O prazer dos olhos

Só consegui dar-me plenamente conta da espantosa beleza desta exposição depois de ter desistido de a compreender. Aconselho os visitantes a lerem antecipadamente o catálogo ou a deixarem no bengaleiro da Gulbenkian as referências históricas e artísticas, e até a simples lógica, para entrarem na exposição de espírito e olhos limpos.

Deve dizer-se que os dois comissários, Alfonso Pleguezuelo e João Castel-Branco Pereira, ambos especialistas de alto gabarito na matéria, avisam os incautos nas páginas iniciais do catálogo que não devem esperar grandes novidades provenientes da investigação, nem tampouco uma lógica expositiva compreensível. Aliás, dos ensaios presentes no catálogo só dois são de carácter mais ou menos analítico (J. Carswell, J. Mollera e T. Pradel). A maioria resume aquilo que os especialistas já sabem. E de todas as peças expostas só quatro nunca foram publicadas ou mostradas.

Para mim é muito difícil abdicar da ideia das exposições como lugares de formação de conhecimento novo e esta desilude-me neste aspecto, sobretudo porque se perdeu uma excepcional oportunidade de fazer verdadeira história global da arte que, por ser global, tem de ser ainda mais história, isto é, tem de lidar com estruturas, conjunturas, tempos, lugares e percursos. As peças, provenientes da colecção da Gulbenkian e, num notável esforço logístico e financeiro, de vários museus portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e belgas, podiam ter sido ordenadas por “fatias” cronológicas, colocando lado a lado azulejos separados no espaço mas da mesma época. Pelo contrário, depois de um início e de um fim cronológicos (origem do azulejo e azulejo contemporâneo), aparecem ao mesmo tempo azulejos ibéricos, italianos, holandeses, persas, turcos e da Ásia Central, de todas as épocas.

O título da exposição não é brilhante: os azulejos não têm necessariamente brilho, não são obrigatoriamente urbanos e a sua “rota” não se descortina porque a exposição não explicita contactos e caminhos. Os subtítulos não orientam o visitante porque não correspondem exactamente ao conteúdo das secções, elas próprias de contornos nebulosos. Está ausente a China, muito importante para o azulejo holandês, e, portanto, para os azulejos azuis e brancos portugueses que resultaram da influência holandesa. Também quase não se dá pela Índia (mas a razão deste facto reside talvez em que a investigação sobre a azulejaria indiana está muito atrasada). A relação íntima que o azulejo manteve com outras peças de cerâmica e com a gravura e o desenho não é mostrada na exposição, apenas explicada no catálogo. A interacção fundamental entre azulejos e arquitectura só está disponível num banal slideshow: de facto, nenhuma maqueta, nenhuma simulação, procura evocar o contexto que as peças perderam.

Apenas os museus franceses parecem ter tido o cuidado de indicar com rigor a proveniência dos seus empréstimos. Espanta-me a tranquilidade com que se escreve no catálogo que os azulejos mogois provêm do convento de Santa Mónica de Goa por via do Museu de Faro, sem indicar datas nem processos de transferência — uma boa consciência idêntica à da notação de que outros azulejos foram deslocados de conventos, igrejas e casas europeias, desde o século XIX aos nossos dias, frequentemente por meios legítimos, mas também (adivinha-se) através de outros mais apressados.

Se o visitante que não leu antecipadamente o catálogo quiser aprender e não apenas deliciar-se enquanto vê a exposição, utilize para isso as tabelas colocadas junto às peças e as fichas do catálogo, em geral muito bem feitas. E no fim, depois de ir para casa, imagine uma maneira mais lógica de dispor as peças que a riqueza, a influência e a tradição da Gulbenkian conseguiram juntar para nosso deleite.

Talvez não voltemos a ter a oportunidade de ver em conjunto peças tão bonitas e diversificadas. O azulejo pode não ser o brilho das cidades, mas põe-nos os olhos a brilhar de prazer.

Os azulejos que talvez surpreendam mais as pessoas que já viram muitos portugueses ou espanhóis serão, quem sabe?, o esplêndido arqueiro persa do Louvre, os azulejos persas do século XIII, os azulejos turcos de cerâmica siliciosa pintada sob ou sobre o vidrado, brilhantes como nenhuns outros, os azulejos setecentistas dos Países Baixos ou catalães, as peças modernistas da Arte Nova em diante, tão magníficas que mereceriam uma exposição própria à altura do seu esplendor.

Visitar esta exposição é uma alegria rara. Bem precisamos dela.

 

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Só consegui dar-me plenamente conta da espantosa beleza desta exposição depois de ter desistido de a compreender. Aconselho os visitantes a lerem antecipadamente o catálogo ou a deixarem no bengaleiro da Gulbenkian as referências históricas e artísticas, e até a simples lógica, para entrarem na exposição de espírito e olhos limpos.

Deve dizer-se que os dois comissários, Alfonso Pleguezuelo e João Castel-Branco Pereira, ambos especialistas de alto gabarito na matéria, avisam os incautos nas páginas iniciais do catálogo que não devem esperar grandes novidades provenientes da investigação, nem tampouco uma lógica expositiva compreensível. Aliás, dos ensaios presentes no catálogo só dois são de carácter mais ou menos analítico (J. Carswell, J. Mollera e T. Pradel). A maioria resume aquilo que os especialistas já sabem. E de todas as peças expostas só quatro nunca foram publicadas ou mostradas.

Para mim é muito difícil abdicar da ideia das exposições como lugares de formação de conhecimento novo e esta desilude-me neste aspecto, sobretudo porque se perdeu uma excepcional oportunidade de fazer verdadeira história global da arte que, por ser global, tem de ser ainda mais história, isto é, tem de lidar com estruturas, conjunturas, tempos, lugares e percursos. As peças, provenientes da colecção da Gulbenkian e, num notável esforço logístico e financeiro, de vários museus portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e belgas, podiam ter sido ordenadas por “fatias” cronológicas, colocando lado a lado azulejos separados no espaço mas da mesma época. Pelo contrário, depois de um início e de um fim cronológicos (origem do azulejo e azulejo contemporâneo), aparecem ao mesmo tempo azulejos ibéricos, italianos, holandeses, persas, turcos e da Ásia Central, de todas as épocas.

O título da exposição não é brilhante: os azulejos não têm necessariamente brilho, não são obrigatoriamente urbanos e a sua “rota” não se descortina porque a exposição não explicita contactos e caminhos. Os subtítulos não orientam o visitante porque não correspondem exactamente ao conteúdo das secções, elas próprias de contornos nebulosos. Está ausente a China, muito importante para o azulejo holandês, e, portanto, para os azulejos azuis e brancos portugueses que resultaram da influência holandesa. Também quase não se dá pela Índia (mas a razão deste facto reside talvez em que a investigação sobre a azulejaria indiana está muito atrasada). A relação íntima que o azulejo manteve com outras peças de cerâmica e com a gravura e o desenho não é mostrada na exposição, apenas explicada no catálogo. A interacção fundamental entre azulejos e arquitectura só está disponível num banal slideshow: de facto, nenhuma maqueta, nenhuma simulação, procura evocar o contexto que as peças perderam.

Apenas os museus franceses parecem ter tido o cuidado de indicar com rigor a proveniência dos seus empréstimos. Espanta-me a tranquilidade com que se escreve no catálogo que os azulejos mogois provêm do convento de Santa Mónica de Goa por via do Museu de Faro, sem indicar datas nem processos de transferência — uma boa consciência idêntica à da notação de que outros azulejos foram deslocados de conventos, igrejas e casas europeias, desde o século XIX aos nossos dias, frequentemente por meios legítimos, mas também (adivinha-se) através de outros mais apressados.

Se o visitante que não leu antecipadamente o catálogo quiser aprender e não apenas deliciar-se enquanto vê a exposição, utilize para isso as tabelas colocadas junto às peças e as fichas do catálogo, em geral muito bem feitas. E no fim, depois de ir para casa, imagine uma maneira mais lógica de dispor as peças que a riqueza, a influência e a tradição da Gulbenkian conseguiram juntar para nosso deleite.

Talvez não voltemos a ter a oportunidade de ver em conjunto peças tão bonitas e diversificadas. O azulejo pode não ser o brilho das cidades, mas põe-nos os olhos a brilhar de prazer.

Os azulejos que talvez surpreendam mais as pessoas que já viram muitos portugueses ou espanhóis serão, quem sabe?, o esplêndido arqueiro persa do Louvre, os azulejos persas do século XIII, os azulejos turcos de cerâmica siliciosa pintada sob ou sobre o vidrado, brilhantes como nenhuns outros, os azulejos setecentistas dos Países Baixos ou catalães, as peças modernistas da Arte Nova em diante, tão magníficas que mereceriam uma exposição própria à altura do seu esplendor.

Visitar esta exposição é uma alegria rara. Bem precisamos dela.