Ideologia: mais vale ser um cão raivoso

Em quarenta anos de democracia, chegámos a um espectro político com assento parlamentar que deixaria qualquer não português, no mínimo, intrigado

Foto
Dominic Ebenbichler/ Reuters

Recorrentemente, em política, ouvimos críticas agressivas a discursos, apenas por serem marcadamente ideológicos; e eu estranho. Diria que um discurso ideológico é mau se a ideologia for má; um discurso ideológico da Aurora Dourada será mau, mas do Dalai Lama talvez não. Será apenas uma questão de gosto?

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Recorrentemente, em política, ouvimos críticas agressivas a discursos, apenas por serem marcadamente ideológicos; e eu estranho. Diria que um discurso ideológico é mau se a ideologia for má; um discurso ideológico da Aurora Dourada será mau, mas do Dalai Lama talvez não. Será apenas uma questão de gosto?

Bom, em tempo de eleições, aceito que a palavra ideologia possa ter, pelo menos, duas definições: uma, mais neutra, de conjunto de ideias sociais e políticas que se pretende defender; outra, mais crítica, de tentativa de limitar as opções intelectuais a uma cartilha de intenções. Se a segunda é enviesada, a primeira é certamente ingénua; mas será um alvo a abater? Julgo que não.

A ideologia é hoje vista como uma prisão de pensamento, algo datado, dos séculos XIX e XX ou, pior, do PREC. Diz-se que quem se prende a uma ideologia está afastado da política do século XXI, do que realmente interessa: resolver os problemas do povo. Ainda que tal resolução implique retrocessos civilizacionais, temos de ser flexíveis e ajustar os nossos valores à realidade. Serei só eu que sinto que estamos a descarrilar?

Mas esta ideia está, infelizmente, a desbravar caminho. O esforço é comum a muitas forças políticas, e vinga no povo: as ideologias não interessam; o que interessa é quem lá está e o que diz que vai fazer, mesmo que o sinta, assumidamente, como mentira.

E com isso, em quarenta anos de democracia, chegámos a um espectro político com assento parlamentar que deixaria qualquer não português, no mínimo, intrigado: temos um Partido Popular que é democrata-cristão, e um Partido Social Democrata que integra o Partido Popular Europeu; temos ainda um Partido Socialista sustentado muito mais na social-democracia do que no socialismo, porque o socialismo moderno é outra coisa. E o aparecimento de novos partidos, nesta zona do espectro, veio ainda potenciar a entropia ideológica, na tentativa de conquistar o eleitorado.

E porque a ideologia é má para o fígado, tudo o que está à esquerda disto leva o epíteto de “esquerda radical”, porque não se coligam e a política moderna é a dos consensos. Mas como? Uma coligação compreende um compromisso de políticas que não podem ser agnósticas à ideologia.

Mas o pior desta entropia no espectro ideológico nacional é ser, infelizmente, facilmente aceite pelo povo. A democracia permite que os cidadãos votem em liberdade, sem justificação, e tu assim fazes. Mesmo que isso te faça sentir menos representado.

Porque dizes que não tens tempo para ir ver o manifesto eleitoral de cada partido; que isso é uma canseira. Preferes ouvir o que te dizem e acreditar ou, simplesmente, não votar.

E eu digo-te que vais gastar mais tempo depois a tentar perceber como foi possível ter votado em quem votaste - ou a resmungar com o que os outros elegeram - se não souberes ao que vão.

Porque isso das ideologias é para quem é fundamentalista, dizes tu.

Lá diz o Sérgio: mais vale ser um cão raivoso, do que um carneiro. Não digas que sim ao pastor só porque sim. Vais ver que te sentes melhor depois das próximas eleições; mesmo que sintas que as perdes.