Sem cerimónias

Nada há de acidental no facto de Mundo Pequenino arrancar com um tema chamado Algo novo. Ao dobrar o cabo dos 30 segundos, há uma discreta insinuação percutida que introduz um travo ligeiramente diferente na música dos Deolinda. Embora a dinâmica fundamental das canções do grupo continue entregue ao trio de cordas que cerca a voz de Ana Bacalhau e a levanta em ombros, ao terceiro álbum descobre-se aqui uma corte de novos instrumentos que contribuem para a expansão regrada do universo original.

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Nada há de acidental no facto de Mundo Pequenino arrancar com um tema chamado Algo novo. Ao dobrar o cabo dos 30 segundos, há uma discreta insinuação percutida que introduz um travo ligeiramente diferente na música dos Deolinda. Embora a dinâmica fundamental das canções do grupo continue entregue ao trio de cordas que cerca a voz de Ana Bacalhau e a levanta em ombros, ao terceiro álbum descobre-se aqui uma corte de novos instrumentos que contribuem para a expansão regrada do universo original.

Depois, a subtileza tem ordem para sair de cena e, ao segundo tema, acabou-se qualquer resíduo cerimonioso: Concordância já arranca com a voz acompanhada pela tarola de Sérgio Nascimento, já há uma secção de sopros mexicana de contrafacção e um parente de cavaquinho à espera de sinal para entrar ao virar da esquina. Esta expansão, no entanto, não se faz à bruta e enquanto necessidade histriónica de afirmação de maturidade. Só que, claramente, a âncora foi levantada e os Deolinda partiram novamente à descoberta. Canção ao Lado e Dois Selos e Um Carimbo, os dois primeiros álbuns, tornaram-se uma espécie de casa dos pais em relação à qual não se cortam totalmente amarras; discos estruturantes na definição de uma identidade, um porto seguro em relação ao qual o quarteto soube criar a devida distância para poder reclamar uma nova autonomia.

E sente-se em cada passo de Mundo Pequenino esse entusiasmo de vida nova, de uma liberdade que não se sabia existir, de novos horizontes percorrendo as mesmas ruas, de que a música pode reclamar ser mais do que foi até agora sem ter de trair-se. Essa é mesmo a grande conquista dos Deolinda: há aqui espaço para uma trompete sair desvairada no final de Musiquinha sem criar a sensação de ter entrado no álbum errado, para o piano de Joana Sá desfilar em ritmo de valsinha musette de encontro a Boris Vian no Semáforo da João XXI, para evocar sem medo os Diabo na Cruz no abanar de anca popular-rockeiro de Musiquinha, para criar um improvável eixo Havai-Havana-Ouagadougou-Lisboa tão deliciosamente falso em Seja agora quanto uma grosseira e terna montagem numa aula de iniciação ao Photoshop. E para tirar a boina e saudar, de passagem, Sérgio Godinho e José Afonso em Há-de passar ou celebrar o corpo na sensualidade esfuziante de Doidos.

Aliás, por Doidos, Seja agora, Algo novo ou Balanço (uma comovente canção de embalar para tempos de crise) perpassa um sentido festivo/celebratório/esperançoso estampado em relevo em Mundo Pequenino. Apesar do medo do próximo, do retrato do “deixa-andar”, da incomunicabilidade e da manutenção das aparências. Mas nas letras e nas músicas de Pedro da Silva Martins, para os Deolinda, agora Portugal é ponto de partida e não necessariamente de chegada. Não foi, de facto, o mundo que encolheu; foram os Deolinda que cresceram.