A madrasta de todas as Copas

O ano era 1970 e eu mal tinha feito quatro anos. Na televisão, a primeira Copa do Mundo da qual tenho memória. Era também a primeira a ser transmitida ao vivo e a cores para o Brasil

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Nacho Doce/Reuters

O meu Zeppelin particular era verde e amarelo. Tinha a dimensão do Godzilla e, mais leve que o ar, voava sobre a minha cabeça, pequena e cabeluda como convém ser a de um infante.

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O meu Zeppelin particular era verde e amarelo. Tinha a dimensão do Godzilla e, mais leve que o ar, voava sobre a minha cabeça, pequena e cabeluda como convém ser a de um infante.

O ano era 1970 e eu mal tinha feito quatro anos. Na televisão, a primeira Copa do Mundo da qual tenho memória. Era também a primeira a ser transmitida ao vivo e a cores para o Brasil. Não na minha casa, claro. Lá era tudo a preto e branco. A TV e essas minhas reminicências. Na ruas, bandeirolas, foguetório, bailaricos, Brasil tri-campeão. Era doce a copa do mundo da minha infância. Era feita de algodão doce, Fanta laranja, cromos grudados num livro com uma cola caseira a base de farinha de trigo, água e açúcar queimado.

44 anos passados, as ruas das capitais brasileiras estão mais tristes e mais cinzas do que o costume. Decorar o espaço público com as cores da seleção canarinha tornou-se algo temerário ou de mau gosto. Nos bairros ricos seria sinónimo de alienação. Nos pobres um convite a depredação.

Não importa que a maioria dos brasileiros, segundo pesquisas, consiga separar os ônus e os bônus do Mundial. Uma voluntariosa e barulhenta minoria (vale lembrar que tudo no Brasil é imenso; se 30% não aprovam a Copa, estamos a falar de algo entre 50 a 60 milhões de pessoas) tem o poder (e o prazer?) de destruir qualquer sentido de comemoração.

Como acabo de fazer uma “tour” por cinco estados brasileiros para promover o lançamento dos meus livros lá pude ver “in loco” muita apatia e uma revolta padrão FIFA. Nada no país funciona direito. O estranho é que, na verdade, nada no Brasil nunca funcionou assim tão bem. Não foi o Mundial que trouxe problemas novos. Ele apenas expôs problemas antigos.

O cantor Ney Matogrosso deu uma entrevista à RTP e lá pelo meio protestou contra os gastos da Copa. Estava no direito dele. Ser contra, ser a favor, não estar nem aí são apenas três das muitas possibilidade da democracia. Mas nem o bom do Ney deveria estar a espera de virar “trending topic” nas redes sociais brasileiras (apoiado por muitos, execrado por outros tantos). Há patrulhas ideológicas para todos os gostos. As que mais se destacam são as alimentadas pelo aparelho governista. Os xiitas do Irão parecem meninos do coro comparado aos mais ufanos petistas.

Outro dia, um jornalista, acho que holandês, declarou que iria abdicar de cobrir o Mundial num acto de protesto contra os grandes media que não estariam a dar o devido destaque internacional a pobreza que viceja no Brasil. Demagogia pura. Se está tão preocupado com o assunto que vá então fazer jornalismo, descobrir e denunciar mazelas concretas. O que não faltará é assunto.

Tudo isso para dizer que entristece-me o actual momento do Brasil. Há mais de 20 anos emigrei de lá por absoluta falta de esperança. Depois, cheguei a acreditar que aquele país, enfim, tinha tomado um rumo. Ledo engano. Como os portugueses, passamos de bestiais a bestas (e o contrário) ciclicamente numa história sem pé, cabeça, princípio ou fim. Agora a bola da vez é a Copa. Depois a desculpa será outra. Enquanto isso, vou ver os jogos a torcer pelas seleções de Portugal e do Brasil a imaginar uma final onde Zeppelins verdes, vermelhos e amarelos sobrevoem a minha cabeça. Contra a realidade nada melhor do que um sonho.