao mesmo tempo, defender que se paguem elevados impostos para permitir acorrer aos desempregados e aos necessitados parece-me muito mais moral do que ter as mesmas condições materiais e estar-se preocupado, apenas, em diminuir a factura contributiva e, eventualmente, despender uns trocos em caridade).

Moralmente duvidosa parece-me a posição da “direita pé rapado”, daquelas pessoas que, sendo desfavorecidas, se vendem aos interesses dos favorecidos para sobreviverem de migalhas (os negros esclavagistas, os pobres capatazes, as mulheres machistas ou todos os colaboracionistas desta vida são exemplos paradigmáticos).

Por tudo isto, penso que classificar alguém como sendo da “esquerda caviar” só pode ser entendido com um encómio. Mais do que isto, só as palavras de Sophia de Mello Breyner (por sinal uma aristocrata) que defendia (com a utopia própria dos poetas) que a sociedade ideal seria uma aristocracia para todos.