Perfil: Jorge Barreto Xavier, “dentro do caos, algum alívio”

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Barreto Xavier assumiu a pasta da Cultura a 26 de Outubro Miguel Manso

Foi a 16 de Julho de 2010: à vontade por entre a oposição PSD ao Governo Sócrates de então, Jorge Barreto Xavier foi ouvido numa comissão parlamentar enquanto director-geral das Artes demissionário. Nesse dia, responsabilizou frontalmente a então ministra da Cultura, a deputada do PS Gabriela Canavilhas, pelo polémico esgotamento das verbas de todo um ano para apoio às artes num único dos dois concursos semestrais previstos por lei. "Não sou nem fui ministro", disse, ironicamente, Barreto Xavier, chutando certeiramente para o topo da hierarquia a bomba que tinha aos pés.

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Foi a 16 de Julho de 2010: à vontade por entre a oposição PSD ao Governo Sócrates de então, Jorge Barreto Xavier foi ouvido numa comissão parlamentar enquanto director-geral das Artes demissionário. Nesse dia, responsabilizou frontalmente a então ministra da Cultura, a deputada do PS Gabriela Canavilhas, pelo polémico esgotamento das verbas de todo um ano para apoio às artes num único dos dois concursos semestrais previstos por lei. "Não sou nem fui ministro", disse, ironicamente, Barreto Xavier, chutando certeiramente para o topo da hierarquia a bomba que tinha aos pés.

Apesar da tensão no ar, Barreto Xavier entrou no Parlamento a sorrir e saiu a sorrir. Era óbvio que o seu percurso não acabava entre os estilhaços daquele episódio. Dois anos volvidos, é o novo secretário de Estado da Cultura, parecendo reunir consenso numa área pouco dada a unanimidades. Porquê? O que é que Barreto Xavier tem que o escritor e editor Francisco José Viegas ou outros antecessores não tinham num cenário de tão drástica descapitalização e desestruturação sectorial que leva muitos agentes a afirmar ser irrelevante quem ocupa o cargo?

"É ambicioso, vai querer mostrar que faz, que consegue", diz uma antiga colaboradora que prefere manter o anonimato. "Provavelmente, as estruturas que agora estão paradas vão ver as suas vidas resolvidas. Nessa lógica, o que pode servir o país é a sua vontade de acontecer. Vai querer mostrar já que é o salvador."

Segundo esta fonte, há um reverso da medalha para o que se poderão afigurar como qualidades operativas: "Fará também tudo o que for necessário para subir até ao cargo seguinte."

É um dos problemas da pasta da Cultura: tende a passar sucessivamente da mão de agentes sem músculo político, como Viegas, para tutelares sem grande conhecimento do tecido cultural e que encaram o cargo como mais uma missão partidária ou como trampolim para outras posições. Uns e outros tenderão a fazer concessões incompreensíveis para os agentes da área. Acontece que Barreto Xavier, que já tem algum traquejo político, construiu todo o seu percurso como gestor cultural, tendo do sector um conhecimento raro. Com ainda outra vantagem: formação em Direito. "Uma mais-valia inestimável", como refere outro ex-colaborador, que há alguns dias antevia: "A maior parte dos artistas vai ficar contente com a nomeação."

Mal o anúncio foi feito, o realizador Fernando Vendrell e o coreógrafo Rui Horta confirmaram esta previsão. "Tem", disse Vendrell, "uma capacidade de gestão, organização e eficácia totalmente distinta da demonstrada até agora."

"No terreno, o que temos exigido é uma interlocução com conhecimento de causa, e isso não tem nada a ver com um artista no poder", diz o coreógrafo e bailarino João Fiadeiro, que começou a contactar com o novo secretário de Estado da Cultura em 1986, primeiro ano do Clube Português de Artes e Ideias (CPAI), de que Barreto Xavier foi fundador e primeiro presidente. Cruzaram-se também no Lugar Comum - Centro de Experimentação Artística, que Barreto Xavier dirigiu e programou (1999-2002) em Barcarena, concelho de Oeiras. "Fui construindo dele a imagem de uma pessoa curiosa, sensível, próxima do pensamento dos agentes no terreno e que, ao mesmo tempo, tem competências de gestor", diz Fiadeiro.

Como refere, o sector vive hoje "a ressaca de um biénio de cortes de quase 50%": "É preciso sangue-frio, clareza e não deixar o edifício ruir completamente." Será um momento "contracorrente para alguém com ambição de deixar obra". Fiadeiro, porém, diz ficar "mais aliviado com uma pessoa como Barreto Xavier": "Dentro do caos, algum alívio."

Um secretário de Estado da Cultura "de carácter mais executivo", com "assertividade e pragmatismo", "que saiba do que o terreno precisa": "Houve momentos em que se tratava de concordar ou não com as políticas. Nos últimos tempos não havia política. Já não há a perder muito mais do que serviços mínimos, mas é fundamental criar estratégias que levem as pessoas a não desistir."

Oeiras na agenda
Barreto Xavier tinha 21 anos na altura da fundação do CPAI. Nascido em Goa em 1965 e licenciado pela Universidade de Lisboa, assumia aí o primeiro cargo público num percurso que, nos anos seguintes, passaria pela coordenação do programa Paideia - Arte nas Escolas (1991-1997) e consultorias na cultura e pedagogia, nomeadamente para o XV Governo Constitucional (2002-2004), de Durão Barroso.

Pedro Roseta era então ministro da Cultura e recorda uma "relação profícua" ainda que "muito ocasional". Aponta-lhe as "boas ideias", "exequíveis face às condições que existiam": "Assumia trabalho, cumpria prazos, sabia o que estava a fazer."

Na altura do último desses projectos, Barreto Xavier era já vereador da Câmara Municipal de Oeiras com os pelouros da Cultura, Juventude e Defesa do Consumidor (2003-2005). O seu primeiro contacto fora Isaltino Morais, mas acabara por entrar na lista de Teresa Zambujo, sucessora deste na presidência.

"O trabalho dele até então falava por si", diz Teresa Zambujo. O objectivo era "pôr Oeiras na agenda cultural": "Dei-lhe uma liberdade grande porque acreditava nele. Em boa hora o fiz."

"No terreno há sempre obstáculos", refere a ex-autarca, "a postura dele foi sempre ultrapassá-los da melhor forma. Contribuiu sempre com um olhar diferente para a Cultura. Normalmente, deixamo-la como um parente pobre, em Oeiras ficou bem vincada a aposta."

Entre outros exemplos, Teresa Zambujo aponta a criação de uma rede de bibliotecas, bem como programações regulares de cinema em vários espaços, parcerias com institutos de línguas e a primeira edição do Oeiras: Encontro de Culturas, "ponto alto" de cruzamentos interdisciplinares.

"Acho que está sem dúvida preparado [para a SEC]. A experiência local e a sua visão de proximidade são muito importantes para estar na administração central. É um salto, e sabemos que são tempos difíceis, mas ele tentará dar o seu melhor com os recursos que tem", diz a ex-autarca sobre um profissional que vê como "uma pessoa determinada, um corredor de fundo".

A perspectiva da oposição autárquica poderia ser distinta, mas não é. "Confirmo com naturalidade", diz Marcos Sá, durante anos líder da assembleia municipal e presidente da comissão política do PS Oeiras. "Se houve Cultura na Câmara Municipal de Oeiras, foi com Barreto Xavier".

Marcos Sá guarda do novo SEC a imagem de "uma pessoa afável, com grande capacidade de diálogo, empreendedor", capaz de "traçar prioridades, estabelecer parcerias estratégicas e procurar consensos numa perspectiva integrante": "Sabe ouvir e retirar o melhor das diferentes opções e visões. Tem o perfil adequado para evitar que a Cultura se desgaste ao ponto de afundar."

Marcos Sá sublinha que "não há comparação possível" com Viegas, de quem "houve duas notícias: a da nomeação e a da substituição". "Hoje não se faz Cultura com muito dinheiro, faz-se com criatividade e parcerias. Barreto Xavier é dos poucos vereadores de que tenho saudades."

Em 2005, Teresa Zambujo não conseguiu ser reeleita. Barreto Xavier voltou a assumir consultorias, nomeadamente para a Casa Pia, Serralves, a Gulbenkian e o XVII Governo Constitucional, de José Sócrates, com o jurista José António Pinto Ribeiro na Cultura. O mesmo que, em 2008, o apontaria para a Direcção-Geral das Artes (DGA).

Como sempre, a DGA foi uma prova de fogo. Em Dezembro de 2008, a apenas seis meses da inauguração da mais importante bienal de artes plásticas do mundo, a de Veneza, Barreto Xavier não tinha equipa para a representação portuguesa. E multiplicavam-se as pressões interministeriais para que a escolha do artista português fosse directa, do Ministério da Cultura, via DGA, em vez de caber a um comissário convidado - a escolha seria Joana Vasconcelos.

"O Jorge foi o único que fez finca-pé para que as coisas fossem mais honestas, ética e intelectualmente", diz a curadora italiana Antonia Gaeta, que trabalhou na DGA entre 2008 e 2011. "A ingerência do processo de escolha era palpável", recorda. "Não sei se fiquei ou não com boa impressão [de Barreto Xavier], sei que, sem ele, não teríamos tido uma real representação em Veneza."

Natxo Checa recorda que, quando foi convidado para a curadoria da participação, sentiu o mesmo tipo de pressões sobre Barreto Xavier. Diz ter imposto como condição autonomia de escolha. Diz também que só passado um mês a condição foi aceite, bem como os nomes que apresentou: a dupla João Maria Gusmão/Pedro Paiva, os mais jovens artistas de sempre a representar Portugal na bienal.

Checa já conhecia Barreto Xavier "há muito tempo" e a sua opinião sobre ele não mudou aí: "Há muito tempo que o Jorge assume postos ligados a uma responsabilidade colectiva. É fruto do seu trabalho. Tem ideias, sabe como financiar a Cultura, é inteligente, não é um fantoche, pensa por si, o que jogará a seu desfavor, mas a nosso favor."

Nas artes plásticas, a crispação à volta de Veneza acabou por se dissipar. Caminhava-se, porém, a passos largos para o mais complexo momento que Barreto Xavier enfrentaria na DGA.

Em Julho de 2010, Gabriela Canavilhas, que entretanto sucedera a Pinto Ribeiro, anuncia o esgotamento de todas as verbas para apoio às artes, 800 mil euros que deveriam ter sido divididos por dois concursos. "O senhor director-geral abriu [o concurso] do primeiro semestre com os 800 mil euros", disse a então ministra. A versão depois defendida por Barreto Xavier, já demissionário, foi distinta: "A senhora ministra sabia que a verba seria esgotada."

No terreno, a responsabilidade última de Canavilhas não foi escamoteada. Mas, hoje, a deputada diz que esta questão foi "uma desculpa" e que a demissão se deveu, na verdade, ao então anunciado corte de 10% em valores já contratualizados pelo Estado com agentes e estruturas.

Barreto Xavier classificou a medida como "perigosa" e passível de suscitar uma "crise de confiança no Estado". "Tinha toda a razão", diz Canavilhas, mas sublinhando que, antes do primeiro-ministro e Finanças terem encontrado alternativas, "não havia outra solução". "Ele preferiu afastar-se da medida, tudo o resto é construção narrativa. Quem é que quer ficar ligado a cortes à sua gente? Ninguém, e ele também não quis; optou por pôr-se a salvo para desafios futuros", diz a deputada.

Canavilhas cruzou-se pela primeira vez com Barreto Xavier "há mais de 20 anos", via CPAI. "Ele está num Governo que defende o contrário de tudo o que conhecemos como organização social desde o pós-guerra." Enfrenta, assim, diz Canavilhas, um "grande desafio": "Como é que alguém que reconhece o papel do Estado na Cultura lidará com a ideologia de um primeiro-ministro que acha que o Estado deve sair da Cultura, que deve sair de tudo? Este não é o PSD de Jorge Barreto Xavier."

Respostas, só mais tarde: no dia da sua tomada de posse, Barreto Xavier disse ao PÚBLICO que dará entrevistas apenas depois de estudar os dossiers.