Edvard Munch, pintor moderno

Foto
Galopping Horse 1910-12: por vezes as figuras parecem escapar do plano ou movimentar-se na direcção do espectador, imagem habitual nos filmes de planos fixos do início do cinema

Edvard Munch é conhecido como o autor de O Grito, cuja primeira versão foi pintada em 1883 e se tornou um dos mais famosos retratos do mal-estar existencial do século XIX, o mal du siècle, tendo sido vendida em Maio num leilão de Nova Iorque por um valor recorde próximo dos 120 milhões de dólares. É também conhecida a sua saúde débil, a propensão para períodos depressivos, a dependência do álcool e a vida familiar difícil, marcada pelas mortes da mãe e irmã quando jovem, pela religiosidade fanática do pai e por desgostos amorosos. Todos estes elementos ajudaram uma interpretação psicológica da sua obra, enquadrada no Simbolismo do século XIX, criando a imagem de um Munch introspectivo, onde o traço vigoroso, que constrói as situações sombrias das telas, demonstra a sua angústia interior e o posiciona como um proto-expressionista.

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Edvard Munch é conhecido como o autor de O Grito, cuja primeira versão foi pintada em 1883 e se tornou um dos mais famosos retratos do mal-estar existencial do século XIX, o mal du siècle, tendo sido vendida em Maio num leilão de Nova Iorque por um valor recorde próximo dos 120 milhões de dólares. É também conhecida a sua saúde débil, a propensão para períodos depressivos, a dependência do álcool e a vida familiar difícil, marcada pelas mortes da mãe e irmã quando jovem, pela religiosidade fanática do pai e por desgostos amorosos. Todos estes elementos ajudaram uma interpretação psicológica da sua obra, enquadrada no Simbolismo do século XIX, criando a imagem de um Munch introspectivo, onde o traço vigoroso, que constrói as situações sombrias das telas, demonstra a sua angústia interior e o posiciona como um proto-expressionista.

Obras como O Beijo, Vampiro ou A Criança Doente, bem como o seu método de trabalho baseado em recordações de eventos marcantes, parecem fortalecer este tipo de interpretações e colocar o pintor no interior dos movimentos artísticos do século XIX. Dentro desta perspectiva, a única associação entre Munch e o século XX é feita com o Expressionismo Alemão do grupo Die Brücke e pintores como Otto Mueller ou Goerge Grosz, onde o norueguês é apontado como influência maior.

O Olho Moderno, a exposição que a Tate Modern, em Londres, dedica a Munch até 14 de Outubro, propõe uma outra leitura: a imagem do pintor introspectivo e depressivo é substituída por um homem em sintonia com o seu tempo e interessado pelo mundo que o rodeia. Sublinha-se a sua produção do século XX, que na realidade totaliza quase três quartos da sua obra, expande-se a sua prática para além da pintura, e demonstra-se a influência de avanços tecnológicos e acontecimentos sociais na evolução do seu trabalho. A uma leitura cronológica opõe-se uma lógica de cruzamento, onde diferentes momentos são colocados em diálogo com o objectivo de abrir novas perspectivas sobre o seu trabalho.

A primeira sala demonstra claramente os objectivos da exposição, apresentando um grupo de obras que incorpora diferentes suportes e abrange 50 anos de produção. Apresentam-se nove auto-retratos distribuídos entre pintura, gravura, fotografia e um excerto de filme. As imagens em movimento retratam um Munch que se aproxima e olha para a lente, tentando mergulhar no seu interior para melhor analisar o instrumento. Nicholas Cullinan, o curador da exposição, aponta a atenção dada à especificidade de cada suporte como uma das marcas modernas de Munch, anunciando as linguagens artísticas do século XX no interior das quais esse tipo de postura auto-reflexiva era de muito relevância. A atenção de Munch pelas características de cada técnica, por cada medium, relaciona-se com o facto de cada suporte representar uma forma diferente de retratar o que se observa e de construir esse retrato. Este interesse é visível no grupo de desenhos e telas da década de 30, apresentados numa das últimas salas, realizados após uma hemorragia no olho direito ter interferido com a sua visão. Munch retrata o que observa mas também o filtro que medeia a sua relação com o mundo, tornado especialmente presente devido ao acidente de saúde. A sua curiosidade pelos instrumentos de mediação entre o ser humano e o mundo exterior é também responsável pelo seu interesse pela fotografia e pelo cinema, máquinas de documentação visual que nascem durante o século XIX. Munch entende que estas inovações comportam novas formas narrativas e incorpora os seus temas e formas na sua produção. As seções mais relevantes de O Olho Moderno analisam esta relação e traçam claramente a sua marca na obra do artista.


Movimento e introspecção

Foi um fotógrafo e cineasta amador: a sua primeira câmara fotográfica data de 1902 e em 1927 começa a experimentar com a imagem em movimento. A fotografia serve como forma de documentar a sua vida, sendo utilizada para a produção de um enorme número de auto-retratos, que cobrem duas sala da exposição. O filme parece equilibrar a sua introspecção fotográfica: aqui Munch demonstra um interesse constante em cenas de rua, no movimento dos automóveis, eléctricos e pessoas, no fervilhar das cidades por onde viajava. Era também leitor ávido da imprensa ilustrada e um cinéfilo que visitava com regularidade salas de cinema em Oslo, Paris e Berlim. Fotografia e cinema retratavam as movimentações sociais, políticas e económicas da Europa de início do século XX, marcada por manifestações, greves e guerras, que acabam por encontrar espaço, de uma forma mais ou menos subtil, nas suas pinturas. Os pontos de contato apresentados na exposição entre o artista e o mundo da sua época tornam assim problemática a imagem de um ser isolado, perdido no seu mundo psicológico, o que credibiliza a tese proposta de Munch como um artista do século XX.

Na segunda década do século passado, começa a retratar imagens chave da fotografia e do cinema, como o cavalo, em Galopping Horse 1910-12, ou trabalhadores no seu caminho para casa, em Workers on their way home 1913-14. (Marey e Muybridge, que abrem caminho à invenção do cinema através das suas experiências fotográficas, retrataram o movimento deste animal; de igual modo, Trabalhadores à saída da fábrica, de 1895, é o primeiro filme dos inventores do cinema, os irmãos Lumière, que documentaram a saída dos trabalhadores da sua fábrica de material fotográfico.) A suas telas acentuam progressivamente uma expansão espacial apoiada em pontos de vista elevados e em linhas diagonais construídas através da representação de estradas ou ruas, por vezes delineadas por alamedas de árvores, prática comum na fotografia da época que reforçava o efeito óptico do espaço. Pinta figuras em primeiro plano cortadas na zona do peito como se resultassem de um enquadramento fotográfico. Da mesma forma, as figuras aparecem regularmente fixas durante um movimento, tal como acontecia nas imagens da imprensa ilustrada que cobriam os acontecimentos de início do século XX e nos retratos produzidos pelos fotógrafos de rua. Por vezes as figuras parecem escapar do plano ou movimentar-se na direcção do espectador, imagem habitual nos filmes de planos fixos do início do cinema, onde se tentava intensificar a relação entre a imagem e o observador/visitante/espectador através de métodos dramáticos e enérgicos. O curador de O Olho Moderno coloca assim Munch no interior da mudança paradigmática na relação entre a pintura e observador, em curso durante o final do século XIX e início do século XX, onde as leis da perspectiva são alteradas e se passa de um modelo centrípeto do Renascimento para o formato centrífugo da pintura moderna. A absorção do observador para o interior do quadro dá lugar à propulsão do espaço interno da imagem para o seu exterior.

Trabalhos em progresso

Em paralelo a esta convergência formal e temática entre a obra de Munch, a fotografia e o cinema, encontra-se ainda a produção de várias versões dos seus trabalhos. A análise de O Olho Moderno considera que Munch é um dos primeiros artistas a questionar a reprodutibilidade da imagem, característica habitualmente associada às práticas do século XX que Walter Benjamin analisa em A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica (1936). Munch, de facto, produz várias versões das suas obras. Há seis de A Criança Doente, dez de Vampiro, sete de Raparigas na Ponte. O Grito existe em seis versões de diferente suporte: pintura, litografia e pastel. Embora o seu interesse pela fotografia e cinema, linguagens que possibilitavam uma fácil reprodução da imagem, possam explicar as várias versões do mesmo trabalho, existem também motivos de ordem económica, emocional e de modus operandi. Era habitual para o pintor repetir uma obra após a sua venda. Munch sentia-se próximo dos seus trabalhos e gostava de os ter consigo. Em simultâneo, as várias cópias multiplicavam as hipóteses de venda. Também acreditava que eram trabalhos em progresso: a repetição era interpretada como forma de aperfeiçoamento.

Sendo idênticas, as versões são, na realidade, diferentes. E é comum que os primeiros trabalhos sejam mais complexos em termos de traço e apresentem cores mais sombrias do que as versões posteriores. O regresso a um trabalho pode ainda ser interpretado como forma de o reduzir à forma mais simples, dotando o motivo de uma certa autonomia, o que possibilita a sua utilização em novos contextos. Da mesma forma, esta forma de trabalhar constitui, também, um mecanismo que torna o trabalho do artista reconhecível, como uma marca. O que é interpretado como um outra evidência de modernidade. Estes dois últimos factores parecem ter sido chave para artistas como Andy Warhol, mestre da auto-referencialidade que reutilizou o potencial icónico de Munch - há várias referências ao seu trabalho em obras como Madonna and Self-Portrait with Skeleton's Arm (After Munch), de 1983, Eva Mudocci (after Munch), de 1984, ou Lenin, de 1986, que citam o Auto-retrato de 1895 exibido na primeira sala da exposição.

O Olho Moderno propõe ainda outras pistas de modernidade, resultantes, por exemplo, da relação de Munch com o teatro, especificamente com o encenador Max Reinhardt com o qual colaborou numa encenação de Fantasmas de Henrik Ibsen em 1906. A exposição é uma proposta ganha em termos da afirmação de Munch como um artista alerta, interessado e influenciado pelo seu tempo. Ganha também por sublinhar a forte coerência da obra, por não apontar uma ruptura inexistente que, paradoxalmente, poderia de forma superficial fortalecer uma tese mas destruir todo o discurso. E por romper com interpretações demasiadamente focadas em leituras psicológicas relacionadas com um certo exotismo nórdico, transferindo o cerne da análise para a obra, ao invés da personalidade e vida do artista.

O grande peso da fotografia, na tese apresentada e no corpo da exposição, poderá afastar curiosos exclusivamente interessados em ver o lado mais conhecido de Munch: as pinturas. Esta subversão das expectativas de um público mais generalista, especialmente durante a época Olímpica, onde Londres aumenta o seu capital turístico, é também uma nota positiva para a Tate Modern que consegue apresentar um nome de grande apelo no contexto de uma investigação mais habitual em museus especializados. Esta é, quase, uma exposição de historiadores de arte para historiadores de arte, que, no entanto, consegue agradar a um público abrangente. A última sala parece ser uma forma de conciliar os diferentes interesses, apresentando, à semelhança da sala que recebe o visitante, magníficos auto-retratos, exclusivamente pinturas, que retratam quase quarenta anos da vida de Munch. A retrospectiva "clássica" fica reservada para o ano, quando a sua cidade natal e o museu que alberga a maior parte da sua obra, o Munch Museet de Oslo, celebrarem 150 anos do nascimento do artista.