Podemos agora ser um país normal?

Com a saída da troika, Portugal inicia uma nova fase da sua vida colectiva. Que mito nos será útil agora? Das conversas com sete pensadores portugueses recolhemos algumas ideias: os capitães de Abril são os heróis do regime, Portugal não é um país do Sul da Europa, a Educação é o nosso desígnio, a Razão é o novo mito.

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O que Portugal quer ser? José Manuel Sobral responde logo: “Portugal não quer.” Comecemos por aí. Portugal não quer ser nada, porque um país não tem querer. “Os estados-nações não são pessoas”, nem protagonistas de uma vontade comum. “Aquilo a que podemos chamar ‘uma vontade portuguesa’ é o que resulta da expressão das vontades dos indivíduos que constituem Portugal. E esses são extraordinariamente diversos.”

Quer dizer, é melhor falar, não de Portugal, mas dos portugueses, esses seres concretos, muito diferentes uns dos outros. Um pouco de humildade aprendida com os cientistas sociais não nos fará mal.

José Manuel Sobral, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com doutoramento em Antropologia, licenciatura em História, e autoria de importantes estudos sobre a identidade nacional, diz-se “radicalmente contra qualquer tentativa de essencializar culturalmente uma identidade portuguesa”.

Os perigos são óbvios. Vão desde o estereótipo de que os portugueses são preguiçosos, até à crença de sermos o povo eleito de Deus. Ou a tendência para criarmos imagens irrealistas de nós próprios — os mitos de grandeza extrema ou de insignificância igualmente extrema. Mas, cuidado, lá estamos de novo a cair na tentação. Não há provas de que tenhamos essas tendências. Mito de grandeza? Onde estão os estudos de campo que o demonstrem? Falta de pensamento científico: eis outro dos nossos problemas.

Apesar de tudo, em certos momentos da História portuguesa houve uma vontade colectiva. Parece que se pode dizer isso. José Manuel Sobral não coloca objecções. Houve. Em 1385, em 1640, em 1974. Não era uma vontade unânime. Sempre havia uns que não concordavam. Ou imagina-se que houvesse, porque essas vozes, de um modo geral, não deixaram registos escritos.

Mas existiu um ímpeto popular numa determinada direcção, não há dúvida, ainda que não se manifestasse em nome de uma identidade portuguesa como tal reconhecida, mas de algum interesse ou personalidade, normalmente o rei.

A “arraia miúda” de Fernão Lopes não fazia mais do que apoiar o Mestre de Aviz e convém não esquecer que o nosso primeiro grande repórter era pago pelo rei, D. João I.

O certo é que a revolução se fez, se venceram os castelhanos em Aljubarrota, se reconstituiu todo o mito nacional e o país renasceu, nessa ocasião e noutras, em 900 anos de existência, em convulsões de mudança de ciclo sem as quais Portugal teria acabado. Foi preciso morrer e ressuscitar umas tantas vezes.

Em cada uma delas reescreveu-se a História, retocou-se a auto-imagem, reinventaram-se desígnios e heróis. E tudo isso se fez porque não havia alternativa. Era avançar ou perecer. E para avançar era preciso um mito. Apetrecharmo-nos com ele, acreditarmos nele.

Foi Eduardo Lourenço que escreveu que “nenhum povo, e mais a mais um povo de tantos séculos de vida comum e tão prodigioso destino, pode viver sem uma imagem ideal de si próprio”. Acrescentou a seguir, em Labirinto da Saudade: “Mas nós temos vivido sobretudo em função de uma imagem irrealista.” Talvez uma de outro tipo não fosse possível, dadas as condições. Fosse qual fosse a dose de irrealismo, sem uma idealização não teríamos sobrevivido. “Nenhum povo pode viver em harmonia consigo mesmo sem uma imagem positiva de si”, escreveu Lourenço.

Em certos momentos, essa imagem teve de ser fabricada. Factos históricos chegaram a ser inventados, como foi o caso das Cortes de Lamego, que teriam, no século XII, definido as regras sucessórias da monarquia, e serviram em 1640 para legitimar a restauração da independência. Alexandre Herculano descobriu que essas cortes nunca se reuniram.

Impedidos de ignorar o facto de elas terem, mesmo assim, produzido leis, os historiadores chamam-lhes as “Cortes míticas de Lamego”.

Semelhante aldrabice não seria possível hoje. Nem sequer uma reconstituição do mito português como foi elaborada em 1880 por um grupo de intelectuais encabeçado por Teófilo Braga, nas comemorações do terceiro centenário da morte de Camões. A estátua no centro da Praça Camões, em Lisboa, foi construída por essa altura.

“Nessa época em que Portugal era um poder secundário, ameaçado nas suas possessões ultramarinas, houve um investimento fortíssimo nessa narrativa e na memória do século XVI”, lembra José Manuel Sobral. “É a altura em que se prolongam os Jerónimos, se acrescenta a Igreja de Santa Maria de Belém, se constroem os túmulos de Camões e Vasco da Gama e se delineia aquele espaço junto ao rio, com valor simbólico porque foi dali que partiram as principais expedições seiscentistas.”

Os intelectuais de hoje não poderiam colaborar em tal coisa, explica Sobral. “Há uma diferença muito grande entre os intelectuais do tempo do Teófilo Braga e os intelectuais portugueses do tempo actual. Para Teófilo, aquilo era a verdade. Para a maioria dos intelectuais de hoje, aquilo é uma construção da doutrina nacionalista. É muito diferente.”

O racionalismo científico impede-os de colaborar activa e conscientemente na construção de mitos. O seu papel é desmitificar, não mitificar. São os inconvenientes do progresso.

Tal como se perdeu a faculdade de produzir moeda, nos estados que aderiram ao euro, também o poder de fabricar mitos nacionais se encontra muito limitado. “Na era da análise das ideologias, do triunfo da desconstrução, isso seria ter uma consciência quase goebbelsiana, ou mussoliniana, de que estaríamos a fazer propaganda.”

No entanto, a adesão de Portugal à CEE não deixou de ser acompanhada por uma monumental encenação simbólica. A Expo-98, tal como o Centro Cultural de Belém, exprimiu todo um novo cocktail de símbolos. “Na Expo-98, houve uma articulação entre o Império, como elemento de glória da História portuguesa, e a narrativa europeia”, explicou Sobral. “Por isso é que houve essa ligação espacial tão forte com o rio Tejo, a Europa e a modernidade. A arquitectura escolhida não foi um qualquer neomanuelino, ou neojoanino, tão ao gosto do Estado Novo. Foi uma arquitectura cosmopolita e modernista, como a do Pavilhão de Portugal ou a da Estação do Calatrava, que poderia estar ali ou em qualquer outro lugar do mundo. Não reivindica qualquer especificidade portuguesa. Ou a da nova ponte, que é um expoente de arquitectura cosmopolita, mas se chama Vasco da Gama.”

A mensagem era clara: a grandeza dos Descobrimentos mantêmo-la agora com a nossa integração europeia. “O Centro Cultural de Belém, que também está associado à União Europeia, não celebra, como no tempo de António Ferro, qualquer arte portuguesa, ou supostamente portuguesa. Foi feito junto aos Jerónimos, mas não é neomanuelino. A mensagem que se pretendeu emitir era a de que Portugal entrava numa nova era de prosperidade e que existiam ligações entre essa era e as eras de grandeza do passado. Para significar que Portugal continuava grande, embora não imperial, mas pós-colonial, anti-racista, europeu. Era um novo ponto alto da identidade portuguesa.”

"A verdadeira descolonização chegou agora, com a troika"
Quinze anos volvidos, sente-se que todo esse mito se esvaziou. A Europa foi uma decepção. Talvez porque a esperança tivesse sido desmesurada? José Manuel Sobral acha que não. “As pessoas acreditaram. A Europa que foi proclamada foi a do crescimento e da abastança de que gozam as populações do centro europeu. Não foi dito que teríamos o nível de vida de uma aldeia da Sicília. Era uma Europa de igualdade de oportunidades, e uma população pobre como a portuguesa é claro que acolheu isso. Mais do que isso: uma população maciçamente representada na Europa pelos seus familiares pensou que iríamos deixar de ser vítimas do racismo dos países do Centro. A elite política vendeu essa ideia, que foi sufragada pela população.” Quando rebentou a crise, os países mais frágeis “foram logo essencializados pelos outros, repetindo os velhos estereótipos do Norte sobre o Sul, como sendo preguiçosos, trabalhando menos, com demasiados feriados, etc”.

Esta é uma perspectiva. José Adelino Maltez tem outra: a Europa foi um mito. Ou melhor, o sucedâneo de um outro, mais consistente e duradouro: o do Império. “O problema de Portugal é que não foi fundado por D. Afonso Henriques”, disse o catedrático de Ciências Políticas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa. “Refundámo-lo em 1385 — até pusemos na rua o rei formalmente legítimo e inventámos o Messias de Lisboa. Reinventámos o mito.” Em 1640, em 1808, depois das Invasões Francesas, em 1830, em 1910, em 1926, em 1933, em 1974 reinventámos o mito, disse Maltez. Da última vez, sem grande eficácia.

“Nós não tivemos o fim do Império em 1974. Pusemos cá meio milhão de tipos, mas fomos a correr substituir o Império pelo mito da integração europeia. A verdadeira descolonização chegou agora, com a troika.”

Teremos então andado apenas, nas últimas três décadas, a adiar o problema. Teremos agora de o enfrentar. Vamos finalmente olhar para nós próprios como de facto somos, ou inventaremos outra miragem, atrás da qual correremos mais uns anos? E eis-nos chegados à questão central de toda a mitologia portuguesa: o sebastianismo. Existe realmente? Sob que formas?

Miguel Real lançou no ano passado um livro sobre o tema: Nova Teoria do Sebastianismo, pela editora D. Quixote. Não é um manifesto sebastianista, mas um estudo onde o grande mito cultural português é colocado em perspectiva. Para Miguel Real, o sebastianismo está vivo e é fruto da frustração. “É uma teoria falsa, racionalmente falsa. D. Sebastião morreu. Mas é sentimentalmente verdadeira”, disse o escritor, ensaísta e filósofo.

“É o sentimento mais irrealista dos portugueses”, disse Eduardo Lourenço. “De um irrealismo prodigioso. Mas coincide com o seu ser profundo.”

Manifesta-se de muitas maneiras. A esperança num salvador é uma delas. Mas também a confiança num partido político, num padrinho, no Estado, nos milagres de Fátima, na emigração. Todo e qualquer factor exterior que venha resolver os nossos problemas, uma vez que nós próprios não temos capacidade para isso. “O sebastianismo está no coração de cada um de nós. Bebemo-lo no leite da nossa mãe. Na escola primária, nas atitudes dos nossos pais. Aceitamos que, mais do que o nosso destino estar nas nossas mãos, como dizia o marxismo, está nas mãos de outrem.”

É assim desde Alcácer-Quibir e o motivo nada tem de irreal: desde o século XVI, não é de facto possível, para a maioria dos portugueses, fazer nada. Não há mobilidade social. Quem nasceu pobre morrerá pobre. A menos que alguém nos dê uma mão. Pode ser o padre da aldeia, o patrão, um familiar rico. É uma sociedade empedernida, injusta, claustrofóbica. As elites autoperpetuam-se nas suas posições de privilégio. E governam para si próprias. Não tem sido assim nos países europeus mais desenvolvidos. “A Inglaterra tem uma mobilidade social desde o século XVIII. A França tem desde sempre. Pelo menos desde 1789. Nesses países, ainda que talvez com obstáculos, há a esperança de que o ferreiro não seja filho e neto de ferreiro.”

As raízes históricas desta diferença não são fáceis de identificar. Real menciona a Inquisição, o bloqueio religioso, a ausência de revolução industrial e de revolução científica, a pura escassez de recursos. Tudo acumulado na decadência que se seguiu à derrota de D. Sebastião em Marrocos e à perda da independência, em 1580. A época de ouro nunca mais se repetiu e agarrámo-nos ao mito do Desejado ou do Encoberto.

“O país é profundamente desequilibrado”, sem uma classe média duradoura, e oscila entre quatro complexos: o de Viriato, segundo o qual somos pobres e simples, mas puros e virtuosos; o do padre António Vieira, que nos coloca como nação superior, com um destino glorioso no mundo, como criadores do Quinto Império de Cristo; o complexo do Marquês de Pombal, segundo o qual somos uma nação inferior no contexto europeu, por culpa da Igreja Católica, da incultura, da mentalidade atrasada; e o complexo canibalista, que leva a que cada corrente política, ideológica ou cultural só fique satisfeita com a destruição completa dos adversários. Cada um aspira à hegemonia, não tolera a coexistência. Isto verifica-se também ao nível individual, com o clima de agressão e hostilidade a atingir os limites do insuportável, em épocas de maior desnorteio, como é a nossa.

“O canibalismo corresponde a uma fase decadente. É o momento histórico em que os metis perdem a sua força. Aconteceu no final da monarquia, no final da república, no marcelismo. Hoje é o canibalismo total. Quem estiver por cima faz os negócios que quer. A sociedade está abafada, esmagada.”

Por este motivo, o sebastianismo, na opinião de Miguel Real, é um mito e um fenómeno mental popular. “As elites sempre troçaram do sebastianismo.” É verdade que foram intelectuais a elaborar teoricamente o mito sebastianista. Vieira, Fernando Pessoa, Agostinho da Silva. Mas fizeram-no interpretando o sentimento do povo, não das elites. Porque se alguma coisa caracterizou os grandes intelectuais portugueses ao longo da História foi o seu afastamento em relação ao poder. Emigraram, isolaram-se no campo, suicidaram-se.

O sebastianismo, na concepção de Miguel Real, tem uma função dupla: por um lado serve de consolo para o fracasso e a inacção. Nesse sentido, é um factor paralisante, conservador, servilista. Por outro lado, é instigador de esperança. Faz sonhar e acreditar que a mudança é possível, ainda que sempre dependente de um qualquer factor externo.

O único grande acto emancipador possível tem sido a emigração. Desde sempre. Os próprios Descobrimentos fazem parte do fenómeno. Para Miguel Real, o efeito principal dessa constante histórica nacional é muito perverso: os mais corajosos, os mais capazes, partem.

Repete uma história que ouviu a Agostinho da Silva: “Numa aldeia da serra da Malcata havia nove famílias. Quando sobreveio aquela grande fome da década de 60, cinco famílias venderam tudo o que tinham às outras e, sem falar francês, submetendo-se a trabalhos duríssimos na construção civil, deram o salto clandestino e partiram para França. Sofreram, conseguiram mandar os filhos para a universidade e, quando voltaram, já com o seu carro, constataram que as quatro famílias que ficaram tinham tomado o poder na aldeia. Um era o regedor, outro o sacristão, outro dono do minimercado, outro empreiteiro. As quatro famílias mais passivas dominavam o poder político, religioso, económico. Isto é a elite portuguesa. O retrato de Portugal. Quem é que vai hoje para fora? Há uns 600 ou 700 bolseiros desempregados. Desses, uns 400 já começaram a partir. Quem fica cá? Os que têm medo, os mais passivos. E são esses que vão dominar institucionalmente a investigação em Portugal.”

Esta é uma explicação possível para a incompetência das elites e a sua estratégia de se fecharem aos mais capazes e inovadores. A prova seria o facto de vermos os mesmos apelidos de família nas elites políticas, sociais e culturais, ao longo de gerações.

É a visão de Miguel Real. José Manuel Sobral discorda totalmente. Para ele, o sebastianismo é precisamente uma construção das elites. “O mito sebastianista não tem importância social nenhuma em Portugal. A esmagadora maioria dos portugueses nem sabe o que é o sebastianismo”, que aliás nada tem de original. “Na Alemanha, acreditou-se que o imperador Frederico Barba Ruiva, adormecido numa montanha, voltaria um dia. Houve o mesmo tipo de crença em relação a Frederico II.” Para nem falar na lenda do Rei Artur, na ilha da Avalon, do ciclo bretão.

Como traço de personalidade dos portugueses, o sebastianismo não existe. A História está cheia de provas da capacidade de iniciativa dos portugueses. “Não há qualquer problema de mentalidade.”

O que há é um facto que nem sempre se teve a coragem de olhar de frente: o país é pobre. Em recursos e em nível de instrução. Tudo tem o seu contexto e a História é incapaz de reconstituir todos os elos de causalidade. Mas há factos iniludíveis: “Portugal e os países do Sul da Europa não tinham, de um modo geral, as condições para fazer uma revolução agrícola. Grande parte do país é árido. O que produz melhor são as coisas tipicamente mediterrânicas, de solos pobres: vinho e azeite”, explicou Sobral. “Em segundo lugar, por causa das clivagens de natureza religiosa, este foi um país onde a maioria da população foi analfabeta até bem tarde no século XX.”

Devido a estes dois factores, e também por causa da carência de matérias-primas como o carvão e o ferro, não ocorreu em Portugal uma Revolução Industrial, como a que lançou a Inglaterra ou a França no trilho do desenvolvimento.

Sempre estivemos em desvantagem, acima de tudo devido à inferioridade em recursos naturais. Já o factor humano deve a sua insuficiência às contingências religiosas. “O catolicismo assentava na existência de um corpo de clérigos que interpretavam um conjunto de ensinamentos sagrados em latim, para uma população que não lia latim. Os países protestantes encorajaram a leitura por cada um da Bíblia, que traduziram para as línguas vernáculas. Por essa razão, havia, há 300 anos, países na Europa com quase 100% de alfabetizados. Aí tem a diferença. Portugal não teve o desenvolvimento que tiveram as nações protestantes, que também tiveram gente muito pobre, mas alfabetizada.”

Mais tarde, esta diferença seria decisiva. “A um país como Portugal, o que era necessário era ter tido uma instrução massificada. Isso foi a grande aposta republicana, que nunca levaram adiante. Tiveram pouco tempo e poucos recursos para isso.”

O que urge fazer hoje não é portanto reabilitar nenhuma espécie de sebastianismo, mito do Quinto Império ou Reino do Espírito Santo. Os problemas, acredita José Manuel Sobral, têm de ser resolvidos por meios políticos e pelos movimentos sociais. Também não serão os mitos que estão a ser promovidos pelas elites governativas que nos irão salvar, como o de que estamos condenados a ser um país dependente, ou o mito do empreendedorismo. Este destina-se a transferir a responsabilidade da crise para a população, que sofreria de uma espécie de doença anémica da iniciativa, ilibando dessa responsabilidade os poderes institucionais políticos e financeiros, quer em Portugal, quer na Europa.

"Somos porque queremos"
Miguel Real critica os cientistas modernos, demasiado positivistas, que desvalorizam os mitos como realidades históricas e culturais. E o mesmo parece pensar Guilherme d’Oliveira Martins, ex-ministro da Educação e das Finanças, actual presidente do Centro Nacional de Cultura e do Tribunal de Contas, e autor, entre outros do género, de um livro intitulado Portugal, Identidade e Diferença.

A identidade portuguesa assenta em vários mitos fundadores, o primeiro dos quais é o próprio mito de Ourique, segundo o qual Cristo teria aparecido a Afonso Henriques antes da batalha contra os mouros, em 1139, após a qual se autoproclamou Rei de Portugal.

“Ourique é o mito que está na nossa bandeira. São as quinas.” E que garante a continuidade da nacionalidade, desde o século XII até hoje, tal como explicou Alexandre Herculano. “Somos porque queremos, diz ele. Seremos enquanto quisermos. Esta vontade é importante. Herculano reporta-a aos alvores da nacionalidade.”

O segundo mito da nacionalidade, de acordo com Guilherme d’Oliveira Martins, é o de Inês de Castro. “É um mito de amor, em que se transpõe para aqui tudo o que encontramos na tradição europeia, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta.” Traduz a importância dos afectos. “Eu diria que a cultura portuguesa, atlântica, se centra em duas palavras: o conceito de ‘saudade’, que significa lembrança e desejo (e é muito importante a junção destes dois elementos), e a palavra de crioulo cabo-verdiano ‘morabeza’, que significa hospitalidade, capacidade de recebermos os outros.”

O terceiro mito, o sebastianista, integrando o do Desejado e do Quinto Império, tal como foi construído pelo padre António Vieira, deve ser interpretado de uma forma crítica. “Agora que já temos traduzido o texto integral da Chave dos Profetas, vemos que a ideia do Quinto Império já não é a de um império português, mas universal. Não é para o rei nem para o povo eleito: é um humanismo universalista, que vamos encontrar, já no século XX, nas obras de Jaime Cortesão e de Agostinho da Silva.”

É com a ajuda dessa visão de Vieira, além das dos três poetas identificados por Eduardo Lourenço como referências da cultura portuguesa — Camões, Antero de Quental e Fernando Pessoa — que podemos definir uma orientação para o futuro. Lourenço “insere Pessoa, e esse elemento heterogéneo, manifestado nos heterónimos, na leitura de uma identidade, que oscila entre o excesso de identidade e simultaneamente a aceitação da imperfeição. A maravilhosa imperfeição de que ele fala também. A necessidade de compreendermos que o futuro terá sempre de ser construído a partir da aceitação das limitações. A ideia de Lourenço de que não somos nem melhores nem piores do que os outros”.

Para Guilherme d’Oliveira Martins, uma interpretação crítica dos mitos deve traduzir-se na recusa do fatalismo e na afirmação de uma vontade. Em suma: é preciso querer continuar a existir, e para isso alguns elementos míticos têm de ser abandonados. “É a diferença entre a decadência e a emancipação. Decadência é viver os mitos como realidades estáticas e passadas. Emancipação é a procura de novos factores mobilizadores, factores de desenvolvimento.” Essa procura pode alimentar-se na “leitura crítica dos mitos”, num exercício correcto da memória, que “envolve sempre dois lados: a capacidade de lembrar e a capacidade de esquecer. A memória que não tem capacidade de esquecer chama-se ressentimento”.

Segundo Martins, uma interpretação adequada do mito do Quinto Império é fazer uma aposta na Educação. E o contributo do mito de Pedro e Inês é a ideia da abertura ao Outro. “O nosso debate deve ser aberto e cosmopolita. Uma das características do Portugal moderno deve ser a valorização da Ciência. Para sermos fiéis a figuras como Pedro Nunes, Garcia de Orta, D. João de Castro, que eram homens de Ciência. Devemos apostar no triângulo composto por Educação, Ciência, Cultura. A Noruega era o país mais pobre da Europa no início do século XIX. Tornou-se um dos países mais ricos apenas no momento em que se tornou o primeiro país da Europa a abolir o analfabetismo.”

O contacto com outras sociedades, promovendo diálogos no mundo, deve ser outra das apostas de Portugal no futuro. “É fundamental essa abertura. A plataforma continental, por exemplo. Tem potencialidades, mas não a podemos fazer sozinhos. É algo que corresponde a uma responsabilidade extraordinária. A Ciência não se faz só, mas em cooperação de várias universidades e países.” É esse o significado de um Quinto Império da Ciência e da Cultura. E também o culto do trabalho, da disciplina, do rigor. “Não posso deixar de o dizer, como presidente do Tribunal de Contas. Temos de deixar de ser tão imediatistas. Vejo com preocupação que os primeiros sinais de recuperação económica geraram logo uma euforia. Isso é negativo. Não podemos correr o risco de pôr em causa um trabalho que tem de ser feito a prazo, com disciplina e método. Foi o que fez o Infante D. Henrique. Definiu objectivos, mobilizou recursos. Orientação e organização. D. João II também.”

Miguel Real também vê o Quinto Império como um ideal com muita legitimidade e pouca transcendência. “É um projecto não muito diferente do que formularíamos hoje. Pão sobre a mesa, escola para os filhos, hospitais para os velhos, uma tumba para morrer. É o que diz o Padre António Vieira, mas ainda não se conseguiu, até hoje. O Quinto Império de Vieira é Abastança (diríamos hoje prosperidade), Instrução, Piedade (diríamos hoje solidariedade). O Quinto Império de Pessoa é isto também. E a Terceira Idade do Espírito Santo, de Agostinho da Silva, é, mais uma vez, Abastança, Igualdade, Justiça. É um programa político — a paz, o pão, habitação, saúde, educação.”

Um país normal
O sebastianismo consiste apenas em querer isto. Um país normal. Para o conseguir, os governantes deveriam concentrar-se num objectivo, em função do qual toda as políticas deveriam ser pensadas a partir de agora: a criação de uma classe média. “Quando houver uma classe média em Portugal, será a morte do sebastianismo.” O novo mito será então o da racionalidade. A crença de que a Razão nos poderá levar ao progresso, esse sim, será um mito útil para o futuro.

Ter “um país normal” é o sonho de todos os portugueses, também na opinião de José Gil, filósofo, autor do famoso ensaio Portugal Hoje — O Medo de Existir e, mais recentemente, dos livros O Desnorte (Relógio d’Água, 2009) e Pulsações (da mesma editora, 2014).

“O que temos como sensação actual é que não somos um Estado normal. Tudo o que vivemos são disfunções. E isto já é muito antigo. O embrião das disfunções já vem do salazarismo. O próprio Salazar não era chefe. Estava abaixo do Carmona e no entanto estava acima de todos.”

Hoje, caminhamos para uma espécie de abismo, tão terrível, que não pode ser pensado. Por isso os portugueses não estão preparados para agir. Vivem numa espécie de torpor de negação, numa hipnose. “Olhamos para nós e vemos que a demografia está a cair, que não haverá futuro. Mas essa ideia afasta-se. Não se pode viver isso. Não se pode viver com uma morte anunciada. Depois, há o empobrecimento. Não acreditamos que o empobrecimento vá continuar nos próximos 20 anos. A nossa juventude está a ir-se embora, estamos a perder os melhores valores, a Educação está de rastos, a Economia é o horror. Vemos que nos estamos a transformar numa monstruosidade. Mas nós não acreditamos nisto. Acreditamos que vamos ser um país normal.”

Culpamo-nos ligeiramente a nós próprios pelo que acontece, e “essa atitude basta-nos. Não vamos fazer nada. Não vamos usar essa culpa para nos repensarmos, para nos transformarmos realmente”. Haverá vários motivos, mas um é certamente o medo. “Nós vimos de muito longe. Eu conheci a Praça da Figueira quando era um local de freaks. De pobres, de amputados, de mendigos… Parecia a Idade Média. Agora ganhámos umas casas, uns móveis, não queremos voltar a esse passado. Não podemos voltar.”

Será esse medo que nos mantém enclausurados no “silêncio invisível, o silêncio inconsciente sobre o qual está fundada a nossa democracia”. Para José Gil, “o espaço público está fechado e nunca se abriu. Estamos inibidos. Há coisas que não são ditas e não podem ser ditas. Se o fossem, o Estado desmoronava-se. Há uma promiscuidade entre a economia e a política, o Governo e a justiça, os media e os interesses económicos, que faz com que o espaço público se feche. Nós estamos inundados de silêncio. Vivemos numa democracia limitada”.

José Adelino Maltez vê os limites da nossa democracia no modo de funcionamemto dos partidos. “O Passos Coelho foi eleito por 15 mil pessoas e o António José Seguro por 24 mil. Isto são os partidos sem povo.” Devia haver eleições primárias, para que as pessoas participassem na escolha dos candidatos.

De resto, o regime actual é o melhor que alguma vez tivemos. Admitir isso faz parte da reinvenção do mito que é necessário fazer. E algumas “pequenas” mudanças no discurso, se queremos inflectir a direcção para onde a União Europeia nos está a arrastar. Por exemplo: quem disse que Portugal é um país do Sul da Europa?

“Evidentemente que não é. Basta mudarmos um pouco a posição do mapa, para percebermos isso. Veja-se o mapa do Google em esfera: o sol põe-se ao mesmo tempo aqui e em Londres. Portugal é uma ilha, sempre foi. Os nossos relacionamentos fazem-se por mar, desde a Idade Média. É mais perto ir a Londres do que a Paris. Estamos próximos do Reino Unido, da Irlanda, da Holanda. Pertencemos ao eixo atlântico da Europa.”

Uma diplomacia correcta seria portanto aproximarmo-nos mais da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, “para fugir ao controlo da Alemanha. Uma das formas de ter poder na Europa é dizer isto”. Outra é reforçarmos o nosso poder militar, como forma de não estarmos totalmente dependentes dos mercados e do poder económico. “A crise na Ucrânia veio lembrar uma coisa muito importante. Os analistas económicos nem sabem fazer essas contas, mas um dia de guerra na Europa fica mais caro do que as crises portuguesa e grega.”

Paulo Borges, filósofo e activista, líder do Partido pelos Animais e a Natureza (PAN), publicou em 2013, na Temas & Debates, um livro sobre a oportunidade que se oferece neste momento a Portugal de afirmar o seu papel no mundo. O último verso da Mensagem, de Fernando Pessoa, deu o título à obra: É a Hora!

“A minha interpretação da Mensagem é que há um sebastianismo activo. Há que descobrir o D. Sebastião que está dentro de cada um de nós. E a partir daí podemos reconstruir o país com base no autoconhecimento, na descoberta do que cada indivíduo realmente é. E podíamos pensar num país que não estivesse dominado por esta lógica do que eu penso ser uma fase terminal do capitalismo, esta fase produtivista-consumista, mas que tivesse como finalidade aquilo a que todos os seres humanos aspiram, que é serem felizes.”

Paulo Borges defende uma ideologia ambientalista, de sustentabilidade, energias renováveis, respeito pela natureza e os animais. Defende isto como um projecto para a humanidade, mas considera que Portugal pode desempenhar um papel especial neste processo de mudança de paradigma civilizacional.

“Portugal tem muitos recursos, em termos de energia maremotriz e energia eólica, e devíamos pensar em ter um país ético e sustentável, que vivesse fundamentalmente de energias limpas renováveis, que prescindisse dos combustíveis fósseis. Um país o mais possível sustentável em termos alimentares, que pratique uma agricultura biológica. E que esteja atento às recomendações da ONU quanto à necessidade urgente de reduzir o consumo de carne.”

Além das condições naturais, Portugal possui também uma tradição cultural propícia a um estilo de vida sustentável. O franciscanismo tem fortes raízes na religiosidade popular, bem como os cultos antigos da Natureza. “Uma nação não sobrevive sem um desígnio colectivo. Portugal teve-o até agora. Primeiro as Descobertas, depois o Oriente, África, o Brasil. Agora não temos. Já vimos que a Europa é madrasta.”

Ser a vanguarda mundial da mudança de civilização bem poderia ser o nosso desígnio, já que vivemos na frustração própria de quem foi corrompido pelos paradigmas dos países do Centro e Norte da Europa. Várias experiências estão a ser feitas. Um grupo de alemães que criou uma comunidade perto de Odemira “tem uma ideia messiânica para Portugal, que pode ser um mediador do Quinto Império. Portugal tem a vocação de ser uma alternativa em termos mundiais, em termos de um novo tipo de vida, sustentável, ecológica, respeitadora do ambiente e dos seres vivos”.

É claro que isso implicaria “reaprender uma vida mais simples”. Perceber que “o verdadeiro crescimento é o crescimento interior, não o económico. E os portugueses, até por via das circunstâncias, estão em condições de poderem compreender que se pode viver melhor com menos”. Para Borges, Portugal é, culturalmente, um país do Sul da Europa. “São povos avessos à ideologia do trabalho. Estão mais perto das culturas não europeias que privilegiam mais o lazer, mais o lúdico do que o trabalho, a vida como um jogo, o deleite, a busca da fruição, ter tempo, estar com os amigos, fazer o que queremos, olhar o mundo, não fazer nada. Acho que são valores civilizacionais que há que redescobrir.”

Paulo Borges, que tem hoje 54 anos, despertou para a consciência social e cívica com a Revolução do 25 de Abril. “Ao ver as pessoas, a efervescência, a vida nas ruas, senti que de facto tudo era possível. Podíamos organizar a sociedade de outro modo.” O que aconteceu depois foi para ele uma desilusão, como aconteceu com quase todos. “O verdadeiro 25 de Abril ainda não se deu”, pensa ele. E afinal quem não pensa e sente o mesmo?

Como se a revolução não tivesse cumprido os sonhos de ninguém e nos tivesse lançado a todos num limbo de incompletude e adversidade.

José Adelino Maltez diz que, como professor de Ciência Política, não tem quaisquer dúvidas: “Nunca tivemos um regime tão perfeito como este. Sem presos políticos, nem a proibição de nenhum grupo…” José Manuel Sobral citou um estudo recente organizado pelo ICS segundo o qual a esmagadora maioria dos portugueses avalia positivamente o 25 de Abril, a que reconhece a responsabilidade pelas grandes melhorias na vida das pessoas — aumento da escolarização, liberdade de expressão, aumento das infra-estruturas básicas, como água potável, rede eléctrica, estradas, etc. O mesmo estudo dá nota positiva às Forças Armadas também.

“Apesar de uma parte da Igreja se ter mobilizado contra o 25 de Abril, a revolução não tomou de facto nenhuma medida contra a Igreja. Pelo contrário. A Universidade Católica floresceu.”

José Adelino Maltez recordou que a República esteve muito longe de fazer o mesmo. Abriu hostilidades com a Igreja e com sectores da população, que viriam a fragilizar fatalmente o regime. O 25 de Abril também teve os seus inimigos e as suas vítimas, mas, a longo prazo, revelou a sua natureza abrangente e universal. “Os partidos que existem hoje são praticamente os que foram escolhidos pelo MFA. A direita e a esquerda actuais nasceram com a revolução. Antes havia partido único. Não há quem não se sinta filho de Abril.” A extrema-direita é inexistente, o Partido Comunista é o principal defensor da Constituição, e o Bloco de Esquerda está no Parlamento, lembrou ainda Maltez, que se afirma de direita. “Vivemos claramente no regime de Abril.”

Não se percebe portanto por que razão não funciona o 25 de Abril como o nosso principal mito unificador. Devíamos reconciliar-nos definitivamente com o PREC, e os capitães de Abril deveriam ser os nossos heróis, os pais fundadores do regime, disse ainda Maltez.

Mas a dificuldade está algures aí. “Falta heroicidade à nossa democracia. A francesa ou inglesa tiveram uma resistência ou uma guerra. Vai-se a uma cerimónia comemorativa e só se vêem medalhas. A nossa não nasceu com heroicidade. É um defeito. Houve uma luta contra o fascismo, mas o povo não participou. Foi um golpe militar. É isso que fragiliza o nosso regime. Não é propriamente como a democracia francesa, que é sagrada. Ninguém lhe toca.”

Faltou um rito de passagem
José Gil põe a questão assim: “Não houve nenhum rito.” Poderia ter sido a violência, um rito sacrificial ou de outro tipo. “Mas não se passa de um regime para outro sem ritos. Não houve um acontecimento que marcasse a diferença radical. Somos um país muito pequeno, em que toda a gente se conhece, não havia uma sociedade portuguesa que por inteiro fosse contra o regime. Não. Passou-se, de repente, de uma adesão ao regime salazarista enorme, ainda que passiva, a uma adesão positiva e eufórica ao 25 de Abril. Não houve sequer uma violência simbólica, um rito de passagem. Foi um putsh revolucionário que se transformou rapidamente em revolução possível, que se tornou imperfeita e foi roubada ao povo.”

A utopia ficou pelo caminho, como fica sempre. Para Gil, isso importa. Para Maltez, não. Disse ele: “A maior utopia que eu conheço é a democracia. Nunca existiu em lado nenhum.”

O problema é outro: depois do 25 de Abril, não se conseguiu ainda reconstruir o mito. “Nós vínhamos de uma época, o salazarismo, que construiu um mito extraordinariamente coerente. Continha as mais ricas componentes do mito, do mito grego, dando aos portugueses uma visão coerente, um sentido. O português que se reportasse ao discurso hegemónico tinha tudo o que precisava para se sentir bem. Um mito perfeitamente construído. Salazar perspectivou a História a partir de um mito de origem, a batalha de Ourique, que se liga ao mito de Aljubarrota, os Descobrimentos, e segue até ao presente, sem falhas. Estou a lembrar-me de um discurso que ele fez em 1936 no Mosteiro da Batalha, em que perspectiva as nossas acções, quer as governativas, quer as quotidianas, quer os nossos mais pequenos pensamentos, como parte de um todo com sentido a partir da grande glória dos nossos antepassados. É um mito perfeito, completo, apesar de ser todo baseado em mentiras, totalmente fora da realidade. É o milagre de Ourique que insufla força a Nuno Álvares Pereira para ganhar Aljubarrota e que vai legitimar metafisicamente o regime salazarista. O discurso de transcendência de Salazar estava a milhas do nível literário, de pensamento dos portugueses. Ele esmaga literalmente os portugueses.”

Nunca mais houve um líder assim. O 25 de Abril foi obrigado a destruir o mito por inteiro e não criou outro. “Deitou-se fora o bebé com a água do banho”, diz José Gil.

Eduardo Lourenço, ensaísta, filósofo, o grande teorizador dos mitos portugueses, acaba de publicar o último volume das suas obras completas, na editora Gradiva. É um conjunto de ensaios, alguns inéditos, sobre o colonialismo português, escritos na sua maioria antes do início da Guerra Colonial, em 1961. O título é Do Colonialismo como Nosso Impensado e reúne textos “que têm todos uma reflexão sobre nós, como nação colonizadora e colonialista”, disse Eduardo Lourenço. “Mas enquanto vivemos essa realidade, até ao início da rebelião africana, eu classificava esse colonialismo como uma espécie de colonialismo inocente. Não só inocente, mas também uma das dimensões do país que historicamente fomos, durante tantos séculos.”

Muita da reflexão surgia do confronto entre os ideais proclamados desse colonialismo e a realidade que se impunha a mudanças históricas que se tornavam inevitáveis. “Pela maneira como vivíamos a nossa própria História, como a líamos, eu pensava que a tragédia futura estava anunciada. Pensei que viesse a ocorrer mais cedo. Éramos uma nação que foi à Índia e se espalhou pelo mundo, e que teve a sorte de encontrar para esse momento um poeta de génio, cuja obra, Os Lusíadas, consubstanciou o discurso simbólico que temos enquanto portugueses para nós próprios, que nos dava uma tão boa consciência, que não permitia compreender o labirinto em que estávamos encerrados. Esses textos destinavam-se a tirar-nos um pouco, a cada um de nós, a venda que nos é comum e que tem séculos de existência e de espessura.”

Quando se deu o 25 de Abril, era tarde para se ter feito de outra maneira. A descolonização teve de fazer-se total e rapidamente. A incapacidade para encontrar uma solução “esteve no regime do Estado Novo, que em 13 anos não conseguiu resolver o problema, nem pela via militar, nem por outra qualquer”.

Mas, desde o 25 de Abril, “em todos os momentos importantes, as nossas referências continuam a ser as mesmas, as do Império perdido. Na Europália, o que levámos? A gesta dos Descobrimentos. Não temos mais nada para levar. É a nossa prata da casa. Todo o nosso problema é esse: como é que uma nação pobre e pequena pode, num dado momento, protagonizar uma acção tão grandiosa?”

A perda do Império, diz Eduardo Lourenço, é ainda um trauma demasiado profundo para que o possamos viver. “Eu ainda não fiz o luto. Sabia que ele era finito, mas escrevi isto para que ele não acabasse. Para que pudesse ter uma outra versão, que não fosse a pura opressão do Outro, a negação do Outro. Acreditava que isso teria sido possível. E continuo a acreditar que, no futuro, o que havia de verdade naquela mentira triunfe sobre o que havia nela de ilusão.”

Isso acontece hoje nos países onde se fala português, “onde ainda estamos sem lá estar. É uma constatação e um desejo. Uma espécie de utopia, falhada enquanto forma de relacionamento desigual entre os homens, mas que tenha algum cumprimento num futuro Quinto Império”. Apenas como um mundo de língua portuguesa, que “essa é a nossa identidade, como dizia Pessoa. Não temos outra”. E viver através dos outros, a quem amamos e que nos sobrevivem, é ainda viver”.

Falar do papel que cada povo tem no mundo também parece hoje a Eduardo Lourenço um exercício obsoleto. Aos 91 anos, preocupa-o mais o desvanecimento das entidades colectivas e o enfraquecimento do sentimento religioso, fenómenos que estão, na civilização actual, a deixar o indivíduo sozinho e indefeso perante a morte. “Eu posso senti-la, posso tocá-la e no entanto não acredito que vá acontecer. A nossa capacidade de ilusão é infinita. Tanto nos indivíduos como nos povos. A única forma que a morte tem de nos atingir é através da morte dos outros. A imortalidade seria isso, nunca nos separarmos daqueles que amamos.”     

 


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