Abril e a escola pública: somos livres porque sabemos

Abril abriu caminho para que a educação deixasse de ser um privilégio da elite, democratizando-a

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Michaela Rehle/Reuters

A conversa já cansa: assistimos diariamente a um discurso que valoriza a liberdade de expressão conquistada com Abril, mas que alerta que as utopias democráticas de igualdade e solidariedade na educação levaram à proliferação de mandriões e chico-espertos. Enfim...

Eu, tal como tu, não vivi o Abril que nos deu esta liberdade de dizer o que nos vai na alma. Bom, dirás que foi o Novembro, mais novo, que a deu; que o Abril foi totalitário. E eu, talvez enviesado pela educação que tive, direi que sem Abril não haveria Novembro, pelo que acabo por ter mais carinho pelo primeiro; adiante.

Apesar de ter sido mediaticamente associado à liberdade de expressão, Abril foi muito mais do que isso, e sempre que diminuímos as suas vitórias a essa, tudo o resto parecem banalidades. A liberdade é mais do que poder dizer; é saber ouvir. Quarenta anos é muito tempo, e importa assim reforçar que só é livre quem, em paz, vive, come, sente e sabe; uma vez mais, sabe.

Para isso, a escola pública é (e será sempre) muito importante. Mas os media inundam-nos com ilustres a relembrar-nos que no Portugal não democrático é que havia ensino de excelência. Eu não estive lá, mas desconfio; o ensino não era de excelência, era da elite. A excelência (termo incerto) que se observava, existia por selecção “contextual” das famílias, e não “natural” como advogam os mais liberais. A vida era assim; devíamos aceitá-la como a encontrávamos. Cada um é para o que nasce, dizia-se.

Mas foi exactamente por se aceitar que o seio familiar é diferenciador que foram necessárias políticas que permitissem equilibrar as oportunidades - um desígnio da república que Maio foi esquecendo durante quase 50 anos. Abril abriu caminho para que a educação deixasse de ser um privilégio da elite, democratizando-a. E desconfio que o nível de literacia alcançado não é sequer comparável, atingindo um patamar civilizacional completamente novo.

Então, que queixa é essa de falta de excelência? Ficou mais difícil ensinar e obter, em média, bons resultados? Possivelmente, uma vez que agora todos entram e contam, não apenas os que vão sobrando após aplicado o crivo certo. Mas o que importa é que o objectivo é todos contarem, e serem contados.

Agora, com o vício da “má escola pública”, alenta-se o direito a escolher a escola privada com um suposto reembolso de impostos que mais não será que um cheque de apoio ao retrocesso e ao agravamento das desigualdades. De facto, continua a existir o factor de confundimento familiar que faz com que nem todas as crianças tenham iguais apoios e oportunidades. Também aqui, ainda importa defender Abril.

Mas, felizmente, o povo sabe, hoje, muito mais do que sabia; e é, com isso, mais livre. Somos mais livres porque sabemos. Mais livres para tomarmos decisões possivelmente erradas, mas livres; porque sabemos.

Aceito que o caminho estaria já a ser traçado antes de Abril, com as reformas que sucessivamente foram sendo instituídas, até à de Veiga Simão que Abril parou. Mas não estranho sentir que, sem Abril, não tínhamos ido lá. 

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