Católicos, de direita, com David Bowie no chão da sala

Como foi crescer numa família de direita nos 40 anos do 25 de Abril? Conversa com Eduardo e Helena Nogueira Pinto. A política não está no centro das suas vidas, mas comovem-se com as mesmas coisas.

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Eduardo nasceu em 1973, é advogado na PLMJ. Helena nasceu em 1979, estudou Literatura, trabalha com Pedro Lomba, secretário de Estado adjunto do ministro Miguel Poiares Maduro. Conheceram-se em 2006, casaram-se em 2007. Têm três filhos: Leonor de seis anos, Duarte de quatro e Teresa de um ano e meio.

Não são um casal improvável. Os mundos de onde vêm não são distantes ou opostos ou intransponíveis. Combinam na sala de jantar uma mesa de linhas depuradas, desenhada por Saarinen, e um magnífico espelho de talha dourada. Conseguem uma coabitação feliz, harmoniosa de peças de diferentes categorias. De certa maneira, também é assim na vida de todos os dias – apesar da firmeza irredutível das suas convicções. Como foi crescer numa família de direita nos 40 anos do 25 de Abril?

Vivem numa casa onde se ouvem passar os eléctricos. Estava na sala um vinil do David Bowie, livros do Tintim, uma maravilhosa fotografia de Daniel Blaufuks. E fotografias de família. Os filhos foram passear na tarde de sábado em que a entrevista aconteceu.

A vossa filha mais velha já vos perguntou como se conheceram?
Helena – Não.
Eduardo – Se calhar acha que nos conhecemos desde sempre.

E não se conhecem desde sempre. Este intróito é uma forma de perguntar pela vossa história.
Eduardo – Sou amigo do Pedro Mexia e a Helena ainda mais.
Helena – A primeira vez que nos vimos foi numa festa de bloggers, que é uma coisa que já não existe. O Eduardo pôs uma música de que gostava muito, It’s the end of the world, dos R.E.M. Durante seis anos pensei que tinha sido ele a pôr a música. Afinal não. Eu devia estar casada com o anterior DJ... [riso]

O fim do mundo dos R.E.M e foi o começo do vosso mundo. Quando é que perceberam que era o começo de um mundo?
Eduardo – Pouco tempo depois. Eu não sabia se era para a vida, se era um novo mundo. Mas naquele momento era. Ficámos à espera de um filho, começámos a viver juntos e casámos.

Era provável apaixonar-se, casar-se, ter filhos com um homem que fosse de esquerda, revolucionário?
Helena – Se fosse tão convicto nas suas ideias como eu sou nas minhas, seria difícil.
Eduardo – Também depende do tipo de esquerda. Não julgo que nas relações humanas a parte mais importante seja a ideológica, a política. Acho mais importante gostar das mesmas coisas, emocionar-se com as mesmas coisas, ter uma sensibilidade parecida, ter sentido de humor.
Helena – Voltando a essa situação hipotética de estar casada com um homem de esquerda, fanático...

Eu não disse fanático, disse revolucionário.
Helena – Haveria um momento em que seria difícil a convivência. Um momento como o do referendo ao aborto.
Eduardo – Mas aí é difícil a convivência em geral.
Helena – Mesmo com amigos nossos. Quando partimos para uma discussão destas, quem é contra o aborto tem imediatamente uma etiqueta de intolerante.

São os dois católicos. Praticantes? É uma dimensão importante na vossa vida?
Helena – Praticantes, não. Os nossos filhos estão em escolas católicas e é vital que aprendam a viver assim. As nossas família são católicas, os nossos pais são praticantes.
Eduardo – Sou católico, catolicista. Dou importância à Igreja católica, independentemente da fé, porque acho que é um bom enquadramento para uma pessoa crescer e viver. Mas tenho fé. Diria que sou bastante relapso.
Helena – Confias em Deus.

Aquando do transplante do rim, confiou em Deus? Em que momentos se confia em Deus, pede a Deus?
Eduardo – Confio em Deus. E tenho uma coisa até desonesta: se estiver numa aflição, confio mais, lembro-me mais. Confio muito também na ciência. Uma coisa não exclui a outra. Confiei muito no avanço da medicina, nos médicos, no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Helena – Quando [no email em que combinámos a entrevista] me perguntou pelo Eduardo, respondi: “Está muito melhor graças a Deus e ao SNS.”
Eduardo – Sou advogado e trabalho muito na área da saúde. Nessa área, estamos muito bem. Tem o seu preço. Sou daqueles que defendem que sendo os recursos escassos temos de fazer opções e que há coisas de que temos de abdicar.

A saúde é onde não se pode poupar?
Eduardo – Todos nós, perante uma doença grave, ficamos indefesos, se não tivermos um SNS. Faz mais sentido que haja uma repartição do risco e que todos paguem para ter um serviço que não serve só para os que têm menos – serve para todos. Só é possível ter um serviço com esta qualidade se tiver escala, se for utilizado por todos e se todos contribuírem (através dos impostos). Os hospitais privados nunca vão conseguir (porque não têm escala, porque não têm número de utilizadores suficientes, porque não têm a capacidade de investimento que o Estado, apesar de tudo, tem) a mesma qualidade, a mesma experiência, a mesma rotação.

Não respondeu: é uma área em que não se pode poupar?
Eduardo – Não faz sentido haver desperdício, como é óbvio. Mas não tenho dúvidas em dizer que é prioritário não cortar tanto aí como outros sítios.

Normalmente a defesa do SNS é feita pela esquerda. Ainda mais porque foi criado por um homem de esquerda, António Arnaut.
Eduardo – A esquerda faz [essa defesa] numa tentativa de se apropriar do SNS. Como se a direita fosse contra o SNS... Qualquer pessoa minimamente responsável e que queira preservar o SNS faz cortes.
Helena – Tem de fazer escolhas.

Helena, quer contar do rim que deu ao Eduardo?
Helena – É muito simples: é no fundo uma redistribuição de riqueza. O Eduardo não tinha nenhum, eu tinha dois.

É uma maneira um pouco asséptica de falar de um gesto de amor.
Helena – É óbvio que é por amor. Só faria isto, provavelmente, pelo Eduardo ou por um dos nossos filhos. Não posso dizer que tenha sido uma decisão fácil ou irreflectida. Tivemos nove meses para preparar este transplante desde que a doença atingiu o patamar de no way back [sem retorno].
Eduardo – Eu tinha um problema de rins que foi detectado em 2001.

Não é uma coisa de que um rapaz de 30 anos esteja à espera.
Eduardo – De todo. Estes problemas têm a ver com diabetes (não é o meu caso), hipertensão (não é o meu caso) ou causas desconhecidas. É um choque enorme. O médico disse-me: “Mais uns meses e vai ficar com os rins sem funcionar, e depois tem diálise, transplante, várias soluções.” Fui aos EUA onde me deram um tratamento que fez com que aguentasse dez anos.
Helena – Numa das primeiras vezes em que saímos juntos o Eduardo disse-me que tinha uma doença que a qualquer momento podia agudizar-se.
Eduardo – Não disse isso em jeito de disclaimer [aviso] contratual. Já gostava da Helena e queria partilhar com ela isto.
Helena – No entanto, passaram meia dúzia de anos, tivemos filhos, tudo isso tomou conta de nós.

Que expressão usou quando falou do assunto à Helena?
Eduardo – Insuficiência renal. Fiz a minha vida normal durante dez anos. Tive um cuidado moderado.
Helena – Mínimo. Janeiro de 2013. O Eduardo queixa-se muito pouco. (Tenho de dizer isto. Sei que não ficas muito à vontade... Foi incrível a maneira como lidou com tudo isto. É normal uma pessoa sentir medo, é normal sentir-se assustada. Ele teve esses momentos, mas rapidamente superou.) Numa noite, acordou-me às três das manhã. Disse com toda a calma: “Não me estou a sentir bem.” Vesti-me a correr e fomos para o hospital conhecer o nosso destino.

Preparado para tudo?
Eduardo – Nunca quis saber o que era a hemodiálise, pormenores. A ideia de viver ligado a uma máquina três vezes por semana era o fim do mundo. Fiquei dois ou três dias muito deprimido.
Helena – Dois ou três dias.
Eduardo – Logo no hospital falaram-me de diálise peritoneal. Passei um ano sem rins a funcionar, a fazer diálise em casa com três trocas por dia que não incomodavam nada (podia estar a ler o jornal). Sem nenhuma restrição.

Como é que lhe ocorreu doar o órgão?
Helena – Não tive dúvida nenhuma. Quis fazer logo testes para ver se éramos compatíveis. Infelizmente o pai do Eduardo não era compatível. Foi um azar. Seria o mais natural, de pai para filho.

Explique melhor isso que lhe ocorreu imediatamente, como se fosse uma evidência.
Helena – É difícil explicar. Exactamente, é uma evidência. Ao lado dele estava a solução. Sou a mulher, a mãe dos filhos.

Pensou que estava a fazê-lo pelo pai dos seus filhos?
Helena – Por várias razões. Em primeiro lugar porque quero que o Eduardo esteja comigo o máximo de tempo possível. Mais 50 anos, talvez... [riso] E bem. Quero ter uma vida o mais normal possível, não estar ameaçada por doenças ou tratamentos. Quero que os nossos filhos vejam o pai saudável, que não o associem a máquinas ou líquidos (durante alguns meses conviveram com isso).
Eduardo – Nem se aperceberam...
Helena – Preferia que isso estivesse longe da nossa casa. Fi-lo também por mim. Sei que é altruísta, mas fi-lo também por mim.

Quais eram os riscos?
Helena – O risco normal de uma operação, anestesia geral, e o risco de não saber se terei algum problema no rim que me sobra.
Eduardo – Passa-se a ser classificado como doente.

Estou a pensar num casal, com uma filha, que não viaja no mesmo avião porque, se o avião cair, a filha fica sem os dois.
Helena – Os meus pais fazem isso.

Sendo um gesto de amor e de altruísmo, está a pô-los aos dois numa situação mais vulnerável.
Helena – Foi uma das perguntas que os médicos fizeram. Além dos exames médicos, vários, que tive de fazer, houve também consultas com uma psiquiatra. Faz parte. A pergunta mais difícil, embora a resposta não seja tão complicada, foi: “É fantástica, dá um rim ao seu marido. Mas se um dos vossos filhos precisar um dia, já não vai poder ajudá-lo. Gosta mais do seu marido do que dos filhos.”

É uma maneira provocadora e radical de pôr o problema. Qual foi a sua resposta?
Helena – Claro que é provocadora. Este problema é real e está a acontecer agora. E a solução é agora. Não sei se daqui a dez anos poderia dar um rim a um dos nossos filhos, se viessem a precisar. São tantas suposições... E [o transplante] dar-nos-ia qualidade de vida num momento em que eles são tão pequenos e precisam dos dois e dos dois o melhor possível.

Tiveram medo?
Helena – Sim.
Eduardo – Na véspera. O nervoso normal.

São operações simultâneas? Como foi quando acordaram?
Helena – Quase simultâneas. Eu começo primeiro, e quando recolhem o rim começa a operação do Eduardo. Sala ao lado. Mas estivemos separados no recobro. Estive dois dias internada. O Eduardo esteve três semanas.
Eduardo – As três semanas: é um bocado maçador. Tirando isso, lembro-me daquele tempo como um tempo em que fui feliz. A sério. Estava num quarto com mais três pessoas, que foram rodando, todos com o mesmo problema, em fases diferentes. Gera-se ali uma comunidade que de outra maneira não existe, enriquecedora.

O que é que a vossa filha mais velha perguntou sobre o assunto? Não pôde ver as crianças durante essas semanas.
Eduardo – Ela percebeu que eu tinha um problema e eu não lhe escondi.
Helena – Quando o Eduardo ficou doente em Janeiro [de 2013], e ficou internado uns dias, ela ficou muito assustada. A experiência recente que tinha tido era da avó [Maria José Nogueira Pinto], e a avó desapareceu [2011]. A minha maior batalha foi dissociar um caso de outro e não dramatizar a doença do pai. Expliquei-lhe que era uma alegria enorme para mim poder dar um rim ao pai. ([comove-se] Pronto, afinal não sou assim tão esfíngica.

Quem disse que era?)
Helena – Fiquei tão contente. Uma pessoa pode ter uma vida inteira sem ter a possibilidade de fazer diferença. Diferença absoluta na vida de alguém.

Não usou estas palavras, mas pensou que estava a salvar uma vida?
Helena – Não é salvar, porque o Eduardo não estava em perigo de vida. A Leonor perguntou-me como era viver só com um rim e disse: “Vai ser muito chato se esse rim deixar de funcionar. Porque se a mãe precisar de um rim, eu não quero dar os meus. Não me apetece nada dar rins!” Acho incrível ela dizer isto assim. Ao mesmo tempo é de uma honestidade desconcertante, típica de uma criança desta idade.

O que é que contou à Helena da sua ida para o exílio, com os seus pais, quando era criança?
Helena – Muito pouco, porque os meus sogros contaram tudo.

Maria José foi ao encontro de Jaime, em África, Eduardo tinha um ano e ficou em Portugal. Ela disse numa entrevista de 2009: “O meu filho não precisava de mim: precisava de ser alimentado, acarinhado, e estava com duas avós, uma tia-avó, duas tias... Estava muito bem. Sofri imenso, imenso. Não voltei a Portugal para o apanhar. Quando o vi no aeroporto de Madrid, ele tinha mais seis meses.” E daí seguiram para o exílio.
Helena – Eu sabia quem eram os pais do Eduardo, são figuras públicas. Não sabia nada sobre a vida familiar, a infância. Fui sabendo ao longo do tempo. Infelizmente só estive com a tua mãe cinco anos. Esse não era um tema de que se falasse quando estávamos juntos. Houve muitas coisas que soube através de entrevistas – por exemplo, que tinham estado na África do Sul. Tu não me contaste.
Eduardo – Mas isso para mim não existe. No sentido em que não me marcou minimamente. Passei por essa história, mas não é a minha história.
Os meus pais saíram de Portugal a seguir ao 25 de Abril. Estiveram no Brasil, em África. Vivemos três anos em Madrid. Foi assim até eu fazer quatro anos, cinco anos. Só me lembro de vagas coisas de Madrid. Por isso posso dizer que o que sou não vem daí. O conhecimento que tenho disso é um conhecimento de ouvir dizer, não é de viver.

Era uma coisa que lhe contavam, pela vida fora? Há um lado de aventura em todo esse período.
Eduardo – Às vezes falava-se. A geração dos meus pais passou por momentos mais agitados pelos quais a nossa geração não teve de passar. É natural que essa geração valorize isso e considere isso uma riqueza acrescida.

É?
Eduardo – Não sei se é ou não, não consigo dizer. Aparentemente será mais interessante passar por revoluções, exílios, mas estando a vivê-los não será tão bom... Não queria trocar a minha vida por outra diferente.
Helena – Os meus pais são um bocadinho mais velhos do que os pais do Eduardo. O meu pai tinha 34 anos quando se deu o 25 de Abril. A idade que eu tenho agora. É uma coisa em que tenho pensado: o turbilhão que era a vida dele nesse ano e quão calma é a minha vida.

Que é que fazia o seu pai? Situe a sua família no período da revolução.
Helena – O meu pai era militar. Não estava no lado revolucionário. Foi ajudante-de- campo do Spínola durante muitos anos em África. Esteve em várias frentes de batalha. O meu pai é o meu herói. [comoção] É mesmo.

Como se chama?
Helena – Carlos Ayala Botto. Casaram-se com 23 anos e logo a seguir à lua-de-mel o meu pai foi destacado para África, de onde voltou perto do 25 de Abril. Foram quase dez anos, parte dos quais com a minha mãe, em Luanda. Grande parte do tempo ela ficou cá, a tomar conta de três, e depois quatro, filhos. Eu sou a quinta. Dava aulas em três escolas, de Matemática e Biologia. À noite dava explicações em casa. Trabalhava horas e horas sem fim. Aguentou a ausência do meu pai, que tinha direito a ver a família uma a duas vezes por ano. O meu pai não estava cá, quando um dos meus irmãos nasceu. Soube por telegrama, semanas depois. Imagino-o no meio da selva, [riso] a receber um telegrama que é passado de mão em mão, a dizer: “Nasceu mais um filho. Parabéns.”

Que aconteceu depois do 25 de Abril?
Helena – Os meus pais nunca tiveram necessidade de sair do país, não foram perseguidos.
Eduardo – Não eram fascistas [diz “fascistas” com sotaque, de modo brincalhão, quase infantil].
Helena – Não eram fascistas nem revolucionários. Eram burgueses. Classe média-alta, grande tradição católica e militar. O meu bisavô foi presidente do Conselho de Ministros nos dois anos anteriores a Salazar. Republicanos, democratas.

Opositores ao salazarismo?
Helena – Nem tanto.

Como disse que eram republicanos e democratas...
Helena – É verdade, mas não eram opositores. Eram simpatizantes, não fanáticos. Perguntando ao meu pai se ele concorda que tenha havido o 25 de Abril, [respondeu]: “Claro que sim.” Não tem a mínima dúvida de que era preciso mudar. E que era o fim de uma era. Spínola tinha também essa ideia. Viu-se forçado a tomar as rédeas, porque depois do 25 de Abril veio o 26 de Abril.

Foi isso que ouviu? Cresce-se a ouvir uma história. Depois forma-se uma opinião própria, mas para começar há uma narrativa, que é a da família, a da casa.
Helena – A narrativa política em que cresci era anticomunista. O grande perigo era o do comunismo e o da falta de moral, de costumes. A minha primeira memória política é das eleições de 1986. Mário Soares versus Freitas do Amaral. A minha família votou em peso no Freitas do Amaral. O meu pai, sobre a guerra, nunca fala. Nunca. Nem vale a pena perguntar.

Sobre o que viu lá, sobre o que viveu lá?
Helena – Sobre o que viveu, o que viu, os amigos que perdeu. Sei de um ou dois episódios mais dramáticos. A memória dele está encarcerada.

Porque é que o seu herói é ele, se a sua mãe é que ficou cá com quatro filhos e trabalhando tanto?
Helena – O herói é ele, porque corria risco de vida todos os dias. A minha mãe é uma heroína em dois sentidos. Aguentou a casa e tomou conta dos filhos sozinha. E no sentido em que foi uma óptima aluna na universidade e recusou o que poderia ter tido uma carreira académica para estar com o meu pai.

No fundo, por ter escolhido a família?
Helena – Sim. Há momentos em que tem pena. Mas teve cinco filhos que justificam essa escolha.

Alguma vez ouviu na escola, pequenino, que os seus pais eram fascistas?
Eduardo – É possível. Era uma daquelas coisas que se diziam quase automaticamente. O meu pai... A maior parte das pessoas já perceberam que [não é fascista]. Ele não se importa nada que lhe chamem fascista.

O que é um fascista?
Eduardo – Há dois sentidos: o verdadeiro sentido – fascista como alguém que partilha a ideologia fascista, com tudo o que isso implica – e o sentido caricatural: fascista como aquele que não é de esquerda. Neste sentido, pode dizer-se que, desde o 25 Abril, quase todos à direita do PS (e mesmo alguns do PS) já foram agraciados com o epíteto. Do Sá Carneiro ao Nicolau Breyner, passando pelo Papa (talvez não este, por enquanto). De tão banalizado e inapropriadamente usado, o termo tornou-se inócuo. É neste sentido que surgem os “fascistas” da escola e é neste sentido que o meu pai não se importa que lhe chamem “fascista”.
Helena – Não existe consenso em relação ao que é um fascista. Poucas pessoas que usam a palavra sabem o que estão a dizer. Se o soubessem, provavelmente usá-la-iam com maior parcimónia.
Eduardo – O meu pai sofreu muito com o 25 de Abril por causa da perda das colónias.

Sofreu com a perda da ideia do império, é isso?
Eduardo – É. É das pessoas mais generosas, bondosas, tolerantes... Pouco disciplinador. Enquanto filho posso dizer que a minha mãe é que era a disciplinadora. A ideia do fascista autoritário não encaixa com o meu pai. Teria muita pena, se ele fosse visto assim.

O rótulo do fascista decorre da defesa pública que fez de Salazar, nomeadamente no programa de televisão Os Grandes Portugueses?
Eduardo – Houve quem tivesse levado a sério, mas era mais uma brincadeira. Ele achou que era interessante defender [Salazar], mas não fez daquilo uma causa. [O rótulo] decorre das coisas que ele escreveu, muito mais substanciais do que um concurso televisivo. Não quer dizer que não se possa ter admiração por Salazar. A versão da História que foi dada durante anos era muito redutora. A de umas trevas e tal. E eu vejo dois 25 de Abril.

Dois?
Eduardo – O que se passou a seguir ao 25 de Abril trouxe um certo desenvolvimento a Portugal. É uma coisa muito boa que todos temos de valorizar. As pessoas passaram a ter uma qualidade de vida... Hoje dizemos que vivemos acima das nossas possibilidades, mas isso significou para muita gente poder ir ao supermercado e encher o carrinho, passar a ter um carro, uma casa.
O outro 25 de Abril teria desaguado numa coisa muito diferente – que seria bem pior do que Salazar. Foi travado. Graças a muita gente. Acho que Portugal não queria o 25 de Abril que alguns que fizeram o 25 de Abril queriam impor.

Celebra mais o 25 de Abril ou o 25 de Novembro?
Eduardo – Não celebro nem um nem outro. Gosto, de uma forma serena, de ver o que tiveram de bom. Mas não me toca emocionalmente.
Helena – Nem uma data nem outra.
Eduardo – Entre um e outro o que eu prefiro é uma coisa impossível.

O que é que teria preferido?
Eduardo – Teria preferido que não tivesse havido nenhuma revolução e que, quando Salazar morreu, se tivesse feito uma transição gradual para a democracia.
Helena – Havia condições para isso?
Eduardo – Havia. A Primavera Marcelista podia ter sido [essa transição]. Falhou, mas podia ter sido.

Tal como aos seus pais, o que lhe dói é a perda da ideia de império?
Eduardo – Gosto do romantismo como movimento, é óbvio que a ideia de império me agrada. Em abstracto. Agrada-me o império português, como me agradam outros impérios. Como não vivi isso, não consegui criar essa ligação.
Helena – Não temos uma noção de perda.
Eduardo – Mas quando vemos aquele célebre mapa de Portugal com as colónias e é quase do tamanho da Europa... São coisas que tocam.

Perguntou aos seus pais, como a Helena fez, se o 25 de Abril era preciso?
Eduardo – Sim. A resposta não foi igual à do pai da Helena [riso]. Estou de acordo com os meus pais, com o meu pai. Podia-se ter feito de outra maneira. Podem dizer-me, e concedo, e concedo logo: “Mas foi desta. Foram estes que fizeram.” Se podia ter sido feito de outra maneira, que tivessem feito de outra maneira. Alguma coisa tinha de acontecer. Não podíamos viver com o regime de Salazar sem existir Salazar. Se me perguntam se o 25 de Abril foi a melhor maneira para se fazer a mudança, não. É com esta que temos de viver. E na mudança há muitas coisas boas.

Têm muitas conversas políticas?
Helena – Temos muitas conversas sobre o dia-a-dia, sobre o que está a acontecer agora.
Eduardo – É mais numa vertente humorística, não é? Não há coisas épicas, que motivem grandes discussões. Nestes últimos dois anos tem havido mais política.
Helena – Somos ambos filiados no partido.

Que partido?
Helena – CDS. A maior parte das pessoas com quem me dou discute minimamente política. Há um momento em que enfastia. “São todos iguais, PS ou partidos de direita, nunca vai mudar.” É um discurso que detesto. Quem pensa assim, em vez de se queixar no conforto de um jantar de amigos, devia fazer qualquer coisa.

Como é que faria? Como é que podia ser diferente?
Eduardo – Os partidos, mesmo num estado degradado como aquele em que estão, são essenciais. Ou então assuma-se – como Manuela Ferreira Leite disse um bocadinho a brincar, mas eu admito que se diga a sério – interromper isto, acabaram-se os partidos, alguém vai tomar conta do país durante uns tempos para pôr o país na ordem e depois voltam os partidos.

Admite que se diga isso a sério.
Eduardo – Não é a minha posição. Mas consigo conceber um discurso estruturado à volta desta ideia.

As pessoas com quem se dão no vosso dia-a-dia são todas do vosso meio? Têm amigos próximos de esquerda?
Eduardo – Sim. Muitas das pessoas que mais admiro são de esquerda. O critério político não é o único [para estabelecer uma relação com uma pessoa]. E gosto mais de um bom político de esquerda do que de um mau político de direita, e de uma boa pessoa de esquerda do que de uma má pessoa de direita.
Helena – Há quanto tempo não temos um político de direita que leve hordas atrás? O panorama é árido.

Os chamados “temas fracturantes” mais discutidos nos últimos anos foram o aborto, o casamento homossexual e a co-adopção. A vossa posição é mais marcada pela matriz católica do que por serem de direita?
Eduardo – Do ponto de vista moral, tenho uma posição sobre esses temas e ela não é diferente da que tenho em termos políticos. O que tento é que na discussão política não interfira o que penso moralmente. Não posso impor a minha moral às outras pessoas. Posso fazê-lo aos meus filhos, enquanto viverem comigo. Portanto só consigo discutir isto com argumentos políticos. E não podemos partir para a discussão com uma posição moral. A esquerda parte mais...

São contra o casamento homossexual?
Eduardo – Sou. E sou contra a adopção homossexual, sou contra a co-adopção. A única causa fracturante que defendo é a legalização das drogas, pelo menos das drogas ditas “leves”.
Helena – Não gostamos do Estado paternalista que tem de decidir pelo indivíduo, porque o indivíduo não sabe o que é melhor para si.
Eduardo – Um liberal devia defender um casamento entre pessoas do mesmo sexo? Não. As pessoas podem fazer o que quiserem que o Estado não tem nada a ver com isso. O casamento, que é um constrangimento à liberdade das pessoas, existe porque — e esta é a minha posição política — o Estado deve promover uma coisa que se chama família.


A seguir é preciso definir família.
Helena – Só há uma.
Eduardo – Na minha definição, deve promover a família pai, mãe, filhos, porque essa realidade é útil para o Estado e para a sociedade. Acredito nisto, defendo isto. Quero ter o direito, se ganhar umas eleições, de poder implementar este modelo. Houve um referendo em relação ao aborto.
Helena – O primeiro ganhámos [1998].
Eduardo – Ganhou o não. Ninguém ficou com a ideia de que a história morria ali.
Helena – Por isso é que dez anos depois houve outro [2007].
Eduardo – Mas ficou-se com a ideia de que a história morria ali.
Helena – Infelizmente este parece irreversível. A esquerda mexe-se melhor.
Eduardo – É porque há a ideia de que isto é progresso.

Quando falam com os vossos amigos de esquerda, quais são os grandes pontos de conflito ideológico e de costumes?
Helena – São estas questões.

E em relação ao antigo regime?
Helena – Talvez [digamos] que o antigo regime não é só a idade das trevas.
Eduardo – Não discuto com ninguém. Gosto mais de aproveitar as coisas que temos em comum.

Em que é que a vossa vida ecoa as alterações que se assinalaram em Portugal nos 40 anos de democracia? Terem um segundo casamento é uma expressão deste tempo? Refiro-me à naturalidade com que isso é vivido.
Eduardo – Há coisas mais importantes do que isso. Há uma mobilidade social que faz muita diferença. Se eu tivesse nascido na geração anterior na mesma família, era um privilegiado, com certeza, não teria uma vida muito diferente, mas estaria num país bastante diferente. As coisas com que me identificaria seriam mais limitadas.

Dizendo de uma maneira caricatural, estaria mais confinado à sua redoma de menino privilegiado?
Eduardo – É isso.
Helena – O que seria uma tristeza.
Eduardo – Não sei se seria uma tristeza. Não podemos viver duas vidas em paralelo e dizer que uma é melhor do que a outra.
Helena – Não achas que é melhor esta abertura, esta porosidade?
Eduardo – Sim, objectivamente acho que é melhor. Acho que são mais as coisas que se ganham do que aquelas que se perdem.

Helena, pode fazer este exercício? Pense na sua mãe, na vida dela e na sua vida.
Helena – Tenho uma vida muito melhor do que a dela. Fui a única na minha família a nascer depois do 25 de Abril. Fez imensa diferença. A maneira como os meus pais me educaram e a educação dos meus irmãos: muito mais rígida a deles. Estiveram todos em colégios internos até aos 17 anos. Eu escapei – embora não quisesse. Com 10 anos achava que ia ser muito divertido ir para Odivelas, porque lia As Gémeas no Colégio de Santa Clara [de Enid Blyton], ia ter passeios a cavalo e piqueniques à meia-noite com ovos estrelados. Foram as minhas irmãs que convenceram a minha mãe a deixar-me ir para o liceu. A deixar-me ir para o liceu! Fui com 15 anos. Até lá estive em colégios católicos, externa.

A dinâmica familiar era diferente.
Helena – Sim. Para já tinha a minha mãe e o meu pai presentes, sempre. Tenho uma relação mais franca e mais aberta com os meus pais do que qualquer um dos meus irmãos. Quando tenho dúvidas, faço perguntas. Os meus pais, em geral, respondem.

Reconhece isso como marcas de um tempo?
Helena – Sem dúvida.
Eduardo – Os meus pais, como são mais novos, já são mais parecidos comigo do que com a geração anterior. Na geração anterior havia coisas de que não se falava.
Helena – Doenças, morte, defeitos caracteriais. O pai da minha mãe nunca nos deu um beijo na cara. Dava-nos um beijo na testa. Tão impessoal! Quebrei isso uma única vez. Dias antes de ele morrer. Fui visitá-lo ao hospital, ele preparava-se para me dar um beijo na testa e eu disse: “Hoje vou dar um beijo na cara do meu avô.” E dei. Ainda bem. Tinha 11 anos.
Eduardo – Houve uma grande mudança na forma como os pais lidam com os filhos. Coisas para melhor: é importante haver uma afectividade maior. Coisas para pior: o centrar-se tudo nas crianças.

Já notei que não há brinquedos na vossa sala. O espaço está delimitado. Eles não invadem tudo, nem são, aqui, os reis da casa.
Helena – E quando a convidam a sentar-se na cadeira da Barbie?...
Eduardo – Escravizam os pais. A vantagem hoje é que há o catálogo todo e, se quisermos viver como antes do 25 de Abril na nossa casa, podemos.
Helena – Tem de haver disciplina e amor, em igual medida. Projecto imenso... como é que serão no futuro?
Eduardo – Pois, eu só vivo a um ano... Não faço planos a mais tempo.
Helena – Já se nota a personalidade de cada um deles. Mas são muito novos. Gosto de promover autonomia e confiança. É natural sentir-se triste, mas deve combater-se isso. Somos muito mais do que as tristezas momentâneas.

Não disse quem é o seu herói, Eduardo. Ou heroína.
Eduardo – O meu pai fez aquele concurso Os Grandes Portugueses: para mim ele é o maior português. Não lhe chamaria herói, mas é alguém que admiro muito, de quem gosto muito. Identifico-me mais com ele, embora tenhamos uma relação um bocadinho distante. A minha mãe faz-me muita, muita falta. Uma falta permanente. Interrompeu a minha vida o facto de ela ter morrido. Discutíamos, havia tensão entre nós, muitas vezes. Mas era uma ligação de sangue, mesmo. Quando soube que o meu pai não era compatível, percebi que a minha mãe é que era compatível. A maneira como me sinto ligado à minha mãe é muito biológica. Admirava-a também muito, mas a um nível diferente do meu pai.

Porque é que pôs o nome Nogueira Pinto? Na sua geração, a maior parte das mulheres já não adopta o apelido do marido. É uma coisa que foi caindo em desuso.
Helena – Foi caindo em desuso? Acho normal. Não acho que tenha perdido nada ou que tenha ganho alguma coisa. Agora somos uma família, temos todos o mesmo nome — isto é a nossa identidade.

A sua sogra disse ao pai dela: “Tenho a maior honra em ser Avillez, mas agora sou Nogueira Pinto.” Teve influência?
Helena – Não tive de dizer aos meus pais: “Peço desculpa por abandonar Ayala Botto, mas Nogueira Pinto é muito mais fácil numa repartição de finanças!” [riso] As minhas irmãs não adoptaram os nomes dos maridos, as minhas cunhadas adoptaram os nomes dos meus irmãos. Gosto muito desta unidade. Temos todos o mesmo cunho.

Terminámos.
Helena – Já?

Querem dizer mais alguma coisa?
Eduardo – Falou-se muito de questões fracturantes. Não é que não dê importância a essas questões, mas não me ocupam tempo praticamente nenhum. Há outras que me ocupam muito de que não falámos. A minha profissão. As coisas de que verdadeiramente gosto (além da família).
Helena – O que fazemos juntos. Para a semana vamos ter quatro dias, estamos mesmo a precisar de ter quatro dias sozinhos. Vai ser a primeira viagem desde o culminar da doença do Eduardo.

Querem fazer um auto-retrato de três linhas?
Eduardo – Tenho tendência para o escapismo. Consigo estar a trabalhar e a fazer coisas que exigem grande concentração com uma parte da cabeça muito longe.

Na banda desenhada, na pintura?
Eduardo – Muita coisa. Literalmente no espaço. Na música, no cinema, nos livros. Com a idade sou mais facilmente emocionável. É essencial para me levantar de manhã e estar feliz saber que existem estas coisas.
Helena – E tantas outras para descobrir... O Eduardo teve uma única profissão, num único sítio.
Eduardo – Também nunca quis ter outra
Helena – Eu, em dez anos de vida activa, fui professora quase cinco anos, estive três anos na Cinemateca. Foi o sítio onde me senti mais feliz e mais no meu meio, apesar de estar pejado de gente de esquerda.
Eduardo – Boa gente de esquerda.
Helena – Faço uma série de coisas poucos visíveis. Trabalho de bastidores. Não sei o que me reserva 2015. Talvez seja deputada na Assembleia da República, talvez não seja coisa nenhuma. Mas gostava de continuar, nos bastidores ou não, envolvida politicamente.