O PS não é confiável como partido da oposição

O PS de Seguro ou não percebe o sentido de fundo da actual política de “ajustamento”, ou, pelo contrário, percebe bem de mais e quer ser parte dela.

Nesse mesmo dia, os professores contratados foram abandonados pelo PS, que apenas pediu uma pífia “suspensão” da prova, e os trabalhadores dos Estaleiros de Viana, que marcharam pelas ruas de Lisboa com as suas famílias, a caminho da miséria, não merecem nem um levantar de sobrancelhas dos doutos conselheiros económicos do “líder” Seguro. O PS, que tinha já enormes responsabilidades na situação actual de ambos os sectores profissionais, agora mostrou de novo por que razão não é confiável como partido de oposição, mas, pelo contrário, é confiável, pela mão de Seguro, para lá de muitas encenações, para os que mandam em Portugal, sempre os mesmos.

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Nesse mesmo dia, os professores contratados foram abandonados pelo PS, que apenas pediu uma pífia “suspensão” da prova, e os trabalhadores dos Estaleiros de Viana, que marcharam pelas ruas de Lisboa com as suas famílias, a caminho da miséria, não merecem nem um levantar de sobrancelhas dos doutos conselheiros económicos do “líder” Seguro. O PS, que tinha já enormes responsabilidades na situação actual de ambos os sectores profissionais, agora mostrou de novo por que razão não é confiável como partido de oposição, mas, pelo contrário, é confiável, pela mão de Seguro, para lá de muitas encenações, para os que mandam em Portugal, sempre os mesmos.

É que o acordo sobre o IRC não é sobre o IRC. O IRC, repito, foi o pretexto. Aliás, a pergunta mais simples a fazer, a óbvia, aquela que a comunicação social, se não estivesse subjugada à agenda e aos termos dessa agenda do poder político dominante, faria é esta: por que razão é que um acordo deste tipo não veio da Concertação Social, mas de conversações entre os dois partidos? Por que razão é que o Governo nunca esteve disposto a fazer este tipo de cedências diante da CCP ou da UGT, já para não dizer da CIP e da CGTP, mas está disposto a fazê-lo com o PS? Ou, dito de outra maneira, que vantagem tem o Governo em fazer este acordo com um partido da oposição e não com os parceiros sociais? Ou ainda melhor: o que é que o PSD e o CDS obtiveram do PS que justificou este remendo, aliás, pequeno e de pouca consequência, na sua política? É que, convém lembrar, o Governo não precisava do voto do PS para passar esta legislação, e é por isso que o único ganho de causa é o do Governo.

O acordo foi um acordo político de fundo que amarra o PS a sistemáticas pressões governamentais e outras, para que passe a ser parte do “consenso” que legitime a actual política. O que está em causa é algo que seria, se as classificações ideológicas tivessem alguma correspondência com a realidade, inaceitável por um partido socialista, como o é para um social-democrata, moderado que seja. O sentido de fundo do “ajustamento” está muito para além do resolver os problemas mais imediatos do défice ou da dívida, mas traduz-se numa significativa alteração das relações sociais a favor dos senhores da economia financeira, em detrimento daquilo que a maioria da população, classe média e trabalhadores, remediados e pobres, tinham conseguido nos últimos 40 anos.

O que marcará com um rastro profundo Portugal para muitos anos é acima de tudo essa transferência de poder, recursos e riqueza na sociedade. Ela faz-se pela mudança de fundo no terreno laboral, com a aquiescência do PS – recorde-se que aceitou sem críticas o acordo assinado pela UGT –, com a fragilização das relações entre trabalhadores, o elo mais fraco, e o patronato, o esmagamento da classe média pelo assalto à função pública, aos salários, reformas e pensões. A destruição unilateral dos “direitos adquiridos” destinou-se não apenas a garantir essa enorme transferência de recursos, mas acima de tudo a enfraquecer o poder social dos trabalhadores, dos funcionários públicos, dos detentores de direitos sociais.

 No passado podia haver pobres, estes tinham, porém, a possibilidade de ter uma dinâmica social e política para saírem da pobreza, uma capacidade de inverterem as relações sociais que lhes eram desfavoráveis. Eram pobres, mas não estavam condenados à pobreza. Era isso a que se chamava “a melhoria social”, num contexto de mobilidade e num contrato social que permitia haver adquiridos. Agora tudo isso aparece como um esbanjamento inaceitável, e o que hoje se pretende é que os pobres, cada vez mais engrossados pela antiga classe média, sejam condenados à sua condição de pobreza em nome de uma crítica moral ao facto de “viverem acima das suas posses”, perdendo ou tornando inútil os instrumentos que tinham para a sua ascensão social, a começar pela educação, pela casa própria, e a acabar nas manifestações e protestos cívicos, as greves e outras formas de resistência social. É um conflito de poder social que atravessa toda a sociedade e que se trava também nas ideias e nas palavras, em que a comunicação social é um palco determinante, com a manipulação das notícias, a substituição da informação pelo marketing e pela propaganda. E o PS escolheu estar ao lado dos “ajustadores”.

Pode-se argumentar que a “cedência” do PS permitiu algum alívio às pequenas e médias empresas, e que por isso há um ganho de causa. Talvez, e isso seria bom, se fosse apenas isso. Mas o que o PS cedeu é muito mais do que isso: é um contributo decisivo para manter a actual política em tudo o que é fundamental, a começar pela prioridade do alívio às empresas e aos negócios em detrimento das pessoas e do consumo. O PS enfileirou no núcleo duro do discurso governamental, mais sensível às empresas do que às pessoas, aceitando que, a haver abaixamento dos impostos, ele deve começar pelas empresas e não pelos indivíduos e as famílias, pelo IRC e não pelo IRS e pelo IVA.

Eu conheço a lengalenga de que os benefícios às empresas, à “economia”, são a melhor maneira de beneficiar as pessoas, e que é a “vitalidade” da economia que pode permitir todos saírem da crise. Em abstracto, poderia ser assim, no nosso concreto, não é. Chamo-lhe "lengalenga" porque no actual contexto a inversão muito significativa dos poderes sociais torna muito desigual a distribuição de benesses oriundas deste tipo de medidas, reforça os mais fortes como um rio caudaloso e chega tardiamente e sem mudar nada, como um fio de água, aos que mais precisam. E a outra verdade que tem que ser dita é que este tipo de acordo no IRC vai tornar mais difícil que haja uma diminuição significativa do IRS ou do IVA, ou seja, quem vai pagar os benefícios a algumas empresas são outras empresas mais em risco e as pessoas e as famílias.

Numa altura em que a campanha eleitoral para as europeias e a, mais distante, das legislativas são já um elemento central das preocupações partidárias do PSD e do CDS, o PS deu-lhes um importante trunfo político, e um sinal de que não confia nas suas próprias forças para ganhar as eleições e muito menos governar sozinho. Um acordo PS-PSD feito pela fraqueza e assente na continuidade da política actual prenuncia apenas que, seja o PS, seja o PSD, a governarem em 2015, cada um procurará no outro um seu aliado natural, não para uma política de reformas, mas para garantir a política que interessa ao sector financeiro, que capturou de há muito a decisão política em Portugal.  

O PS de Seguro mostrou que não é confiável como partido da oposição e que ou não percebe o sentido de fundo da actual política de “ajustamento”, de que este abaixamento do IRC é um mero epifenómeno, ou, pelo contrário, percebe bem de mais e quer ser parte dela. Inclino-me, há muito, para a segunda versão. Seguro e os seus criaditos diligentes estão ali para servirem as refeições aos que mandam, convencidos que as librés que vestem são fardas de gala num palanque imaginário. Vão ter muitas palmas e responder com muitos salamaleques.

Estamos assim.