Para lado nenhum

Com “Drive”, o dinamarquês Nicolas Winding Refner ganhou o prémio de realização no último Festival de Cannes, pormenor que podia servir como ponto de partida para um reflexão sobre como, de facto, já nada significa coisa nenhuma. De resto, um valor “sintomático” será mesmo a única coisa significativa de um filme como este: abre uma porta - muito vistosa, muito polida - para o mais absoluto vazio, e leva um prémio de realização. Bem vindos ao nosso tempo.

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Com “Drive”, o dinamarquês Nicolas Winding Refner ganhou o prémio de realização no último Festival de Cannes, pormenor que podia servir como ponto de partida para um reflexão sobre como, de facto, já nada significa coisa nenhuma. De resto, um valor “sintomático” será mesmo a única coisa significativa de um filme como este: abre uma porta - muito vistosa, muito polida - para o mais absoluto vazio, e leva um prémio de realização. Bem vindos ao nosso tempo.


É a história de um “cavaleiro do asfalto”, interpretado por Ryan Gosling, “duplo” de Hollywood durante o dia e “condutor de aluguer” para assaltos e outras manobras pouco católicas durante a noite. Também é um coração mole, e em nome da felicidade conjugal da vizinha (Carey Mulligan) vê-se metido numa alhada mafiosa que tem, praticamente sozinho, que resolver. “Para se viver fora da lei tem que se ser honesto”, diz uma velha canção dos anos 60, e embora nada no filme a lembre (a música é mais “synth-pop” dos anos 80, genuína ou reconstituída) a personagem de Gosling responde ao predicado: é o velho tema do homem íntegro face à grande cidade corrupta (no caso, Los Angeles).

Refner mencionou Walter Hill e Alejandro Jodorowsky (a quem, de resto, dedica o filme), e a ladainha é repetida pela Internet fora, presumivelmente por gente que nunca viu nem Hill nem Jodorowsky (ou perceberia o disparate: que tem a sujidade de Jodorowsky a ver com a limpeza asséptica de “Drive”?). Narrativamente, ou tematicamente, a história tem muito mais a ver com Clint Eastwood, por exemplo, e no maneirismo que domina a “mise en scène” de Refner os primeiros Leones são um elemento a não excluir.

A única coisa que vive com algum vigor em “Drive” é a primeira sequência, sete/oito minutos ainda pré-genérico, com Gosling ao volante por Los Angeles nocturna enquanto testa despistar a polícia e transportar dois assaltantes para porto seguro. Quase sem diálogos, e ainda sem qualquer “psicologia”, é uma pequena experiência, muito física, da geografia e da ansiedade. Isto, que seria o essencial num Michael Mann, por exemplo, é logo a seguir esquecido, em nome da sacrossanta historieta (a relação Gosling/Mulligan), sentimental e simplisticamente sublinhada (a música), e da canónica “encenação da violência”, completa com requintes de um sadismo muito básico e sensacionalista, e embrulhada numa suposta distância “ritualizada” (sem nunca ser como Tarantino, onde a violência e o sadismo são a própria matéria com que se tece a implicação do espectador).

Contenta-se com pouco, Refn. Mas ao pouco com que podia fazer muito prefere ignorar: num filme que se chama “Drive” e vive, em grande parte, de automóveis e de planos de Gosling ao volante, a indiferença com que se filmam os carros é quase chocante. Nem cheiro a gasolina nem a borracha queimada, nem sequer o ronronar dos motores (porque, quase sempre, a música abafa tudo). Dois minutos de “documentário” sobre automóveis - e nem pedíamos um “Two-Lane Blacktop”, só dois minutos - e ao menos haveria alguma coisa para ver em “Drive”.

Mas não há, e o que há já foi visto e melhor visto. Todo o “Drive” não vale uma cena de Eastwood, de Mann, de Tarantino, de Hellman (ou de Hill, já agora). A medir-se com alguém meça-se com os Coen, que jogam no mesmo tabuleiro de maneirismo e superficialidade brilhante. Bem vindos a 2011, e conheçam Nicolas Winding Refn, novo rei da pequenada.