História de uma das leveduras do vinho começou na Patagónia

Equipa internacional liderada por portugueses identificou a origem de espécie de levedura importante na produção de bebidas alcoólicas. O seu ADN reflecte um processo de domesticação.

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A Saccharomyces uvarum é usada na produção de vinho Adriano Miranda (arquivo)

O iogurte, a cerveja ou vinho são substâncias produzidas graças à fermentação feita por bactérias ou leveduras. A partir de farinhas ou açúcares, estes microorganismos alimentam-se, produzindo substâncias como álcool ou ácido láctico. No caso do vinho, o processo industrial de fermentação alcoólica recorre normalmente à levedura Saccharomyces cerevisiae. Mas em climas mais frios, onde a fermentação é com temperaturas mais baixas, os produtores vinícolas usam a Saccharomyces uvarum.

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O iogurte, a cerveja ou vinho são substâncias produzidas graças à fermentação feita por bactérias ou leveduras. A partir de farinhas ou açúcares, estes microorganismos alimentam-se, produzindo substâncias como álcool ou ácido láctico. No caso do vinho, o processo industrial de fermentação alcoólica recorre normalmente à levedura Saccharomyces cerevisiae. Mas em climas mais frios, onde a fermentação é com temperaturas mais baixas, os produtores vinícolas usam a Saccharomyces uvarum.

Alguns vinhos do País Basco (Espanha), de Verona (Itália) ou da Borgonha (França) usam esta espécie de levedura. Assim como a cidra, uma bebida alcoólica produzida com sumo de maçã. Em Portugal, pensa-se que esta estirpe não é usada, preferindo-se a Saccharomyces cerevisiae.

Além de trabalharem melhor a temperaturas mais baixas, “há compostos aromáticos que as leveduras Saccharomyces uvarum produzem que são superiores aos da Saccharomyces cerevisiae”, explica ao PÚBLICO José Paulo Sampaio, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, que liderou a equipa com cientistas da Argentina, dos EUA e de França.

Mas ainda se sabe pouco sobre a origem e a evolução da Saccharomyces uvarum. “O nosso trabalho é procurar as estirpes selvagens para as comparar com as estirpes domésticas e perceber como ocorreu a domesticação”, diz o cientista.

A domesticação de animais ou de vegetais requer a observação e a escolha de seres vivos com certas características consideradas uma mais-valia. Apesar de as leveduras serem microscópicas, observadas só há alguns séculos, José Paulo Sampaio defende à mesma a existência de uma “domesticação”, já que o resultado da actividade das leveduras foi sendo avaliado pelo sabor das bebidas.

“A bebida tem um aspecto sensorial. Os nossos antepassados sabiam dizer: ‘Gosto desta bebida, não gosto daquela.’ Quando uma bebida funcionava, guardavam um bocadinho daquela bebida e usavam-no num novo lote”, diz o cientista.

A equipa fez amostragens de estirpes de Saccharomyces uvarum usadas na indústria na Europa, bem como de estirpes naturais presentes na Europa, na América do Norte e do Sul, na Ásia e na Oceânia. No hemisfério Norte, este fungo encontra-se associado a algumas espécies de carvalhos. No hemisfério Sul, aparece associado a espécies de Nothofagus, um género de árvores que nos climas temperados da Patagónia e da Oceânia ocupa os mesmos nichos ecológicos que os carvalhos no Norte.

O estudo mostrou a existência de uma grande diversidade genética nas estirpes da Patagónia. Esta diversidade foi decrescendo na América do Norte e na Europa. Através da comparação genética, a equipa concluiu que as estirpes que hoje são usadas na Europa vieram da América do Sul, via América do Norte. E as estirpes da Oceânia são o que resta de um habitat maior, quando a levedura existia no grande supercontinente Gonduana, que há dezenas de milhões de anos se foi partindo na América do Sul, África, Antárctica e Oceânia.

Não se sabe quando ou como é que a levedura chegou à América do Norte e depois daí até à Europa e à Ásia. Nada indica que o homem tenha tido um papel nesta migração. “Arriscar-me-ia a dizer que [estas migrações] nos antecederam e que as leveduras têm mecanismos próprios de dispersão que não conhecemos.”

Quando é que a Saccharomyces uvarum entrou na produção de vinho é outra incógnita. Segundo o cientista, as amostras mais antigas de Saccharomyces uvarum datam do final do século XIX.

Gene resistente aos sulfitos

Mas os efeitos desta utilização de séculos acabam por se revelar no ADN das leveduras pelas “introgressões genéticas”: genes provenientes de outras espécies de leveduras e que aparecem nas estirpes industriais de Saccharomyces uvarum, mas neste caso não se encontram nas da natureza. “Tudo começa com uma hibridação”, explica o cientista: uma célula de levedura de Saccharomyces uvarum cruzou-se ao acaso com uma célula de Saccharomyces eubayanus, usada na produção da cerveja.

O resultado deste cruzamento é uma levedura híbrida, com metade do genoma de cada espécie progenitora. Mas se a nova levedura continuar a cruzar-se só com a Saccharomyces uvarum, o genoma da Saccharomyces eubayanus fica mais diluído até quase desaparecer. No entanto, alguns genes da Saccharomyces eubayanus podem ser escolhidos e ficar para sempre nas estirpes de Saccharomyces uvarum, como é o caso do gene FZF1. “Este gene é central em muitos mecanismos de resistência aos sulfitos e foi sistematicamente submetido à domesticação.”

Os sulfitos são usados na desinfecção e como antioxidantes do vinho. As espécies do género Saccharomyces resistem naturalmente estes químicos e, tanto a Saccharomyces eubayanus como a Saccharomyces uvarum, têm o gene FZF1. Só que a variante deste gene da Saccharomyces eubayanus é melhor, por isso ele “saltou” desta espécie para a Saccharomyces uvarum.

“Nas estirpes de Saccharomyces uvarum domesticadas encontramos sistematicamente introgressões do FZF1 da variante da levedura Saccharomyces eubayanus.”

Ao longo de séculos, outros genes foram seleccionados nestas estirpes industriais. Segundo o cientista, conhecer estas diferenças entre as estirpes naturais e as industriais pode “permitir fazer novos produtos interessantes para os consumidores”.

Os cientistas dedicam-se agora à história da Saccharomyces cerevisiae, usadas nos vinhos portugueses.